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A mostrar mensagens com a etiqueta Samuel Beckett

Aprender a conviver com os ratos

Uma das coisas que invejo a Cioran são os passeios nocturnos com Beckett pelas ruas de Paris. Gosto de imaginar as conversas sobre palavras que não existem, as interjeições de Cioran e os silêncios de Beckett. As ruas ainda sem turistas, vazias. Também consigo ver o lixo e os ratos. Ah, os ratos.

A biblioteca de Samuel Beckett

« Elle [la bibliothèque de Samuel Beckett] est toujours telle qu'elle était au moment de sa mort, dans son appartement du Boulevard Saint-Jacques à Paris.»  

Beckett

Alguns encontros  Para decifrar esse homem distinto que é Beckett, temos de insistir na locução «manter-se à parte», divisa tácita de cada um dos seus momentos, no que implica de solidão e obstinação subterrânea, na essência de um ser afastado, que persegue um trabalho implacável e sem fim. No budismo, diz-se que aquele que tende para a iluminação deve ser tão encarniçado como «o rato que rói um caixão». Todo o escritor verdadeiro desenvolve um esforço semelhante. É um destruidor que acrescenta à existência, que a enriquece ao miná-la.  «O tempo que passamos na terra não é suficientemente longo para o usarmos noutra coisa a não ser em nós mesmos.» Esta afirmação de um poeta aplica-se a quem recusa o extrínseco, o acidental, o outro . Beckett ou a arte inigualável de ser quem é. Com isso, nenhum orgulho aparente, nenhum estigma inerente à consciência de ser único: se a palavra amenidade não existisse, teríamos que a inventar para ele. Coisa difícil de acreditar, até monstruosa: ele n

O resto é vício

No dia 1 de Outubro de 1936, Beckett escreveu no diário: «O essencial não é saber se estamos certos ou errados — isso não tem importância. O importante é desencorajar o mundo a preocupar-se connosco. Tudo o resto é vício.» Nesse momento, Robert Walser sentiu um sopro no pavilhão das orelhas e um repentino sobressalto no coração.

As sensações estão a voltar

Tens razão, Cristina . Depois de ver  Jeanne Dielman , não é possível ler, ir ao cinema ou olhar para o tecto, sem nos ocorrer uma cena, um gesto, um som do filme. Há mais uma passagem de Beckett, desta vez em Eu não , que me empurra para a obra de Chantal Akerman. Continuo a achar que o desvio na rotina de Jeanne e o início da derrocada começa fora de campo, no quarto com o cliente, a meio do segundo dia. Talvez ela tenha reconhecido em si qualquer coisa que ultrapassava a simples relação prática com o homem. A passagem de Beckett (tradução de Isabel Lopes): (...) reconhecê-la como sua… a voz como sua… mas também lhe vem ainda… ainda uma ideia… assustadora… oh muito depois… breve luz que se fez… ainda mais assustadora se possível… de que as sensações estão a voltar… imaginem!... as sensações estão a voltar!... a partir de cima… depois a apoderar-se para baixo… da máquina toda… mas não… ao menos isso… só a boca… a face… até ver… ah!... até ver… depois dizendo para si própria… oh muito

Que batalha sempre perdida isto é

Quanto ao ânimo mais íntimo, Beckett ainda se sentia extremamente abatido. Viu-se sobrecarregado com tarefas menores e com a verificação de traduções do seu trabalho, o que o deprimiu ainda mais. "Tão cansado e farto da tradução", escreveu a MacGreevy, "e que batalha sempre perdida isto é. Queria ter a coragem de lavar as mãos de tudo isto, quero dizer, deixar isto para os outros e tentar continuar algum trabalho." É que o fardo cansativo de rever as traduções do seu trabalho que outros tinham feito impedia-o de avançar com as duas traduções mais importantes com que se tinha comprometido: Endgame e The Unnamable ( Fim de Partida e O Inominável ). (...) Beckett mostrava-se frustrado e impaciente com os seus esforços iniciais, sentindo constantemente perdas em relação ao original: "Está horrível em inglês, toda a clareza perdida, e os ritmos. Se eu não estivesse vinculado a um contrato com o Royal Court Theatre, não autorizava a peça em inglês." James Kn

Rentrée

Recordo que naqueles anos não muito distantes de 70 houve uma greve de lixeiros em Paris e a cidade estava coberta de lixo. As ratazanas roçavam as pernas dos transeuntes e um fumo excrementício emanava das montanhas de matéria decomposta. Todos os dias, enquanto durou a greve, Beckett telefonava a Cioran para irem dar um passeio juntos. “Paris nunca foi tão bela”, comentava Beckett com exaltação juvenil. 

Paredes instagramáveis para influenciadores do século XX

Film , de Samuel Beckett e Alan Schneider, e Un Chant D'Amour , de Jean Genet.

3 de outubro de 1966

Encontrei Beckett esta noite por volta das 23 horas. Fomos a um bar. Falámos disto e daquilo, de teatro e depois das nossas respectivas famílias. Ele perguntou-me se eu trabalho. Disse-lhe que não, expliquei-lhe a influência nefasta do budismo, que não páro de estudar, sobre as minhas actividades de escritor. Toda a filosofia hindu exerce efeitos anestésicos sobre mim. E depois disse-lhe que consegui tirar consequências das minhas teorias, que me convenci a mim mesmo do que escrevi e que me tornei meu discípulo. E se quiser voltar a ser escritor, terei que seguir o caminho oposto ao que percorri. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

Dein Alter sei wie deine Jugend

Concluí a terceira revisão, acho que já posso arrumar “Lágrimas e Santos”. Como vou continuar na retoma progressiva não sei de quê, resolvi atirar-me a outro livro. Gostava de prolongar a relação com o Cioran romeno, mas acabou de sair uma tradução de “Nos cumes do desespero” e não vale a pena andarmos todos a roer o mesmo osso. Se não pode ser o jovem, então que seja o velho. Traduzir os “Cadernos” que tem uma data de páginas (1008, nesta edição ) — é coisa para me acompanhar até ao fim.  29 de setembro de 1970 Há cerca de dez anos, quando me queixei a um médico da minha má digestão, ele disse-me: “Tem de comer com alegria. — Se pudesse comer com alegria, não tinha vindo consultá-lo”, foi a minha resposta. Se penso nesta história, é porque me veio à memória a propósito da visita que S. Beckett fez recentemente a Jean Ménétrier, um médico um tanto herético, que sem mais nem menos lhe perguntou: “Você é optimista? " Fazer esta pergunta ao autor de Fin de Partie ! Emil Cioran, Cad

A apoteose do sub-homem

Samuel Beckett. Prémio Nobel. Que humilhação para um homem tão orgulhoso! A tristeza de ser compreendido! Beckett ou o anti-Zaratustra. A visão da pós-humanidade (como se diz pós-cristianismo). Beckett ou a apoteose do sub-homem.  Emil Cioran, Cadernos, 23 de outubro de 1969.
François Bondy: Como é que conseguiu este apartamento no sexto andar, com esta vista magnífica sobre os telhados do Quartier Latin? Emil Cioran: Graças ao snobismo literário. Já há muito tempo que estava farto do meu quarto de hotel na rua Racine e pedi a uma agente imobiliária que me procurasse qualquer coisa, mas ela não me mostrou nada. Então enviei-lhe um livro que acabara de publicar, com uma dedicatória. Dois dias depois trouxe-me aqui, onde a renda — acredite ou não — é de cerca de cem francos, o que corresponde aos meus meios de subsistência. Com as dedicatórias de autor é assim. A sessão de autógrafos na Gallimard, sempre que um livro é publicado, é uma coisa que me aborrece e uma vez esqueci-me de assinar metade dos livros. Nunca tive tantas críticas más. É um rito e uma obrigação. Nem Beckett pode escapar a isso. Joyce nunca o conseguiu entender. Disseram-lhe que em Paris um crítico espera sempre uma carta de agradecimento do autor quando diz bem dele. Uma vez ele concor

Tipos de confinamento: o confinamento beckettiano

Samuel Beckett, Endgame , por Tania Bruguera.

Endgame

Ao redor do bunker alternam-se dia e noite, sol e chuva, vivos e mortos, infectados e recuperados. Do lado de dentro, somos dois: Hamm e Clov. Tu és Hamm e eu sou Clov. Ou tu és Clov e eu sou Hamm. É a minha vez de jogar. Ou é a tua. Já não sei. Não interessa. Cada vez conto pior esta história.

Ainda mais pobre

A pergunta do porquê de Beckett escrever em francês desde 1945 foi-lhe feita tantas vezes que já se reuniu toda uma série de respostas. A mais antiga, de 1948, foi expressa num francês coloquial: Para me fazer notado . A seguinte data de 1956: Tinha simplesmente prazer nisso... Para mim tornava-se muito mais excitante . No mesmo ano: Para escrever sem estilo. E em 1968: Para me tornar ainda mais pobre. Foi essa a verdadeira motivação. Klaus Birkenhauer, Beckett . Tradução de Maria Emília Ferros Moura. A verdade é que Beckett começou a escrever em francês antes de 1945.

Mais vergas do que gozo

Foi precisamente em Londres que Belacqua de Beckett assumiu a sua forma definitiva: a partir do fragmento do romance Dream of Fair to Middling Women , utilizado como "primeira pedra", Beckett elaborou uma colectânea de dez contos com o título de More Pricks Than Kicks . Esta formulação constitui um choque para qualquer cidadão de língua inglesa (...). Pode ainda assim tratar-se de uma brincadeira bíblica sobre a frase da Bíblia to kick against the pricks ("levantar protestos"); ou ainda uma brincadeira com a expressão more kicks than halfpenc e ("mais queixas do que agradecimentos"). No entanto, os dois possíveis significados secundários apagam-se ante o principal significado actual destas palavras; prick quer dizer, na verdade, espinho ou aguilhão, mas na linguagem coloquial, sobretudo, pénis; e kick não significa apenas queixas, mas também uma alegre excitação, bem-estar. Sem o significado secundário inglês inofensivo, o título seria algo de tão ordin

Influenciadores do século XX

Quatro breves notas sobre O Cavalo de Turim

Não havia horizonte, salvo não haver horizonte. F. Pessoa, A estrada do esquecimento. 1) Endgame Se Béla Tarr decidisse filmar Endgame , de Samuel Beckett, talvez o resultado não fosse muito diferente de O Cavalo de Turim . Uma casa isolada numa planície quase deserta. Dois personagens ali encerrados, um homem e uma mulher, pai e filha. Uma porta e uma janela. O que sabemos do exterior resume-se quase exclusivamente ao que é possível observar a partir dessa janela. Dias e noites sucedendo-se, aparentemente iguais entre si. HAMM (...) Como está tudo? CLOV Como está tudo? Numa palavra? É o que queres saber? Um segundo (aponta o óculo para fora [da janela], observa, baixa o óculo, volta-se para Hamm.) Mortibus. Samuel Beckett, Fim de partida . 2) Deus criou o mundo em seis dias, o mesmo tempo que demorou a destruí-lo A narrativa de O Cavalo de Turim decorre em seis dias, ao longo dos quais cada coisa se vai apagando, numa espécie de lento e inexplicável desmaio.

Na cabeça de Samuel Beckett

Tania Bruguera montou Endgame no interior da cabeça de Samuel Beckett. Por dentro, tudo é branco. Paredes brancas, chão branco, “tão branco, tão limpo”, ou melhor, sem cor, um «deserto». No centro, um homem cego, Hamm, preso a uma cadeira de rodas. Através de uma abertura na cabeça, outro homem, Clov, entra e sai, coxo, incapaz de se sentar. Clov é uma espécie de escravo de Hamm. A verdade, porém, é que Hamm depende de Clov, escravo do seu escravo. E ambos são escravos da cabeça de Beckett. Em cima: o interior da cabeça de Samuel Beckett. A cabeça de Beckett está apoiada numa impressionante estrutura espiralada em ferro (trata-se de uma grande cabeça, pesada, cilíndrica, a testa muito alta). O interior é inacessível ao público, excepto através de pequenas aberturas onde só cabe, justamente, a nossa cabeça. Sessenta cabeças dentro da cabeça de Beckett. Sessenta cabeças a observar o que ali se passa, a olhar directamente Hamm e Clov, olhos nos olhos, ou dito de outro modo, a