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Una salida al campo

A influência de Rohmer em Têm de vir vê-la é visível e, acho que o posso dizer, assumida: homens e mulheres a conversarem sobre isto e aquilo, a cidade e o campo, os gestos vulgares do dia a dia, e até o livro de um filósofo; tudo isso confere o parentesco.  Mas, talvez porque não falam em francês, as personagens de Jonás Trueba são mais soltas, o que dizem é mais inconsequente ou fica a pairar.  Só no fim, quando Elena (maravilhosa Itsaso Arana) se afasta e se agacha para fazer chichi entre as ervas e desata a rir  — uma das cenas mais bonitas que vi nos últimos tempos no cinema —, percebi de onde vem esta doçura que se espalha pelo filme como um som ou uma dança. Ah!
Este excelente Chanturgue, sem dúvida que Pascal o deve ter bebido, já que era de Clermont. O que lhe critico não é ter-se privado dele — sou a favor da privação, do ascetismo, da Quaresma, sou contra a abolição da Quaresma —, é não lhe ter prestado atenção quando o bebia. Como estava doente, seguia um regime e só comia coisas boas, mas nunca se lembrava do que tinha comido. — Sim, é a sua irmã Gilberte que conta isso. Ele nunca disse: "Isto está mesmo bom!” — Pois bem, eu digo: isto está mesmo bom! E não reconhecer o que está bom é um mal, falando cristãmente. Eu digo que é um mal.

4 Aventuras de Reinette e Mirabelle

Sem a avalanche habitual de palavras, os filmes de Rohmer seriam outra coisa. E, no entanto, em Reinette e Mirabelle busca-se o silêncio. Um silêncio que só é possível «escutar» longe das cidades e durante um breve minuto, na hora azul, quando os animais nocturnos adormecem e os diurnos acordam. Mesmo assim, há um motor que se ouve ao longe. Ou quando Reinette quer provar, num jogo com Mirabelle, que é capaz de passar um dia inteiro sem dizer uma palavra. Reinette ou Rohmer em modo auto-irónico?

As mãos

Um detalhe repetido mil vezes em Conto de Verão , de Éric Rohmer: os movimentos nervosos das mãos de Gaspard. Ele não sabe o que fazer com as mãos. Parece querer escondê-las ou apagá-las a todo o custo, como se o resto do corpo quisesse ver-se livre daqueles trambolhos, que atrapalham e que arrasta consigo contra a vontade. Eu sei que é um truque simples para dizer, sem palavras, que Gaspard é um jovem inseguro. Mas não é só isso. Tenho mais do dobro da idade do personagem e reconheço em mim os mesmos gestos. Um velho operário talvez diria que são os gestos de alguém que nunca trabalhou numa linha de produção. Talvez o marinheiro do filme dissesse uma coisa parecida: são as mãos de alguém que nunca precisou de içar velas ou lançar as redes em alto mar.

Memorabilia de cinema

Fomos ao Campo Alegre rever o Conto de Primavera . No regresso, junto aos contentores do lixo, à entrada da Rua do Gólgota, estavam três cadeiras (uma delas partida), uma cama com as peças separadas, um colchão, duas mesas de cabeceira (sem puxadores nas gavetas) e uma cómoda. Parecia um dos cenários do filme, desmontado e descartado. Trouxemos as cadeiras que estavam prestáveis. Vamos chamar-lhes as cadeiras Éric Rohmer.

(como nas ilhas)

Verão tardio é o verão já fora da estação; atrasado; serôdio (palavra formidável para usar nos debates parlamentares). Mas se seguirmos a tendência deste outubro suave, acho que podemos arrastar a expressão para outro significado: o verão que só vem à tarde, como no filme do Rohmer; uma ocupação meteorológica em part-time (como nas ilhas).

Cinéma vérité

Um filme com tantas coisas interessantes — o mar, livros, pernas, vasos de porcelana,... — e fui logo reparar nas manchas na camisa azul de Daniel. Depois da nódoa de gordura nas calças de Pierre Wesselrin  e dos salpicos de tinta nos jeans de Chloé , parece-me que há um padrão que merece ser investigado — para além da moral, ou imanente à moral?  Por outro lado, isto é, se invertermos a perspectiva, talvez as manchas digam mais sobre quem as descobre do que quem as exibe? Sim e também pode ser o princípio de um novo tipo de crítica cinematográfica. Allons-y!

Pequena crónica de costumes

Ontem fintei o hábito e vesti uma blusa às florzinhas. Mesmo assim não consegui bater a elegância das personagens d' O Joelho de Claire (deve ser influência do lago de Annecy). Enquanto bebia o café junto às escadas de Ricardo Jorge, vi uma mulher a sair do bingo com um vestido de padrão vichy azul — parecia uma das clientes habituais do Trindade antigo; tinha pinta para o filme de Rohmer mas trocou o cinema pelo jogo.  Para A Coleccionadora , levo a t-shirt da praia.

Manchas de tinta

Dava para fazer um desfile com as roupas que aparecem em L’ amour l’après-midi : as camisolas de gola alta de Frédéric, a camisa axadrezada que a empregada o convence a comprar (fica-lhe bem), os jeans e os variados casacos de Chloé, o vestidinho burguês de Hélène, o casaco verde de Martine, o fato azul claro que Chloé veste para impressionar Frédéric ou os vestidos camiseiros que experimenta na loja onde trabalha, os conjuntos das mulheres que se cruzam com Frédéric na rua ou no sonho, etc., etc..  Eric Rohmer preocupa-se tanto com o guarda-roupa (percebe-se bem o título do texto que ele escreveu sobre O Rio , de Jean Renoir) que acrescenta pequenos defeitos na roupa de Chloé: o casaco vermelho forrado a pelo descosido no ombro direito e umas manchas de tinta na perna esquerda dos jeans desbotados. Quase não se vêem, mas parece que é aí, mesmo à superfície, que se esconde o segredo inefável de Chloé (ou de Zouzou, vá-se lá saber).

Metamorfose

Já passa das duas da manhã. Ainda estou a remoer O Signo do Leão , a primeira longa-metragem de Éric Rohmer, que fomos ver ao Campo Alegre. Claro que não é a nódoa de gordura nas calças de Pierre Wesselrin que determina a sua «queda». Mas essa espécie de mancha original, impossível de limpar ou disfarçar, incrusta-se de tal maneira no personagem que, a certa altura, confunde-se com ele. Pierre Wesselrin transforma-se numa mancha indesejável, um ponto sujo na paisagem burguesa de Paris.    

Ponto, linha. Nada.

Natasha sai para comprar pão e deixa o pai e Jeanne a preparar o jantar — é uma estratégia de aproximação. Eles quase não se conhecem, sentam-se à mesa, um ao lado do outro, de frente para a câmara: Jeanne corta salame, Igor corta tomates. Nem prestei atenção ao que dizem, todo o interese vai para os movimentos dos corpos. É um dos clímaxes do filme (directo para a lista de cenas com pessoas a descascar e cortar coisas de comer). Mas o melhor do filme não é um ponto, é uma linha — algo que se desenrola do princípio até ao fim: não se passa nada (lista de filmes onde não se passa nada). Como diz Rohmer, quando parece que vai acontecer alguma coisa, não acontece. Tirando o desaparecimento e descoberta do colar (Hitchcock e Poe em versão primaveril), nada mais. Isso — chamemos-lhe buraco, ausência, vazio ou nada —, muito mais do que as conversas temáticas, é que faz de Conto da Primavera um filme extremamente filosófico (lista negra).

O vaso de louça chinesa

Nenhuma moral, por mais firme que seja, pode manter-se intacta se cair com estrondo no chão, como uma peça de louça chinesa. Um vaso Song muito raro transforma-se prontamente num monte de cacos.

To a Green God

Num dos monólogos de Charles Cros , O Dia Verde , o protagonista, Sr. Galipaux, é um empregado de escritório parisiense, que decide acompanhar um casal amigo num passeio ao campo. É sábado, dia de folga, e o apelo da natureza é irresistível. “Oh! o ar, a verdura, correr, pular, dançar, cantar, lalai, lalai, um fato leve, o meu panamá e ala que se faz tarde!” Pouco a pouco, porém, o suave sonho de uma digressão pelos bosques, transforma-se numa espécie de pesadelo verde. Não é apenas a natureza que é verde, tudo à sua volta parece plasmado nessa cor. As pessoas estão vestidas de verde, há um papagaio verde, a comida é verde, as mesas e as cadeiras da casa de pasto são verdes, o absinto é verde, as casas têm portadas verdes, tudo, de uma maneira ou de outra, e em graus diferentes, é verdíssimo. Num só dia, o personagem percorre todos os círculos do inferno verde, acabando na cama com icterícia, "verde como puré de ervilhas". Em O Raio Verde , de Eric Rohmer, inspirado no l