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Mensagens

A mostrar mensagens de novembro, 2020

Um ratinho na roda

Quando chego ao fim, começo a corrigir. À primeira revisão, segue-se a segunda. O que parecia certo, releva-se esquisito. Altero. Volto atrás. Troco a fidelidade por uma pequena traição. Parece que compreendo tudo. Leio em voz alta. Fico com remorsos. Já não percebo nada. Desempenho a tarefa do tradutor como um ratinho na roda.

Ah, que lindo trio nós formamos!

O JUIZ: (Irritado.) Vais-me responder ou não? Que mais roubaste? Onde? Quando? Como? Quanto? Porquê? Para quê? - Responde. (...) A LADRA: Peço perdão, mas já não me lembro. O CARRASCO: Arreio nela? O JUIZ: Ainda não. (Para A LADRA) Onde é que entraste? Diz-me, onde? Onde? Onde? Onde? Onde? Oonnn!... Oonnnn!... Oonnn!... A LADRA: (Aflita.) Já não sei, juro que já não sei. O CARRASCO: Arreio nela? Senhor Doutor Juiz, arreio nela? O JUIZ:  (Para O CARRASCO e aproximando-se dele.) Ah! Ah! O teu prazer depende de mim. Gostas de dar porrada, hem? Dou-te razão, Carrasco! Magistral monte de carne, ganda chicha que uma decisão minha acciona! (Finge olhar para si mesmo na pessoa do CARRASCO.) Espelho que me glorifica! Imagem que posso tocar, amo-te. Nunca teria a força nem a perícia suficientes para deixar riscas de fogo nas costas dela. Aliás, que poderia eu fazer de tanta força e perícia? (Toca nele.) Estás aí? Estás aí, meu braço enorme, demasiado pesado para mim, demasiado grosso, demasia

Prosa

Todos os poemas que podia ter escrito, que sufoquei dentro de mim por falta de talento ou por amor à prosa, vêm de repente reclamar o seu direito à existência, gritam a sua indignação e submergem-me. Qualquer laivo de poesia envenena a prosa e torna-a irrespirável. Houve um tempo em que não passava um só dia sem várias horas de música ou sem ler um poema. Agora, a prosa toma o lugar de tudo. Que diminuição, que decadência! Divindade da prosa. Uma prosa esquelética atravessada por um calafrio — nada me é tão aprazível. O máximo que a prosa pode alcançar é roçar o sublime; se se impregnar dele, torna-se ridícula, empolada, penosa. É incrível até onde remonta a menor expressão poética na prosa. A poesia é o lado perecível do estilo. Só dura, só permanece viva se for implícita, não evidente, involuntária, secreta e até mesmo imperceptível. Uma prosa que tem um tom mallarmeano é ilegível — para além de três frases. Estou a passar por um período em que nem a poesia nem o misticismo me dizem

Realidade e fingimento

Domingo de tarde. Leio o Manual de Leitura do TNSJ, dedicado a O Balcão , de Jean Genet. Na página 25, deparo-me com esta indicação de cena do próprio Genet: «Deverá encontrar-se um tom de dicção permanentemente equívoco, permanentemente falseado. Os sentimentos dos protagonistas, inspirados pela situação, são fingidos ou reais? (...) É preciso manter o equívoco até ao fim.» O sublinhado é meu. Na mesma frase, e a propósito de um momento de teatro, Genet não estabelece diferenças entre o que é real e o que é fingido. Pelo contrário, deseja que realidade e fingimento se confundam no palco. Em todos os palcos. O teatro, o lugar do fingimento por excelência, pode ser mais real do que a realidade. É exactamente essa a ideia de O Balcão .

Ratos do porão

No último discurso, o presidente da república aprofundou a (ridícula) metáfora do barco: dividiu-o em três classes e porão. (Se continuarmos a praticar a retórica, acho que vamos dar aqui .) Deve ser a isto que se referia a praga do chinês.

Caminhadas

Apenas uma pequena parte das caminhadas de Carl Seelig com Robert Walser é sobre literatura. Walser nem sempre está para aí virado e Seelig não o quer melindrar. Ainda bem. Assim, os temas dominantes deste livrinho são: geografia, meteorologia, comida.  Eles andavam de comboio mas principalmente a pé, para cima e para baixo, com sol e com chuva ( debaixo do guarda-chuva, Walser sente-se como em casa — um discípulo de Satie devia compor uma canção para esta frase) e ficavam esfomeados. Apesar da guerra, quase sempre conseguiam comer e beber bem: escalopes de vitela, rostï, merengues, queijos, vinhos. Walser fumava muito.  O livro é um documentário. Belo.

Carta da Sibéria

 

Definition for Ah

ah , inter. [OFr a or ah .] (webplay: pity). Exclamatory particle with the following nuances: A. Nostalgic; wishful; lamenting; entreating; appealing [sound accompanying a sigh.]  B. Irony; sarcasm; mockery; [similar to “aha” and “ah, but.”]  C. Surprise; wonder; [equivalent of “Oh!” and “O!”]  D. Endearing; admiring; adoring.  E. Sympathy.  Emily Dickinson Lexicon

O que o jovem Rossum inventou

DOMIN: (...) Que tipo de trabalhador é que pensa ser o melhor? HELENA: O melhor? Talvez aquele... aquele... que é honesto e dedicado. DOMIN: Não, na verdade, o mais barato. Aquele que tenha menos necessidades. O que o jovem Rossum inventou foi um trabalhador com o menor número possível de necessidades. Ele teve de simplificar. Descartou tudo o que não era usado directamente para o trabalho. Então, deitou fora o homem e fez o Robot. Karel Čapek, R.U.R. Tradução de Patrícia Paixão.

Tour de France, Tour de France

A forma como estou a praticar Cioran é muito revigorante; mais do que disciplina é todo um curso: depois de Dostoiévski,  Emily Dickinson, Bach, e não sei quantos dicionários de francês, eis que chega a vez de Swift. Vou começar pela releitura dos “ Preceitos para uso do pessoal doméstico e outros   textos ”.

Quatorze de novembro

Fui agora à rua fumar e passear o cão e estavam outras dezanove pessoas a fumar e passear o cão no mesmo metro quadrado. Tivemos de matar os cães para poupar espaço e exalar o fumo directamente nas bocas uns dos outros.  Rogério Casanova 

Auto-vigilância

A nova burocracia assume a forma não de uma função específica e delimitada, realizada por certos trabalhadores, mas invade todas as áreas de trabalho, cujo resultado é - conforme profetizado por Kafka -os trabalhadores tornarem-se nos seus próprios auditores, obrigados a avaliar o seu próprio desempenho. (...) A inspecção, quero eu dizer, corresponde precisamente à descrição que Foucault faz da natureza virtual da vigilância em Vigiar e Punir . É aí que Foucault observa de forma célebre que não é preciso que o local de vigilância esteja efectivamente ocupado. O efeito de não se saber se vamos ser observados ou não produz uma introjecção do dispositivo de vigilância. Agimos constantemente como se estivéssemos sempre prestes a ser observados. Mark Fisher, Realismo Capitalista - Não haverá alternativa?  Tradução de Vasco Gato.

Nome

Nas finanças, o funcionário dirige-se a mim usando um nome que não é o meu. Por lapso, mudou ligeiramente o apelido. Também acontece, por vezes, nas cartas e encomendas que recebo por correio. Já fui Amaro e Amora. Fico a pensar como será essa pessoa cujo nome é tão parecido com o meu, que tem a mesma morada, mas que só existe por engano na cabeça do funcionário. Será mesmo um engano?

Ponto, linha. Nada.

Natasha sai para comprar pão e deixa o pai e Jeanne a preparar o jantar — é uma estratégia de aproximação. Eles quase não se conhecem, sentam-se à mesa, um ao lado do outro, de frente para a câmara: Jeanne corta salame, Igor corta tomates. Nem prestei atenção ao que dizem, todo o interese vai para os movimentos dos corpos. É um dos clímaxes do filme (directo para a lista de cenas com pessoas a descascar e cortar coisas de comer). Mas o melhor do filme não é um ponto, é uma linha — algo que se desenrola do princípio até ao fim: não se passa nada (lista de filmes onde não se passa nada). Como diz Rohmer, quando parece que vai acontecer alguma coisa, não acontece. Tirando o desaparecimento e descoberta do colar (Hitchcock e Poe em versão primaveril), nada mais. Isso — chamemos-lhe buraco, ausência, vazio ou nada —, muito mais do que as conversas temáticas, é que faz de Conto da Primavera um filme extremamente filosófico (lista negra).

Alternativos e independentes

Já lá vai uma geração desde o colapso do Muro de Berlim. Nas décadas de 1960 e 1970, o capitalismo teve de se confrontar com o problema de como controlar e absorver as energias vindas do exterior. Hoje em dia, o capitalismo depara, aliás, com o problema oposto; tendo incorporado com demasiado sucesso a externalidade, como poderá funcionar sem um exterior que possa colonizar e do qual possa apropriar-se. (...) Veja-se, por exemplo, o estabelecimento de zonas culturais «alternativas» ou «independentes» estáveis, que repetem infindavelmente gestos mais antigos de rebelião e contestação como se pela primeira vez. «Alternativo» e «independente» não designam algo exterior à cultura dominante; ao invés, são estilos, os verdadeiros estilos principais, aliás, no seio da cultura dominante. Mark Fisher, Realismo Capitalista - Não haverá alternativa? Tradução de Vasco Gato.

Bufonaria

A conferência de imprensa de Rudy Giuliani no parque de estacionamento da Four Seasons Total Landscaping é tão extravagante e, ao mesmo tempo, tão conforme à verdade e tão eloquente. Uma pequena empresa de jardinagem junto a uma saída de Filadélfia. Entre um crematório e uma loja de livros e outros objectos para adultos ( Fantasy Island ).

Era apenas um recado

Traduzir deixa em nós restos doutra maneira de falar. Parece que alguém desconhecido decide as palavras e até o ritmo da frase, pelo menos durante um certo tempo. Sem querer, dou por mim a disparar palavras negativas de rajada : não, nunca, ninguém, nada, nem — todas na mesma linha, quase encostadas. Ultrapasso a  dupla negativa  e era apenas um recado.

Comédia de Deus

Henri Lefebvre escreve: «Em 1921, para um filme de Marcel Duchamp, é pedido a Man Ray que rape os pêlos púbicos da muito excêntrica baronesa Elsa von Freytag-Loringhoven; o filme foi destruído durante a sua revelação.» Os pêlos da baronesa aparecem várias décadas mais tarde na colecção secreta de João de Deus, no filme Comédia de Deus , de João César Monteiro.

Composto para o refrigério dos espíritos

Cioran é um tipo esquisito — nisto todos concordam. Está na filosofia como se estivesse sentado na esplanada do café, ensimesmado, sempre a ruminar nos mesmos assuntos, cabelo no ar, leituras e releituras a mais, praticando um francês de meteco, sem pensamentos excepcionais mas, acima de tudo, sem método nem maneiras (aliás, acho que é por isso que a academia e a crítica encartada o rejeitam ou, pelo menos, torcem o nariz aos seus aforismos aflitos). A objecção mais comum é que ele repisa o que já foi dito e pensado e é muito teatral (ahah! o espírito balcânico). Um chato ou um charlatão da disciplina que não chega aos calcanhares de não sei quem. Os ataques atingem o alvo, é verdade, mas apenas porque a noção de filosofia usada é bastante burocrática. Precisamos de um conceito mais dinâmico — os êmbolos do pensamento ao ritmo dos pedais . Se Cioran não diz (quase) nada de novo, di-lo, ainda assim, de uma forma incomum e torrencial. Privilegia a linguagem vulgar, as palavras banais da

Dia e noite

Muitas vezes ponho-me a pensar nos eremitas de Tebaida, que cavavam uma sepultura para aí derramar lágrimas dia e noite. Quando lhes perguntaram a razão da sua aflição, responderam que choravam a sua alma. Lágrimas e Santos, Emil Cioran (tradução a partir da versão francesa).

Ninguém responde

Na frutaria, dois ou três clientes escolhem, em silêncio, laranjas, maçãs ou dióspiros. De repente, uma mulher entra e pergunta em voz alta: «Ontem à noite, dormiram bem?» É uma mulher pequena, de uns setenta anos. Repete a pergunta, muito séria, plantada no meio da loja. Ninguém responde. Gostava de conseguir responder, mas não sei o que dizer. Talvez esteja simplesmente a sonhar que estou acordado.