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Refletir (um postal para a Alexandra)

Conheci escritores obtusos e até mesmo estúpidos; todos os tradutores que conheci eram, sem excepção, inteligentes e muitas vezes mais interessantes do que os autores que traduziam. (Há mais reflexão na tradução do que na «criação».) Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 (outubro de 1971).

O sopro revolucionário

Marguerite Duras: (...) Acredito na utopia política, quer dizer, acredito profundamente no movimento de Allende que é talvez a coisa mais importante que aconteceu desde 17, juntamente com os primeiros momentos, os primeiros anos de Cuba. É a utopia que faz avançar as ideias de esquerda, mesmo que falhe. 68 falhou, e isso foi um avanço fantástico para a ideia de esquerda, aquilo a que durante muito tempo se chamou exigência comunista, mas que na conjuntura actual já não significa rigorosamente nada. Só se pode fazer isso.... Tentar umas coisas, mesmo se são feitas para falhar. Mesmo falhadas, são as únicas que fazem avançar o espírito revolucionário. Como a poesia faz avançar o amor. Está tudo ligado. Não há poesia — verdadeira — que não seja revolucionária. Quando Baudelaire fala dos amantes, do desejo, está no auge do sopro revolucionário. Quando os membros do Comité Central falam da revolução, é pornografia. O Camião ( entrevista com Michelle Porte) , de  Marguerite Duras.

Uma novidade desastrosa

Todo o dia ruminei sobre um pequeno detalhe extraordinário. Quando Pascal fala do homem, diz: que caos, que contradições, etc. O homem, que novidade ! Esta «novidade», que palavra admirável para definir o carácter anormal da aparição do homem, o imprevisto e o desconcertante de tal fenómeno. Com efeito, o homem é, na natureza, uma novidade, uma novidade desastrosa. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972.

Palavras à-toa

Michelle Porte:  Não tínhamos nenhuma confiança no espectador?  Marguerite Duras:  Não. Tomamos o espectador por uma criança. O espectáculo cinematográfico é um espectáculo infantil... Quando vemos filmes antigos na televisão, por exemplo, o espectador é tratado como uma criança atrasada, como se fosse tonto, como se tivéssemos de lhe fazer a papinha toda.  Tudo isso vai de encontro a esta suspeita, definidora, que escondi bem dentro de mim — quando filmo, ela está em todos os planos — que o cinema não existe como função fundamental. Que é uma miscelânea de aspirações derivadas, falhadas, de múltiplas amarguras. E ao mesmo tempo que é assim, e isso agrada-me, tenho de desconfiar dos polícias do cinema, desses que o guardam, que dizem: aqui, é a imagem, e não palavras à-toa — mas as palavras à-toa são palavras lassas, livres. São magníficas, as palavras à-toa. Para cada um dos meus filmes vejo esta imagem: um supermercado que arruina tudo à sua volta, e que dita palavras de ordem: ou p

O lado luxuriante

O Camião é um livro compósito. Abre com uma épigrafe de Maurice Grevisse sobre o carácter temporal do condicional. Depois vem a conversa entre Marguerite Duras e Gérard Depardieu sobre aquela mulher que pede boleia na estrada e conta a sua vida, mais as descrições da paisagem por onde o camião avança, e algumas didascálias. Seguem-se os textos de apresentação: quatro projectos onde Duras fala das suas intenções e do estado do cinema. Por fim, a entrevista de Michelle Porte. E a entrevista acaba com uma pergunta de Marguerite Duras.  M. P .: Acho que do que mais gosto n’  O Camião é que o filme fala de tudo ao mesmo tempo.  M. D .: O lado luxuriante?
Já não vale a pena fazermos o cinema da esperança socialista. Da esperança capitalista. Já não vale a pena fazermos o cinema de uma justiça por vir, social, fiscal ou outra. O cinema do trabalho. Do mérito. O cinema das mulheres. Dos jovens. Dos portugueses. Dos malianos. Dos intelectuais. Dos senegaleses.  Já não vale a pena fazermos o cinema do medo. Da revolução. Da ditadura do proletariado. Da liberdade. Dos vossos fantasmas. Do amor. Já não vale a pena.  Já não vale a pena fazermos o cinema do cinema.  Já em nada acreditamos. Acreditamos. Que alegria: acreditamos: em nada.  Já em nada acreditamos. Já não vale a pena fazermos o vosso cinema. Já não vale a pena. Temos de fazer o cinema do conhecimento disso: de não valer a pena.  Que o cinema vá para o inferno, é o único cinema.  Que o mundo vá para o inferno, que vá para o inferno, é a única política. O Camião.  Textos de Apresentação. Primeiro Projecto.  Marguerite Duras (tradução revista).

O tempo do verbo

Na conversa com Michelle Porte que acompanha a edição de O Camião , Marguerite Duras diz: é o primeiro filme que faço, e talvez o primeiro filme que se faz, onde o texto suporta tudo .  Mas neste texto/filme a questão gramatical é tão crucial que, creio, pode-se ir mais longe e dizer que é o único filme feito no condicional lúdico ou futuro hipotético — como as brincadeiras das crianças.

Borges (o último dos delicados)

Carta para Fernando Savater Paris, 10 de dezembro de 1976 Querido amigo, Em novembro, quando passou por Paris, pediu-me para colaborar num volume de homenagem a Borges. A minha primeira reação foi negativa; a segunda… também. Para quê venerá-lo quando as próprias universidades já o fazem? A má sorte de ser conhecido abateu-se sobre ele. Merecia melhor. Merecia permanecer na sombra, no imperceptível, manter-se tão esquivo e tão impopular como uma nuance. Era aí que se sentia em casa. A consagração é a pior das punições — para um escritor em geral, e muito especialmente para um escritor do seu género. A partir do momento em que todos o citam, já não o podemos citar ou, se o fazemos, temos a impressão de estar a engrossar a legião dos seus «admiradores», dos seus inimigos. Na verdade, aqueles que querem a todo o custo prestar-lhe justiça, mais não fazem do que precipitar a sua queda. E fico por aqui, porque se continuasse neste tom acabaria por me compadecer do seu destino

O mundo que vá para o inferno

Lutei dias e dias com a frase mais forte d’ O Camião . « Que le monde aille à sa perte » só surge quatro vezes (uma delas com todas as palavras encadeadas por hífens, outra com «o mundo» substituído pelo pronome), mas arrasa tudo. Escrevi uma série de frases possíveis, mudando o verbo ou o complemento oblíquo; cocei o queixo, inclinei a cabeça; fui ver se estava a chover. Nada. Conseguia segurar a força, mas faltava o ritmo — um golpe seco de espada. Depois lembrei-me que a Marguerite Duras gostava muito de Capri, c’est fini (a mais bela canção de amor, dizia ela). E partir daí foi mais fácil, uma canção leva a outra.

Benjamin Fondane

6, rue Rollin O rosto mais sulcado, mais escavado que se possa imaginar, um rosto com rugas milenares, mas de modo algum petrificadas, pois eram animadas pelo tormento mais contagioso e mais explosivo. Não me cansava de as contemplar. Nunca antes tinha visto uma tal concordância entre parecer e dizer, entre fisionomia e palavra. É-me impossível pensar na mais pequena das afirmações de Fondane sem imediatamente me dar conta da presença imperiosa dos seus traços.  Visitava-o muitas vezes (conheci-o durante a Ocupação), sempre com a ideia de não ficar mais de uma hora e acabava por passar a tarde inteira em sua casa, por minha culpa claro, mas também por culpa dele: ele adorava falar, e eu não tinha coragem e muito menos vontade de interromper um monólogo que me deixava exausto e arrebatado. No entanto, na primeira visita que lhe fiz com intenção de o interrogar sobre Chestov, eu é que fui descomedido. Pois, sem dúvida por necessidade de me exibir, não lhe fiz pergunta nenhuma, preferin

Ao reler...

Traduzido para alemão por Paul Celan, o Breviário de Decomposição foi publicado pela Rowohlt em 1953. Quando foi reeditado pela Klett-Cotta, há oito anos, o director da Akzente pediu-me para o apresentar aos leitores da revista. É esta a origem deste texto. Ao reler este livro, que remonta a mais de trinta anos, procuro reconhecer a personagem que fui e que se esgueira, que me escapa, pelo menos em parte. Os meus deuses eram Shakespeare e Shelley. Continuo a ler o primeiro; o segundo, raramente. Cito-o para indicar por que tipo de poesia estava intoxicado. O lirismo desenfreado combinava com as minhas disposições: infelizmente apercebo-me dos seus vestígios em todos os meus exercícios dessa época. Quem consegue ainda ler um poema como Epipsychidion ? Enfim, eu lia-o com prazer. O platonismo histérico de Shelley repugna-me e à efusão, seja qual for a forma que apresente, prefiro agora a concisão, o rigor, a frieza deliberada. No essencial, a minha visão das coisas não mudou; o que

Menear-se

Todos esses professores, Heidegger à cabeça, que vivem como parasitas de Nietzsche, e que acham que filosofar é falar de filosofia. — Fazem-me pensar nos poetas que imaginam que a missão de um poema é cantar a poesia. Por toda a parte o drama do excesso de consciência: trata-se de um esgotamento de talentos ou de um esgotamento de temas? Dos dois, sem dúvida: falta de inspiração que acompanha a falta de matéria. Desaparecimento da ingenuidade; muito malabarismo, habilidade , nas coisas importantes. O acrobata suplantou o artista, o próprio filósofo não é senão um pedante que se meneia . Emil Cioran, Cadernos 1957-1972.

Sobre Chantal Akerman

Imaginei tantas vezes a estreia de  No Home Movie.  Mas nunca assim...  Quero falar-vos de Chantal. Falar-vos de tudo o que me deu, tudo o que me ensinou, tudo o que partilhamos. Contar-vos como era radiante, inteligente, surpreendente e também divertida... Diz-se muitas vezes de Chantal que tinha princípios estéticos. Bom, eu acho que os princípios nos protegem, e Chantal não se protegia. Confiava no que estava para vir, sabia acolher o acaso.  Lembro-me de uma história que lança alguma luz sobre a sua forma de trabalhar. Durante a preparação de La Folie Almayer , ela precisava de um porto. A assistente perguntou-lhe se queria um porto grande ou um porto pequeno. Ela respondeu «um porto grande». Mais tarde, perguntamos-lhe se tinha a certeza que era isso que queria, porque talvez um porto pequeno fosse mais acolhedor. Recordo-me que íamos pela rua e Chantal estava ao telefone. Parou, bateu com o pé e disse «quero um porto grande, foi o que disse, não me peçam para explicar porquê». Nã
1 de Janeiro de 1969  Fui passear entre Étréchy e La Ferté-Alais. Neve e nevoeiro, um nevoeiro tão suave que as árvores pareciam fumo imobilizado. Raramente vi uma paisagem tão poética. Tudo era irreal — e depois, por causa do gelo, as estradas estavam desertas.  Entrei num cafezinho em Villeneuve-sur-Auvers, onde ouvi uma canção americana (inglesa?) « Those were the days » que, pela entoação elegíaca, me comoveu mais do que seria de esperar. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972.

Soma de derrotas = vitória

21 de Dezembro  A única solução: continuar como se nada fosse; aconteça o que acontecer, um dia havemos de ganhar a causa. Perante quem? Não importa. O certo é que, se permanecermos nós mesmos, se tivermos a coragem de defender a nossa causa até ao fim, a soma de derrotas que teremos experimentado equivalerá a uma vitória. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972.

Traduzir

No emprego anterior chamaram-me comunista . Esta semana foi sindicalista , acusaram-me ainda de não respeitar as hierarquias e ter a mania de defender os mais fracos . Reagi como um modelo sonâmbulo de Bresson, mas por dentro toda eu era contentamento; estou a conseguir traduzir, não só as palavras, mas também os gestos e as ideias dos livros que leio e dos filmes que vejo. Uma tradução de acção, action translation .

As minhas datas-chave

Sou mais velho do que Baudelaire quando dizia que tinha mil anos, por isso:  1842. A floresta alemã é interdita aos pobres (madeira morta, cogumelos, castanhas, etc.); converte-se num local de exploração industrial. O jovem Karl Marx insurge-se; o que lhe custa o emprego de jornalista na Gazeta da Renânia.  Inverno de 1942. Estou a patinar no Moselle coberto por uma espessa placa de gelo. ESTALINEGRADO! «Finalmente o princípio do fim», diz o meu pai.  1945. Alguns dias antes do fim da guerra, só para impressionar Estaline, os B17 americanos bombardeiam duas vezes uma das mais belas cidades alemãs, Dresden, destruindo-a e causando mais vítimas (civis) do que as bombas (atómicas) lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki para nos libertar do «perigo amarelo».  Até 1948. A ESPERANÇA! Leis da concorrência. Nacionalizações, expropriações (a família Renault, por exemplo). O PLANO (económico) francês é mais audacioso do que o de Walter Ulbricht na República Democrática Alemã alguma vez será. Le

Rigidez e graça

Visita de um professor japonês, Tadoo Arita, e da sua mulher. Decididamente, este povo tem classe. Nem o menor traço de vulgaridade! Têm «estilo» como os franceses devem ter tido noutro século e como os ingleses ainda têm um pouco. Rigidez e graça — paradoxalmente combinadas. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 (março de 1967).

Admiradores desconhecidos

Nunca devemos responder a cartas de desconhecidos. Quando as recebia, agora compreendo, era porque falavam de mim na «imprensa». Como já não publico e depois de uma certa «conspiração de silêncio» (!), mais ninguém repara na minha existência. Facto com que me congratulo. Mas que lição! E pensar que, como toda a gente, acreditei nos «admiradores»! (Outubro de 1962)  Acho que não recebi uma única carta de um desconhecido que fosse normal. De um desconhecido, entenda-se, que me tenha escrito entusiasmado, a quem dei alguma coisa e que confessou sentir afinidades comigo. Destroços, perdidos, infelizes, doentes, dilacerados, incapazes de inocência, corroídos, atingidos por todos os tipos de enfermidades secretas, falharam em todos os exames cá em baixo, arrastando atrás de si o seu jovem ou o seu velhíssimo desconcerto. Nunca me pediram nada, porque sabiam que nada lhes podia oferecer. Só queriam dizer que me tinham compreendido... (Novembro 1968) Emil Cioran, Cadernos 1957-1972.