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Mensagens

A mostrar mensagens de dezembro, 2020

Amanhã

Chuva, chuva, chuva sem fim. As paredes pingam, cursos de água atravessam o chão da cozinha, a roupa jamais secará. Amanhã, ao acordarmos após sonhos agitados, vamos ver-nos na nossa cama, metamorfoseados em monstruosos anfíbios.

Os mortos

O que me custa mais na tradução de “Lágrimas e Santos” é não poder discutir com Cioran a escolha e a ordem das palavras. É certo que com a minha idade já aprendi a falar com os mortos e posso usar essa via, mas não é a mesma coisa. Os mortos são pouco dialogantes, não se querem chatear: aferram-se à negativa ou concordam em demasia — desprezam o conhecimento.

Bigode

A relação entre Marinetti e os seus pares cubo-futuristas russos nunca foi pacífica. Marinetti criticava nos eslavos o interesse pelas profundezas cósmicas da religião, incompatível na sua perspectiva com o Futurismo. Os russos, por seu lado, não apreciavam as maneiras, as intervenções belicosas e o bigode de Marinetti.

So much less personal!

(...) I find myself marvelling less over the sweeping insights of the novel and more over the intricate delights of its language and form. I keep thinking about the shocking velocity of Woolf’s sentences, how they rocket off into the sky, trailing sparks of emotion behind them. I keep thinking about how beautifully, how gracefully, how ecstatically, even, she makes use of dashes and commas and parentheses to capture the halting stutter-step of feeling being transmuted into thought. (...) Jenny Offill on Mrs. Dalloway

Nós somos de confiança

- Então, Armando, conta lá, o que é que estás a escrever agora? A temida pergunta acabou por chegar. Já tinham terminado a refeição e encontravam-se na sala de estar da residência barranquina, a tomar café. Pela janela entreaberta via-se o farol do molhe e a névoa invernal, que subia das falésias. - Não te faças desentendido - insistiu Óscar. - Já sei que os escritores às vezes não gostam de falar do que estão a fazer. Mas nós somos de confiança. Dá-nos essa primazia. Armando pigarreou, olhou para Berta como que dando a entender que os amigos estavam a ser inoportunos, mas, acendendo o cigarro, decidiu-se finalmente a responder. - Estou a escrever um conto sobre a infidelidade. O tema não é muito original, como sabem. Já se escreveu tanto sobre a infidelidade! O Vermelho e o Negro , por exemplo, ou Madame Bovary e Anna Karénina , para citar apenas duas obras-primas... Mas eu sinto-me atraído justamente pelo que não é original, pelo vulgar, pelo já trilhado... A este respeito, interpret

Truz-truz

Nomes de algumas lojas da Rua Serpa Pinto: Confeitaria Bom Sonho, Ourivesaria Joaninha, Ferro Mago, Truz Truz Pão Quente, Ernestu’s, Café Moranguinho, Bufete É-Na-Ora, Agência de Viagens Mar de Prata, Hortinha Frutaria, Clínica Fisiátrica Calvário do Carvalhido, Radical & Boémio Shop, Best Deals Outlet.

Alvorada encantada

Aproveito o espírito natalício para escrever uma carta aberta e discordante aos colegas e gerentes da empresa onde ainda trabalho. Sem dúvida, devia ter enveredado pela carreira sindical.

Perdeu o seu emprego durante o último ano?

Recebi um email do jornal Público sobre a oferta de 2500 assinaturas digitais para desempregados.  Não sei se é um presságio.  Depois do lay off entrei e continuo ainda no apoio extraordinário à retoma progressiva de actividade que é o eufemismo pomposo para pré-desemprego — esse maravilhoso limbo onde ganhamos tempo para leituras.

Manual de auto ajuda

Às vezes parece-me que há demasiada soberba em "falhar melhor". Porquê melhor? Falhar não basta?  Não ser elegível para nada. Essa é uma boa meta; cumpri-la sem peito inchado. Pensar menos. Se a isto podemos chamar uma resolução.

Los Angeles

As notícias sobre a candidatura de Vitalina Varela  a Melhor Filme Internacional nos Prémios da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas são inexactas. Falam em corrida aos Oscars quando os filmes de Pedro Costa seguem sempre uma marcha lenta e pesada. Nada dizem sobre a capacidade de Vitalina Varela transformar a má sorte de chegar tarde numa característica de força e espanto. E deixam para o último parágrafo a data da cerimónia: 25 de abril de 2021.

Roubo

Estou a tentar traduzir um autor chileno que foi acusado várias vezes de roubo. Não de roubo literário, mas de bens materiais: automóveis, câmaras fotográficas, livros. Diz-se que uma das vítimas foi Nicanor Parra. O autor levou da biblioteca de Parra um livro raro e valioso sem intenção de o devolver. Outro roubo famoso foi o de uma carrinha da polícia, que o autor desfez contra um muro. Na literatura, foi muito mais discreto: trabalhou obsessivamente nos seus textos, publicou muito pouco, não deu entrevistas e mergulhou numa espécie de anonimato voluntário. A biografia atribulada do autor transformou-se no seu «livro» mais popular. Talvez a intenção fosse justamente essa: desviar a atenção do que é essencial, quer dizer, dos transportes misteriosos da literatura. Um pouco como Walser que exigia a Carl Seelig um silêncio absoluto sobre os seus livros. Como se os textos nunca tivessem existido ou tivessem sido roubados e traficados num mercado negro fora deste mundo.

O expediente de uma grande princesa

Quando Maria Antonieta disse ou não disse “comam brioches”, isso devia ter sido entendido literal e metaforicamente. Não como um aparte de alguém que está alienado do real, mas como mais um ponto a reivindicar: liberdade, igualdade, fraternidade e riqueza para todos.  Com o tempo, será possível chegar a uma definição de riqueza justa? Nada em excesso, nada que falte.

Begin with A to remain intact

Not only is it necessary to prove the crystal but the crystal must prove permanent by fracture. Extremamente grata a Brian Dillon por me fazer descobrir An Essay on Virginia , de William Carlos Williams. Nota: O ensaio de William Carlos Williams é de 1925. Passei algum tempo a pesquisar e não encontrei referência a nenhuma tradução, nem cá nem no Brasil. Apenas citações de uma frase ou outra, no fundo como o exemplo de Dillon —  nada mais. Um texto como este e ninguém sentiu a necessidade de o traduzir? Não acredito.

Covelo

Levanto-me cedo e saio. Preciso respirar um pouco antes de retomar o trabalho. Para evitar o ruído e o fumo dos carros, escolho ruas secundárias até chegar ao Covelo. Na pequena alameda do parque, e seguindo as «subtis voltas do acaso», as árvores parecem-me fazer raccord com a sequência inicial de Belle de Jour . Estou certo de que, a qualquer momento, começarei a ouvir os guizos de uma carruagem. Mas nada acontece. Não é um Outono ameno. Não é Paris. Não é a luz de Buñuel. Volto para casa. Afundo-me no trabalho. Mais um dia.

De Vaugelas a Heidegger

Só me interessei realmente por Heidegger por volta de 1930 quando era estudante da Universidade de Bucareste. Sein und Zeit e especialmente Was ist Metaphysik foram os textos que me seduziram. Dois acontecimentos, um menor e o outro capital, refrearam o meu entusiasmo. Na época tinha publicado um artigo sobre Rodin num estilo mais ou menos heideggeriano que, com razão, exasperou um jornalista. A violência do seu ataque, que foi uma verdadeira execução, serviu-me de lição. Basta de palavreado ... genial! O segundo acontecimento foi a descoberta de Simmel, cuja clareza curou-me para sempre do jargão filosófico. A vontade de ser profundo, de fazer profundo, consiste em forçar a linguagem evitando a todo custo a expressão normal, a expressão inevitável. Nenhuma língua como o alemão favorece esse excesso, esse abuso. Obviamente, o génio de Heidegger é um génio verbal. A sua habilidade de sair de um impasse vem da facilidade em camuflá-lo usando todos os recursos da linguagem, inventando

O homem de cristal

“Encontros com Paul Celan” foi o primeiro texto de Cioran que publiquei neste blogue. Já por diversas vezes comecei a traduzi-lo; avançava um pouco e abandonava a tarefa — habituada a ouvir Cioran em francês, tenho dificuldade em reconhecê-lo na língua inglesa. Mas o texto tem qualquer coisa que me atrai profundamente; num certo sentido é uma carta de amor. Obriguei-me a terminar.

Dois excertos

[Um] O país a que pertencemos não é um país que amamos, como é dito geralmente numa retórica vulgar, mas aquele de que podemos sentir vergonha. A vergonha é uma ligação mais forte do que o amor. [Dois] O meu avô [o histólogo Giuseppe Levi] contou-me uma história incrível, ainda mais incrível por ser um cientista a contá-la. A história é esta: ele foi à Índia quando ainda era jovem e viu na rua um faquir. E quando o faquir levantou um braço, uma palmeira nasceu do chão. Ouvindo isto, fiquei incrédulo e perguntei ao meu avô: Mas como é possível? E o meu avô encolheu os ombros. Um gesto que interpreto como uma atitude de profundo respeito pelos factos, ou que aos olhos do observador se apresentam como tal, mesmo pelos mais inexplicáveis. Carlo Ginzburg, em entrevista a António Guerreiro, na revista Electra , n.º 10.

Imagine o leitor que não é o leitor

Juan Luis Martínez (con tilde), a quien le gustaba que lo confundieran con otro Juan Luis Martínez (sin tilde), parece capaz de proyectar su baile de identidades incluso post mortem; así, la página francesa de Wikipedia no sólo es tacaña con la información, sino que también lo confunde con un tercer Juan Luis Martínez o Martinez (sucesivamente con y sin tilde), que habría sido el director de orquesta de origen chileno encargado de orquestar las canciones de Luis Mariano. El “principio de incertidumbre” tan propio del proyecto poético de Martínez funciona así a pleno. No es de extrañar que, en una entrada de La nueva novela titulada “La personalidad”, plantee el siguiente problema: “Suponga que usted no es usted: encuentre un reemplazante”. Guillaume Contré, a propósito da vida e obra do poeta chileno Juan Luis Martínez (1942-1993).

Schepka

O Tchekista , a obra-prima de Vladímir Zazúbrin, é o livro mais terrível que li em toda a vida.  A seguir, tinha decidido ler Djan ou a Alma , de Platónov. Não consigo.  Lá fora, cai uma chuva miudinha, gelada, de aço. Parece que nunca parou de chover.

Subir na vida

Ontem à noite, vimos L'assassino , de Elio Petri. A história de um antiquário de origens modestas que compra e vende objectos antigos com o mesmo rigor com que mantém um activo comércio íntimo com mulheres «de boas famílias». O cenário é o da cidade de Roma, a eterna loja de antiguidades da velha Europa. O objecto que permite à polícia desvendar o crime é um antigo relógio de ouro que o protagonista oferece à vítima, na noite do assassínio. Os minutos, as horas, os anos avançam. Os relógios passam de mão em mão, de geração em geração, entre vítimas e culpados - quem são as vítimas, quem são os culpados? -, e a história pouco muda. Sobe-se na vida, desce-se ao inferno. (Adenda.) No último plano de Era uma vez um melro cantor , de Otar Iosseliani, lembro-me agora, um relojoeiro - numa série de gestos parecidos com os de um cirurgião - devolve à vida um relógio que tinha parado. Terminado o filme, a máquina do tempo volta a funcionar. O mundo retoma a sua marcha. Culpados e inocentes,

Poesia

Perpétua poesia sem palavras ; silêncio que ressoa por baixo de mim mesmo. Porque não tenho o dom do Verbo? Ser estéril com tantas sensações!  Qualquer laivo de poesia envenena a prosa e torna-a irrespirável. Renunciei, entre outras coisas , à poesia. Há meses que vivo todos os meus momentos de angústia na companhia de Emily Dickinson. Sinto que vou reconciliar-me com a poesia. Não podia ser de outra forma: não consigo pensar senão em mim mesmo... O meu gosto doentio por Tácito, a necessidade que tenho de me alimentar de horrores. Em seguida, a eloquência e a poesia da indignação. Os Anais e Macbeth , os livros, não, as imagens do meu rame-rame quotidiano. A poesia propriamente dita parece-me cada vez mais inconcebível; já não posso suportar senão a que é implícita, indirecta, que precisamente não é dita , refiro-me à poesia sem os meios e os subterfúgios que habitualmente usa. Deus, “o nosso velho vizinho” como lhe chama Emily Dickinson. Hesito. S

O cronista

O Kaiser vai ser julgado. A sala para o efeito dispõe apenas de um estrado e uma cadeira, e justamente diante dela vão interrogando as testemunhas. A testemunhar agora estava uma mulher com a sua filha pequena, que ia explicando o quanto o Kaiser a tinha arruinado com a sua guerra. Para o comprovar mostrou dois objectos que eram tudo o que tinha. O primeiro era uma vassoura com um cabo comprido; com ela a mulher limpava a casa. O segundo era uma caveira. "O Kaiser deixou-me tão pobre - disse ela - que não tenho outro recipiente com que possa dar de beber à minha filha." Walter Benjamin, Sonhos . Tradução José Aigner.

Nada de minhocas

Estou a traduzir alguns textos dos Cadernos de Cioran sobre poesia para contrapor à prosa e dinamizar a dialéctica discordante do filósofo.  Um deles termina assim: tant d’années, toute une vie — et aucun vers !   É fácil passar para: tantos anos, toda uma vida — e nem um verso!  Mas o tradutor automático da google baldou-se para o contexto do parágrafo anterior e seguiu outra pista: tantos anos, uma vida inteira — e nada de minhocas!   Minhocas em vez de versos; acho que Cioran era capaz de gostar deste humor involuntário.