Na Paixão Segundo São Mateus há uma cena em que os discípulos ficam indignados por uma mulher derramar bálsamos valiosos sobre a cabeça de Jesus. Alegam que é um desperdício; podiam vendê-los e dar o dinheiro aos pobres. Jesus defende a mulher e diz: Ihr habet allezeit Arme bei euch, mich aber habt ihr nicht allezeit (pode traduzir-se assim: tereis sempre pobres, mas a mim nem sempre me tereis). Parei aqui porque me pareceu que esta intervenção mostrava um traço de orgulho (é para estes atalhos que nos empurram as leituras de Cioran). Mas passado um bocado começou a emergir outra revelação, talvez até mais perigosa. Na primeira parte da frase, nessa imagem de uma pobreza perpétua ( allezeit , que se pode traduzir por “sempre”, é a justaposição das palavras “todo” e “tempo”), percebi que no fundo, no fundo do fundo se for preciso forçar o afastamento, este Jesus é um céptico.
de Cristina Fernandes e Rui Manuel Amaral