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Mensagens

A mostrar mensagens de março, 2020

FIM

(1911) Tomados de temor e de suspeitas, transtornada a mente e os olhos aterrados, nos consumimos e planeamos que fazer para escaparmos ao seguro perigo tão atroz que se aproxima. Mas, erro nosso, não é isso que aí vem. Eram mentiras as notícias (ou não as ouvimos ou entendemos mal). Outra desgraça que não suspeitámos, súbita, fulminante, se abate sobre nós, e indefesos – já não há tempo – nos apanha. Konstantinos Kaváfis 145 Poemas, tradução de Manuel Resende, edição FLOP. 

How are you coping with the coronavirus lockdown?

— So far, so good. We’re up near Corralitos, California, in a shelter-in-place zone, and are doing that. Just staying home. Feels strangely nineteenth century up here. Everything has slowed down and the trees are looking prettier and the sky seems like an old friend whose beauty you never fully appreciated, and so on. Feels like this thing, for all its horrors, might be a chance for the world to take a breath and go, “Wait, why have we been living this way?” (...) * In this, you are, and I am, I hope, like cave people, sheltering a small, remaining trace of fire through a dark period.

Procurar às escuras

E aquilo sobre o qual não devemos deixar de reflectir é a necessidade de religião que a situação faz surgir. É indício de tal, no discurso insistente dos media, a terminologia tomada de empréstimo ao vocabulário escatológico que, para descrever o fenómeno, usa obsessivamente, sobretudo na imprensa americana, a palavra «apocalipse» e invoca, explicitamente, o fim do mundo. É como se a necessidade religiosa, que a Igreja já não está em condições de satisfazer, procurasse às escuras um outro lugar de consistência e o encontrasse naquilo que é, de facto, a religião do nosso tempo: a ciência. Esta, como qualquer religião, pode produzir superstição e medo ou, em qualquer caso, ser usada para disseminá-los. Nunca como hoje se assistiu ao espectáculo, típico das religiões nos momentos de crise, de opiniões e prescrições diferentes e contraditórias, que vão desde a posição minoritária herética (também representada por cientistas de prestígio) daqueles que negam a seriedade do fenómeno até ao

Estado do tempo dentro de casa

Céu limpo, passando a nublado a partir do início da tarde, com possibilidade de ocorrência de aguaceiros e, quem sabe, trovoadas. Ondas de noroeste com um metro, talvez mais. Temperatura da água do mar: 16ºC, mais coisa, menos coisa. O vento, para já, sopra fraco de um dos pontos cardeais, mas talvez mude. Acentuado arrefecimento nocturno.

Coisas concretas

Mas o que me agrada mais em Wittgenstein é, nem sei bem definir isto — uma atração distraída pelas coisas concretas? Nos textos e (talvez) nas aulas, Wittgenstein recorre com frequência a objectos para expor exercícios de lógica. Folheando as notas de “Cultura e Valor” muito depressa, encontro: torre de igreja, árvore, cascalho, mochila, chapéu, palha, pedra, caneta, espelho, poste de sinalização, fechadura, chave, lentes, cavalo, carruagem, carris, argamassa, pedra, gaveta, sapatos, aviões, lantejoulas, porta, dedal, bolhas, montanha, celofane, casa, tesoura, bolo, moeda, estrela, erva. Os substantivos sobressaem pela sua natureza: são extremamente visuais; são cor, forma e função. Mas sobressaem também porque conseguem criar uma divergência qualquer dentro da frase — tocam. Tocam como uma campainha de recepção. Por exemplo, nesta nota (que é uma das minhas preferidas do livro): “Procurar o erro num argumento duvidoso e esconder o dedal.” Apesar de escondido, o dedal fica a ressoa

Coisas abstratas

O que Wittgenstein escreve sobre Pascal e os números é uma espécie de superfície espelhada; do outro lado vemos Wittgenstein e as palavras. O mesmo êxtase perante as “admiráveis propriedades” das coisas abstratas.
“ Nada vincula tanto o ser humano à linguagem quanto seu nome. ” Podemos abrir um bocado as palavras de Walter Benjamin, aplicar o princípio não só aos seres humanos. Faz todo o sentido, por exemplo, que a Holanda seja tratada por Países Baixos. — O bon Dieu! Les langues des hommes sont pleines de révélations.

INTERRUPÇÃO

(1901) O trabalho dos deuses nós o interrompemos, abruptos e inexperientes seres do momento. Nos palácios de Elêusis e Ftia, Deméter e Tétis empreendem boas obras em meio de enormes chamas e fumo denso. Mas sempre surge Metanira dos quartos reais, desgrenhada e aterrada, e sempre Peleu se assusta e intervém. Konstantinos Kaváfis 145 Poemas, tradução de Manuel Resende, edição FLOP. 

Papel e tinta

Artigos, crónicas, apontamentos, números, dados, estatísticas, análises das estatísticas, previsões, opiniões sobre as previsões, opiniões sobre as opiniões. E, no entanto, já quase não há tinta a pintar o papel. O que resta é a superfície brilhante e higiénica de um ecrã. Nada mais. O toque dos dedos no papel, o cheiro da tinta, punham-nos em contacto com a matéria do mundo, lembravam-nos que para cada facto existe um abismo de causas e efeitos, de fluxos e refluxos. É preciso sol, chuva, terra e tempo para criar papel. O ecrã é plano, não tem memória nem profundidade. Mas talvez seja a minha imaginação a querer exigir ao papel e à tinta respostas que não existem. Respostas que ninguém tem.

Estado de excepção

Mas há outro motivo para o tremendo pânico. Novamente tem a ver com a digitalização. A digitalização elimina a realidade, a realidade é experimentada graças à resistência que oferece, e que também pode ser dolorosa. A digitalização, toda a cultura do “like”, suprime a negatividade da resistência. E na época pós-fática das fake news e dos deepfakes surge uma apatia à realidade. Dessa forma, é um vírus real e não um vírus de computador o que causa uma comoção. A realidade, a resistência, volta a fazer-se notar no formato de um vírus inimigo. A violenta e exagerada reacção de pânico ao vírus explica-se em função dessa comoção pela realidade. A reacção de pânico dos mercados financeiros à epidemia é, além disso, a expressão daquele pânico que é já inerente a eles. As convulsões extremas na economia mundial fazem com que essa seja muito vulnerável. Apesar da curva constantemente crescente do índice das Bolsas, a arriscada política monetária dos bancos emissores gerou nos últimos anos um p

As admiráveis propriedades que os números têm

1942 O matemático (Pascal) que admira a beleza de um teorema na teoria dos números é como se admirasse um belo fenómeno natural. É maravilhoso, diz ele, as admiráveis propriedades que os números têm. É como se estivesse a admirar as regularidades numa espécie de cristal. * Poderia dizer-se: que leis maravilhosas imprimiu o Criador nos números! Ludwig Wittgenstein, Cultura e Valor, tradução de Jorge Mendes, Edições 70, página 67.

Por mais que limpe o pó, o pó não desaparece. Acumula-se sobre os móveis, os livros, o computador. Avança pelo corredor, entra no quarto, instala-se na sala. Não dá tréguas. Se limpo agora, volta a aparecer daqui a pouco. Ainda mais notório, ainda mais abundante. É como se a casa se revoltasse contra a nossa presença. Como se nos quisesse ver pelas costas. Como se fôssemos o pó que a casa quer limpar.

Espelho

Ainda é possível pensar em certos livros ou filmes como meros exercícios da imaginação? Volto atrás. Tento lembrar-me da primeira vez que vi «O Cavalo de Turim». A tela do cinema era uma tela de cinema. Agora, percebo que era um espelho.

Bonfim, Nevogilde. China.

Só estamos quatro na agência (aproximadamente vinte e cinco metros quadrados para cada um); três trabalham em casa. Venho de carro, atravesso a cidade de uma ponta à outra em dez minutos. Há pouco movimento. Na rádio alguém fala da China e diz:  parece sempre domingo de manhã . Sinto-me como o Bill Murray no dia da marmota.

As Janelas

O que se pode ver à luz do Sol é sempre menos interessante do que o que se passa por trás dum vidro. Nesse buraco negro ou luminoso vive a vida, sonha a vida, sofre a vida. Baudelaire, O Spleen de Paris . Tradução de António Pinheiro Guimarães.

A bit too on-the-nose

LOS ANGELES, CALIFORNIA—At the pharmacy, a young man wearing a gray hoodie, cargo shorts, flip-flops, and an expensive-looking, black air-purifying mask leans on the crowd-control barrier, rubs his bare hands listlessly back and forth across it, then wipes his eyes. Then he puts his hands back on the barrier. The mask muddles his voice, and the pharmacist can’t understand what he’s saying. My screenwriter friends would flag this scene for being a bit too on-the-nose. (...) Sarah Manguso March 19, 2020

Corcunda

Passei o fim-de-semana à janela. Uma corcunda está a irromper, pouco a pouco, nas minhas costas. Em breve, serei outro. O meu nome mudará para Maria José . E tudo o que farei é escrever uma carta de amor ao serralheiro, cujo fantasma continua a passar todos os dias lá em baixo, na rua vazia.

Estado de emergência

Ontem consegui cortar o cabelo. Paguei dois cortes, por conta do futuro. Hoje de manhã, na rotunda do Freixo, tive de levantar a voz para informar o polícia distante que ia às compras ao Continente de Massarelos. Omiti a frase sobre sentar-me um bocado em frente ao rio a apanhar sol — acho que os polícias não estão familiarizados com as cadências de Ozu.

Olha

olha (é assim que a minha criança mais nova começa quase todas as frases, mesmo que não queira mostrar nada, o mais das vezes quer apenas que a olhemos quando fala e eu acho isso de grande justiça). De uma mensagem enviada por uma amiga.

Exercícios práticos de filosofia

Resolvi ensaiar em casa aquela cena de abrir um livro de Cioran à sorte , à procura de um lema para o dia que começa . Como não tenho nenhum livro de Cioran em papel, peguei em “Cultura e Valor” de Wittgenstein. Também é apropriado à função — as notas são breves e cheias de possibilidades. Abri e encontrei: “Onde os outros avançam, fico eu parado”. Levantei-me, tomei banho e fui comprar fruta ao Campo 24 de Agosto.

Trabalhar em casa

Anch’io avevo creduto per un momento che il cinema autorizzasse Orfeo a voltarsi senza far morire Euridice. Mi sono sbagliato. Orfeo dovrà pagare.

Anjo exterminador

Sete dias fechado em casa. A impressão é a de que estou dentro da cabeça de Buñuel, simples títere da sua imaginação, actor involuntário de «O Anjo Exterminador».

o arco do qual se disparam flechas

À partida, quando olhamos para as palavras latinas «corōna» e «vīrus», diríamos que nada têm a ver uma com a outra: a primeira tem como sentido primário «grinalda», «coroa»; a segunda tem como sentido primário «veneno». No entanto, na utilização mais antiga que se conhece destas duas palavras, elas estão estranhamente ligadas por um denominador comum: o arco do qual se disparam flechas. “Corōna” e “vīrus” em tempo de coronavírus , de Frederico Lourenço ( via João Lisboa )

Gerações futuras

Ontem contaram-me esta história. Nos anos 70, quando os agricultores de Lintong, em Xi'an, na China, descobriram as primeiras estátuas de terracota do chamado «Exército do imperador Qin», os arqueólogos vieram e desenterraram várias centenas, entre guerreiros, cavalos e carruagens. Depois, e apesar de existirem muitas outras, pararam os trabalhos. As autoridades decidiram deixá-las como estão para que as gerações futuras também tenham estátuas para desenterrar.

O vírus é a música

A progressão de um vírus implacável sobre fundo primaveril (folhas, flores, pássaros) Ah, isto é o que Jean Renoir dizia: "Por que raio é que, numa cena de amor em que o actor diz à actriz je t'aime a música também há-de dizer je t'aime ? Porque é que a música não diz estou-me nas tintas para ti?" O vírus é a música.

Pulverizador

Passamos os dias em casa, desconfiados, vigilantes, sem dormir. Andamos atrás do vírus pelas divisões da casa, apontando um pulverizador para o vazio como se fosse um revólver. Verificamos atrás das portas, por cima dos armários, entre os lençóis da cama. Prontos a disparar. Mas o vírus é mais rápido do que a própria sombra. É a própria sombra.

Le savon

Roanne, avril 1942. Si je m'en frotte les mains, le savon écume, jubile... Plus il les rend complaisantes, souples, liantes, ductiles, plus il bave, plus sa rage devient volumineuse et nacrée... Pierre magique ! Plus il forme avec l'air et l'eau des grappes explosives de raisins parfumés... L'eau, l'air et le savon se chevauchent, jouent à saute-mouton, forment des combinaisons moins chimiques que physiques, gymnastiques, acrobatiques... Rhétoriques ? Il y a beaucoup à dire à propos du savon. Exactement tout ce qu'il raconte de lui-même jusqu'à la disparition complète, épuisement du sujet. Voilà l'objet même qui me convient. * Le savon a beaucoup à dire. Qu'il le dise avec volubilité, enthousiasme. Quand il a fini de le dire, il n'existe plus. * Une sorte de pierre, mais qui ne se laisse pas rouler par la nature : elle vous glisse entre les doigts et fond à vue d'oeil plutôt que d'être roulée par les eaux. Le jeu

Persistência dos sintomas

O que não conhecemos, assusta-nos. O que não sabemos explicar, assusta-nos. O que não conseguimos prever ou dominar, assusta-nos também. Aquilo que é assusta-nos tanto como aquilo que não é. O que não foi é tão assustador como o que podia ter sido. A dúvida é sempre mais forte do que a certeza. Os factos podem ser tão assustadores como as impressões de certos sonhos em noites agitadas. Por isso, criámos a literatura e a arte. Por isso, criámos deus. Para o alívio dos sintomas, tomamos um ou outro, ou vários em simultâneo, segundo a dose que nos convém.
Arthur Jafa, "Monster", 1988.

Domingo

O bairro está deserto. As gaivotas desceram dos telhados e ocuparam os passeios. Andam para a frente e para trás como turistas pasmados. Conseguimos ouvir o melro e o vento a sacudir os ramos da magnólia. Um caracol pode atravessar a rua sem perigo.

Papel higiénico

Há três dias que uma onda de pânico varre, sem parar, os supermercados. No nosso bairro, não há vegetais, carne, enlatados e papel higiénico. De papel higiénico, não resta a sombra de uma embalagem. As prateleiras vazias conduzem-me de novo, e por caprichosos caminhos, a Artaud. Onde cheira a merda cheira ao ser. O homem poderia muito bem não cagar, não abrir a bolsa anal, mas ele escolheu cagar tal como escolheria viver em vez de aceitar viver morto. Pois para não fazer caca precisaria de aceitar não ser, mas ele não quis optar por perder o ser, ou seja, morrer vivo. (...) Antonin Artaud, Para acabar de vez com o juízo de Deus e outros textos finais (1946-1948) . Tradução de Pedro Eiras.

Quarentena

Fechados em casa, de quarentena, passamos uma parte da noite a ver Beuys , que passou na televisão. Ruas cheias de gente, manifestações, ocupações, performances em espaços fechados, um debate com críticos de arte e académicos numa sala a abarrotar, toda a gente a fumar, a partilhar copos, Beuys alagado em suor. Em menos de uma semana, tudo isto parece ter-se transformado em arqueologia. Provas de um tempo longínquo. Foi ontem.

Orientação a partir de Cioran

Outro homem, tímido e gentil, quando viajava em serviço, levava sempre consigo um livro de Cioran, um daqueles com textos muito breves. Já no hotel, guardava-o na mesa-de-cabeceira e, mal acordava, abria-o ao acaso e, assim, encontrava o lema para o dia que começava. Aliás, ele era de opinião que, na Europa, os exemplares da Bíblia existentes nos hotéis deviam ser substituídos quanto antes por livros de Cioran — desde a Roménia até à França — porque, no que toca a vaticínios, a Bíblia já perdera a sua actualidade. Que ganhamos nós se, por exemplo, incautamente nos calhar o seguinte verseto numa sexta-feira de Abril ou numa quarta-feira de Dezembro? “Todos os utensílios destinados aos serviços do santuário, todas as suas cavilhas, e todas as cavilhas do átrio serão de cobre” [Ex 27-19]. Como é que haveríamos de interpretar este texto? Aliás, ele próprio reconhecia que os livros não tinham de ser forçosamente de Cioran e, olhando com ar de desafio, sugeriu: — Faça o favor de me propor o

Vírus

Enquanto o Covid-19 alastra, espero a minha vez lendo histórias de outro vírus, ainda mais letal, em Berlim Alexanderplatz . Histórias do vírus que se espalha desde os anos 30 e que jamais desapareceu.

Açougue

; a escrita não precisa de penas de ganso, nem de criolinas sob as saias, nem de máscaras venezianas que tanto lhe associamos mas, isso sim, de aventais de açougueiro, botas de borracha e, na mão, uma faca para estripar. Viagens, de Olga Tokarczuk, página 17. Tradução de Teresa Fernandes Swiatkiewicz (com pequena alteração). Cavalo de Ferro,

Dickens

Nunca o Porto pareceu tão dickensiano como por estes dias. Não é só o nevoeiro, denso e frio, que transforma tudo em espectros. Não é só o ar sonâmbulo dos transeuntes a caminho do trabalho. É também a vaga sensação de ameaça que paira por toda a parte.

Puxar ou empurrar?

Pensamos que os filósofos são seres distantes que se dedicam a assuntos ainda mais longínquos, mas isso não é verdade. Muitas vezes debruçam-se sobre coisas triviais. Nesta nota, por exemplo, Wittgenstein utiliza o dilema entre puxar ou empurrar uma porta: “Um homem está prisioneiro num quarto se a porta não estiver trancada e abrir para dentro, enquanto não lhe ocorrer que é preferível puxá-la a empurrá-la.” Todos nós passamos por esta situação — apenas não a cristalizamos, não a transformamos num raciocínio livre e dinâmico. Faltam-nos as capacidades de Wittgenstein para enquadrar uma imagem com tanta profundidade e nitidez, para utilizar a linguagem como um canivete suíço, para criar um processo de cálculo em ambiente ambíguo.

Fita-cola

Na Feira da Vandoma, compro por cinquenta cêntimos uma velha edição de Aristófanes, que inclui «As vespas» e «As aves». É uma daquelas edições populares de textos clássicos , com capa e miolo no mesmo papel, e cadernos que se vão separando com o tempo. A capa, manchada pela humidade, está presa à lombada por um fio. Em casa, tento juntá-las com fita-cola da loja do chinês. Talvez o meu Aristófanes se aguente mais uns anos com este truque vulgar. Talvez - vejo agora - esta seja a minha pobre contribuição para a «actualização» dos clássicos.

Monumento aos fundos imobiliários

Só me apercebi do valor e consistência da obra hoje. Vinha no 305 a observar o movimento da cidade. Ao subir Sá da Bandeira vi melhor o quarteirão da antiga Casa Forte; quer dizer, vi pela primeira vez, de modo inabitual, a fachada do edifício antigo suportada por uma composição de vigas de aço corten — para além destas linhas, um buraco a céu aberto. O efeito é poderoso. Talvez seja por causa do contraste entre os três elementos: a fachada vulgar, esburacada, delgada; a geometria e solidez das vigas; o enorme espaço interior desfeito e vazio. Ou a localização, tudo aquilo apertado por uma malha urbana densa. Sem respirar. De dia nem precisa de iluminação, está ali para quem quiser ver. Monumento aos fundos imobiliários. Autor desconhecido.

Influenciadores do século XX

Ludwig Wittgenstein morreu no dia 29 de abril de 1951, em Cambridge. No dia 16 de Junho foi lançado, nos Estados Unidos, Symphony in Slang . Nada liga estes dois acontecimentos, mas eu acho que o filme de Tex Avery é uma homenagem espontânea ao trabalho tardio do filósofo.

Já leu isto tudo?

O grande leitor é aquele que compra livros sabendo de antemão que não os vai ler, mas cujo interesse e a relevância reconhece. Isso é muito mais importante  do que propriamente ter o gosto de ler os livros todos. De resto, um dos tópicos de todos os escritores é contra os filisteus que entram lá em casa e perguntam: “Ena, tantos livros! Já leu isto tudo?!” Não há ninguém que não se enfureça com essa pergunta, porque, na verdade, a biblioteca não é para ler tudo, é para ela existir. O livro na verdade não existe, o que existe é a biblioteca. Um livro nunca está sozinho. E ter muitos livros em casa é muito melhor que não ter, porque mesmo que a pessoa não os leia, fica a saber a quantidade de coisas que não conhece. Em vez de lamentarmos todos os grandes clássicos que nunca vamos ler, devemos perceber é que, no fundo, nós lemos para ter conhecimento daquilo que não conhecemos, para conhecer os limites da nossa ignorância. Ora, isso também se consegue não lendo livro nenhum, mas é preciso

Guerra

O vento que soprou com fúria durante a noite, arrancou mais uma vez os painéis publicitários da Rua da Constituição. Há pedaços por toda a parte, misturados com guarda-chuvas partidos e galhos de árvores. O que sobrou dos anúncios pende agora das estruturas metálicas como trapos sujos e sem préstimo. Pequenos destroços da grande guerra entre a natureza e as leis do mercado.

Ajuda a esquecer

O meu pai que Deus tem contava-nos sempre muitas histórias, viajou muito por esse mundo fora como a gente do nosso povo, ainda chegou aos setenta, faleceu depois da minha saudosa mãe, sabia muito, um homem esperto. Éramos sete bocas esfomeadas e, quando não havia nada para comer, contava-nos histórias. Não enche o estômago mas ajuda a esquecer. Alfred Döblin, Berlim Alexanderplatz . Tradução de Teresa Seruya e Sara Seruya.

Fim-de-semana

De uma certa maneira… Não, não é de uma certa maneira. É de todas as maneiras. A história de Arthur Seaton, em «Saturday Night and Sunday Morning», é a minha própria história. Também trabalho numa fábrica. Também faço peças para bicicletas. E o fim-de-semana é a única altura em que estou vivo. Ou melhor, vivo como um morto ressuscitado às sextas à noite e sepultado de novo às segundas de manhã. Como Arthur Seaton, já morri e ressuscitei milhares de vezes.

Grand jeté

Em Wittgenstein as metáforas funcionam de modo esquisito; transferem a significação entre dois objectos distantes como é da sua competência mas, ao mesmo tempo, só que agora de outro lado, continuam a sujeitar-se ao rigor das palavras. Quando ele escreve: “Mais tarde, quando estava a copiar uma frase que tinha escrito, cuja segunda metade era má, vi-a de repente como uma metade apodrecida de maçã.” Já nem penso na maçã, vejo o texto apodrecido como um texto apodrecido. A frase tem no seu interior uma energia literal extraordinária, inapropriada, estimulante. Reconheço este mecanismo dos desenhos animados de Tex Avery. Num desenho animado podemos fazer tudo? Sim, na verdade, talvez só aí e dentro da linguagem seja possível mostrar um bailarino que salta ( grand jeté ) sem se mover. Ah, já sei quem é o bailarino.