Avançar para o conteúdo principal

Mensagens

A mostrar mensagens com a etiqueta Chantal Akerman

c'est ça c'est ça

Depois da lista da Sight & Sound, o Joker (episódio 111, 25 janeiro de 2024, rtp 1).

Sobre Chantal Akerman

Imaginei tantas vezes a estreia de  No Home Movie.  Mas nunca assim...  Quero falar-vos de Chantal. Falar-vos de tudo o que me deu, tudo o que me ensinou, tudo o que partilhamos. Contar-vos como era radiante, inteligente, surpreendente e também divertida... Diz-se muitas vezes de Chantal que tinha princípios estéticos. Bom, eu acho que os princípios nos protegem, e Chantal não se protegia. Confiava no que estava para vir, sabia acolher o acaso.  Lembro-me de uma história que lança alguma luz sobre a sua forma de trabalhar. Durante a preparação de La Folie Almayer , ela precisava de um porto. A assistente perguntou-lhe se queria um porto grande ou um porto pequeno. Ela respondeu «um porto grande». Mais tarde, perguntamos-lhe se tinha a certeza que era isso que queria, porque talvez um porto pequeno fosse mais acolhedor. Recordo-me que íamos pela rua e Chantal estava ao telefone. Parou, bateu com o pé e disse «quero um porto grande, foi o que disse, não me peçam para explicar porquê». Nã
Chantal Akerman: (...) Quando estava a filmar D’Est na Ucrânia, ficamos sem gasolina. Uns agricultores sugaram gasolina dos seus carros para nos dar, depois não queriam que fôssemos embora, prepararam-nos um banquete. Por mais pobres que fossem, conseguiram juntar o suficiente para nos oferecer uma refeição de rei. Não conheciam Prokofiev ou Shostakovich, mas sabiam que quando alguém está com fome é preciso dar-lhe de comer. Estaline «esqueceu-se» de planear as sementeiras e provocou uma fome na Ucrânia que fez 7 milhões de mortos. E, no entanto, ele era de lá, da Ucrânia. Nada é simples. Estes mesmos camponeses poderiam ter massacrado judeus durante a guerra. Estes mesmos ou outros.
D’Est , de Chantal Akerman, não teve estreia comercial em Portugal, apesar da RTP estar envolvida na produção. O filme, de 1993, passou pela primeira vez no nosso país no dia 15 de Janeiro de 2002, na Cinemateca Portuguesa (inserido no ciclo «Cinema e Pintura» / Módulo III, apresentado por Dominique Païni). Alguns sites classificam-no como muet .

Enquanto ainda é tempo

Gostava de fazer uma grande viagem através da Europa de Leste, enquanto ainda é tempo. Rússia, Polónia, Hungria, Checoslováquia, ex-Alemanha de Leste, até à Bélgica. Gostava de filmar por lá à minha maneira documental a roçar a ficção. Tudo o que me toca. Rostos, ruas, carros que passam e autocarros, estações de comboios e planícies, ribeiras ou mares, rios e riachos, árvores e florestas. Campos e fábricas e mais rostos, comida, interiores, portas, janelas, preparação de refeições. Mulheres e homens, jovens e velhos que passam ou que param, sentados ou de pé, às vezes até deitados. Dias e noites, chuva e vento, neve e a Primavera. Tudo isso que se transforma docemente, ao longo da viagem, os rostos e as paisagens. Todos esses países, em plena mutação, que passaram por uma história comum depois da guerra, ainda muito marcados por essa história nas próprias sinuosidades da terra, mas cujos caminhos agora divergem. Gostava de gravar os sons dessa terra, fazer sentir a passage

Uma certa alegria enterrada

Uma das piores coisas que podem fazer aos filmes de Huillet e Straub é cortar-lhes o diálogo, apresentá-los como obras cinematográficas desgarradas ou, pior ainda, como  objectos artísticos . Esse isolamento não é mais do que um caminho de redução, esquecimento e morte. Pela minha parte, faço tudo o que posso para os aproximar do ar livre, dos outros, dos meus pequenos gestos diários (ajudam-me tanto a ver a ouvir e a descobrir no fundo de tudo uma certa  alegria   enterrada ). No sábado levei Karl Rossmann ao Nimas para falar de O sangue .  Amanhã, levo o método de Trop tôt, trop tard para encostar a D’est,  de Chantal Akerman .

Pratos do dia

Fotografias da Linha de Sombra

Três filmes

Por razões práticas, fui rever Da Vida das Marionetas , de Bergman (1980). O que une este filme a Warum läuft Herr R. Amok? , de Fassbinder (1970), e Jeanne Dielman , de Akerman (1975), é muito mais do que um ténue fio agitado pelo ar daqueles tempos. (Escrevo «ar daqueles tempos» para facilitar.) O que os une é uma corda de aço.

Apenas a matéria vida era tão fina

Noutros tempos teria ido à Cinemateca ver Retrato de uma rapariga do fim dos anos 60 em Bruxelas , mas agora já não me apetece viajar mais que 20 quilómetros e acabei por ver o filme no pequeno ecrã do iPad . A experiência até nem é má, quer dizer, esta versão reduzida e um bocado estragada combina com a história de evasão de Michèle, partilham o mesmo carácter improvisado e precário — quase que podemos dizer que são feitos da mesma matéria. Logo no início, e depois de uns planos hitchcockianos, Michèle senta-se num café, acende um cigarro e começa a rabiscar uma justificação para faltar às aulas. Escreve em nome do pai (aquele homem que a levou até à paragem de autocarro e de quem ela fala muito ao longo do filme). Começa por explicar que a filha está gripada. Corrige: teve que ir a um funeral, a avó morreu. Afinal quem morreu foi o tio. Não, foi a tia que morreu a seguir à morte do tio. Segue-se a morte do pai e por fim a morte da própria Michèle: Veuillez excuser ma fille Michèle,

Retrato de uma rapariga do fim dos anos 60 em Bruxelas

— Não sentes que está para acontecer alguma coisa?

Uma mulher em Veneza

Gosto tanto da fotografia escolhida para a contracapa d' Uma família em Bruxelas . Foi tirada em 1982, no Festival de Cinema de Veneza (baralhei-me com outra de Cannes, de outra pessoa), por Raymond Depardon.  Parece uma imagem convencional a preto e branco, com linhas certas e pose estudada. E ao princípio é isso, mas depois não sei explicar porquê, esqueço-me da praia e das barracas e já só vejo aquele corpo tenso, uma mão no bolso, a outra com o cigarro, os olhos desconfiados. Desconfiança de quê? Da praia? Do Festival? Do cinema? Da vida? E essa desconfiança não pára de aumentar, e já passou para mim, como se houvesse um diálogo ou uma ligação qualquer e quase que dá para sentir o mistério daquela mulher, e — deve ser esse o milagre das imagens — por um breve momento, oh, muito breve, Chantal está toda aqui .

Tu sabes, tu és uma mulher.

Jeanne Dielman, 23, quai du Commerce, 1080 Bruxelles é um objecto de muitas perplexidades: endógenas, históricas, cinematográficas, e outras ainda mais variáveis pois prendem-se com as características de quem assiste à projecção, como se o filme nos convocasse para qualquer coisa. Ainda antes da primeira imagem, o título identifica e regista Jeanne numa morada: cais do comércio, 23 . Mais do que nomear, é apresentada uma sinopse plena de significados. Mas as perplexidades continuam: como é que uma miúda de vinte e cinco anos consegue ter uma visão tão precisa e profunda do quotidiano de uma mulher de meia idade? Como é que ela sabe a este ponto? Como é que consegue detalhar cada movimento do corpo de Delphine Seyrig e ao mesmo tempo deixar na sombra tudo o que se passa na cabeça. Quando a actriz pede explicações 1 , Chantal diz que ignora o que essa mulher pensa, apenas conhece os seus gestos. Talvez seja este avançar teimoso no não saber, esta decisão de afrontar um enigma, que t

As sensações estão a voltar

Tens razão, Cristina . Depois de ver  Jeanne Dielman , não é possível ler, ir ao cinema ou olhar para o tecto, sem nos ocorrer uma cena, um gesto, um som do filme. Há mais uma passagem de Beckett, desta vez em Eu não , que me empurra para a obra de Chantal Akerman. Continuo a achar que o desvio na rotina de Jeanne e o início da derrocada começa fora de campo, no quarto com o cliente, a meio do segundo dia. Talvez ela tenha reconhecido em si qualquer coisa que ultrapassava a simples relação prática com o homem. A passagem de Beckett (tradução de Isabel Lopes): (...) reconhecê-la como sua… a voz como sua… mas também lhe vem ainda… ainda uma ideia… assustadora… oh muito depois… breve luz que se fez… ainda mais assustadora se possível… de que as sensações estão a voltar… imaginem!... as sensações estão a voltar!... a partir de cima… depois a apoderar-se para baixo… da máquina toda… mas não… ao menos isso… só a boca… a face… até ver… ah!... até ver… depois dizendo para si própria… oh muito

Incendiar o mundo

A ambiguidade é um grande trunfo de Jeanne Dielman . Podemos levar o filme para onde quisermos, ele segue-nos, obedientemente ou com relutância, mas depois volta à sua forma original — intacto, pronto para outro devaneio. Podemos andar nisto muito tempo.  Hoje de manhã, à revelia de Chantal, durante a viagem de metro ocorreu-me que os dois últimos planos podem ser uma imagem do que se passa na cabeça de Jeanne. Nesta versão, o crime e a pausa depois do crime não são executados, são apenas idealizados ou talvez seja melhor dizer: potencializados . Claro que isso mostra-nos uma personagem ainda mais perturbada porque acumula ideias revolucionárias num sítio obscuro da sua cabeça — uma mulher que não mata aquele homem mas é capaz de incendiar o mundo inteiro amanhã.

O casaco sem botão

Apesar de ser um filme terrível, Jeanne Dielman tem duas situações cómicas.  Numa das vezes em que vai deixar ou buscar a bebé, a vizinha conta que não sabe o que há-de fazer para o jantar (Jeanne não tem esse problema porque segue um menú semanal rígido). Estava no talho sem saber o que comprar, desorientada repetiu o pedido da cliente anterior e acabou por trazer um quilo de vitela, mas em casa ninguém gosta de vitela — por ela comia só uma sandes e pronto. A vizinha fica sempre atrás da porta, nunca a vermos, só ouvimos a voz e é a voz de Chantal.  A outra é quando Jeanne dobra e embrulha um casaco com muito cuidado numa folha de papel (é o que tem nas mãos na fotografia) e percorre várias lojas à procura de um botão, mas não o consegue encontrar. Uma das empregadas diz mesmo que nunca viu um botão igual. A determinada altura ela explica que é um casaco como novo do sobrinho que vive no Canadá que só agora serve ao filho, mas como ela sempre ouviu dizer que a Europa está muito atra

Movimento de um corpo que cai

A partir do segundo dia, Jeanne Dielman começa a desempenhar as suas tarefas de um modo mais distraído: esquece-se de as executar ou não as executa pela ordem adequada, nem no tempo certo, nem com a intensidade aconselhada. Lentamente começa a fazer tudo um pouco mais rápido. Podemos não saber o que aconteceu, mas apercebemo-nos que essa aceleração significa que estamos perante um corpo em queda livre.

Jeanne Dielman

Passou uma semana e continuo a pensar no filme de Chantal Akerman como se tivesse acabado de o ver. Já me afastei da tradução de Uma família de Bruxelas,  da mãe de Chantal e de tudo que vem por arrasto, mas continuo com muitas imagens demasiado presentes na cabeça. O cão de porcelana que está na cristaleira da sala de jantar, por exemplo, não me dá tréguas. Assim como o reflexo do néon azul. (Isso e o plano de entrada no prédio quando Jeanne passa pela porta quadriculada intermédia junto às caixas de correio que fica entreaberta e depois continua a afastar-se da câmara, entra no elevador e corre as duas portas de grades do elevador — todas essas linhas que mostram a enclausura em que ela se fecha — são o lado formal e hitchcokiano do filme?) E também os sons dos interruptores, dos tacões e dos cabides, que funcionam quase como um metrónomo.   Em certo sentido, Jeanne Dielman faz-me lembrar Der Lauf der Dinge , de Peter Fischli e Weiss — tem o mesmo carácter hipnótico. Prende-nos a qu