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Cem anos depois

No noticiário da rádio, ouço um tipo a comentar as últimas informações sobre a possível transferência do treinador do Benfica para o Flamengo, do Brasil. O tipo não se cansa de repetir que «tudo isto é surreal». «É uma história surrealista!» «É surreal!» «É surreal!»  Como é que se chegou aqui? Como é que uma palavra de fogo se transformou numa coisa desprovida de peso e significado, usada apenas para embrulhar conversa fiada, frases balofas, peixe podre?

Baratas tontas

Nos últimos dias, o governo não se tem poupado a esforços para convencer as pessoas a saírem de casa e a fazerem compras. Apesar disso, as ruas e as lojas continuam quase vazias. Os portugueses estão a resistir ao desconfinamento. «Por causa do medo», dizem os jornais . «O Anjo Exterminador» desceu decididamente sobre nós em todo o seu negro esplendor. Há uns três meses, o filme de Buñuel seria ainda uma obra delirante e subversiva, um exemplo perfeito da regra surrealista de «abrir todas as portas ao irracional». Hoje, o frágil muro que separa o real do surreal caiu definitivamente. O mapa das correntes artísticas está de pernas para o ar. É fácil imaginar os corredores das universidades de artes e letras cheios de baratas tontas, a correrem desatinadas, para a frente e para trás.