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Mensagens

A mostrar mensagens de maio, 2021

Uma rapariga bastante literária

Lisa, a irmã mais nova de Diana, iniciou a sua vida de forma bastante diferente. Licenciou-se com distinção em Estudos Clássicos em Oxford. Foi dar aulas para uma escola de Yorkshire e entrou para o Partido Comunista. Diana, que gostava muito da irmã, perdeu o contacto com ela durante uns tempos. Lisa viria ao Sul por ocasião do casamento de Diana e conheceria Miles. Depois, desapareceu novamente e, quando voltaram a ter notícias dela, tornara-se católica e entrara para a ordem das Clarissas. “Tenho a certeza de que foi o exemplo da fundadora que a atraiu”, disse Diana a Miles. “Sempre foi uma rapariga bastante literária.” O Sonho de Bruno, de Iris Murdoch. Tradução de Vasco Gato para a Relógio d’ Água. Página 61.

Esplanada

O sopro suave do vento agita as páginas do cadernito, pousado sobre a mesa da esplanada. As folhas em branco ondulam, uma e outra vez, como um convite, uma pergunta sussurrada. Em vão. Não tenho nada para dizer, nem um só pensamento que mereça ser escrito.

Maman

Confundir Deus com uma aranha ou vice-versa — acho que já consigo fazer uma lista de personagens que passaram por isso. Mas não sei como classificar o fenómeno: êxtase religioso ou sintoma psicanalítico? Ou um e outro são a mesma coisa? 

Intervalo espaço-tempo

 

Quem mexe os cordelinhos?

Fui rever Days of Being Wild , de Wong Kar-Wai. Desta vez, o que me impressionou foi o som. Os personagens, já se sabe, pouco falam. Mas entre as palavras, o que existe não é o silêncio, mas o ruído. Os amantes expressam-se, quase sempre, através do barulho ensurdecedor dos gestos. O barulho desesperado das mãos, dos braços, das pernas, dos pés, dos olhos, dos lábios. O filme é uma sucessão de corpos aos gritos. Corpos presos por arames invisíveis que os arrastam fatalmente para longe uns dos outros.

Cerejas

Na aldeia onde nasceu, o meu pai tem ainda três cerejeiras. Agora que está velho, cabe-me a mim colher as cerejas. Encosto a escada ao tronco, subo e instalo-me entre os ramos. A cerejeira não me reconhece. Arranha-me os braços como um gato enfurecido.

Selfie

A Susana entusiasmou-se e cortou mais cabelo do que é habitual. Pareço uma Joana d’Arc — não a das visões, mas a do processo.

Sexo senil

Numa entrevista ao jornal Público , Júlio Bressane comenta a propósito de João César Monteiro: O Monteiro também foi uma descoberta tardia, infelizmente. Todos os seus filmes são extraordinários. Aquele Recordações da Casa Amarela , uma obra-prima! O outro, Vai e Vem , todos os filmes dele… É um cineasta de uma força e coragem enormes. São filmes que trabalham com pathos! Que têm um tema que é um outro estado de espírito no homem: o sexo senil. A exposição do sexo senil, o grande mito do homem, o mito da potência... Ele expôs justamente o que é a vida e o destino. Eu acho que é o único director que fez isso de forma voluntária! Involuntária muita gente fez, mas voluntária foi o Monteiro. Ele não é apenas um grande diretor, é um grande artista. Dificilmente se poderia imaginar melhor definição para os filmes de João César Monteiro. Uma espécie de curto-circuito entre a cabeça e o sexo: um corpo impotente a braços com uma imaginação transbordante.

Rankings

Não quero nem posso medir as palavras. O «ranking das escolas» é a mais asquerosa e despudorada campanha publicitária em larga escala, promovida pelo próprio Estado, a favor do ensino privado e, por conseguinte, da legitimação das desigualdades sociais. Aos alunos das escolas públicas oferece-se, em jeito de prémio de consolação, e para usar um título miserável do jornal Público , o «topo no ranking da superação».

Tudo se fora

Olga Ivanovna torna a falar-me da família, acrescentando novos pormenores, sobretudo acerca do avô Nikolai. Tinham conseguido conservar a preciosa biblioteca do tio Vladimir. Os «homens de casaco de cabedal» tinham examinado todos os livros à procura de obras proibidas e tinham levado algumas. Mas o avô conseguira salvar o principal, escondendo os livros numa cova e cobrindo-os com um encerado. Guardava-os à espera que Volodia regressasse um dia. «Há-de precisar deles.» Quando se tornou evidente que Vladimir já não era deste mundo, começou a vendê-los um a um, pressionado pela miséria. Chorava ao vê-los partir. Quando voltou do campo já não tinha nada. «Tudo se fora» Predrag Matvejevitch, Epistolário Russo . Tradução de Pedro Tamen.

Pais e filhos

Ler é uma forma de escapar às coisas reais sem perder o pé (digo ao pássaro ). Fugimos do que nos rodeia e ameaça para uma realidade eterna que até se pode confundir com papel de parede (apesar dos arabescos e criaturas desenhadas não pararem de mexer).  Depois d’ As Avenidas Periféricas ,  O Sonho de Bruno .  No livro de Modiano, um filho procura um pai (não é esse o punctum nevrálgico); Iris Murdoch pega num velho e põe-no à procura do filho. Bruno é um tipo que gosta de aranhas. Estou bem entregue.

Insubmissão

Estou há mais de um ano fechado em casa, em teletrabalho. Tenho pensado muito em Robert Walser. Talvez a insistência dele em caminhar, sempre que possível, quilómetros a fio, debaixo de sol ou chuva, contra o vento ou sobre a neve, fosse o seu grande acto de rebeldia. Quer dizer, a expressão da sua dignidade, liberdade, insubmissão. Mais até do que a escrita, que é outra maneira de caminhar, mas sentado. No meu caso, nem isso. O trabalho consome o melhor do meu tempo. O tempo que qualquer ser humano deveria usar para caminhar com os pés e a imaginação.

Rússia

Depois de ler os primeiros capítulos das Almas Mortas , Puchkin terá comentado: «Meu Deus, como é triste a nossa Rússia!» Talvez a frase peque por defeito, apetece-me dizer. Talvez a Rússia não acabe nas fronteiras da Rússia.

Via de Cintura Interna

Depois da Rua das Lojas Escuras, passei para “As Avenidas Periféricas” ( Les Boulevards de Ceinture ). Manter a ligação geográfica foi boa ideia — entre as páginas 35 e 36, a propósito de vários bares, são mencionadas seis ruas e uma avenida: Rua Jean Mermoz, Avenida de Wagram, Rua Fontaine, Rua de Clichy, Rua Magellan, Rua Joubert e Rua de Hanovre. Farto-me de passear.  # O narrador em busca do pai n’as Avenidas Periféricas é um bom exemplo de MacGuffin.  # Nas últimas páginas, o livro de Modiano deixa-nos tão desamparados e tristes como Mr. Klein de Losey.

Mas publicaram Safo?

Ouvi dizer que Mandelstam respondeu nestes termos irónicos a um jovem escritor que se lhe queixava [de não ser publicado]: «Mas publicaram Safo? E as obras de Cristo foram impressas?» Entre aqueles que não são publicados, há os que verdadeiramente não o merecem ser. Certos livros «não passam», e ainda bem. Na literatura dissidente há muitas vezes (por muito penoso que nos seja admiti-lo) mais dissidência que literatura. Tudo isto não divide apenas a literatura enquanto tal, mas igualmente as forças criativas e espirituais de que decorre. Predrag Matvejevitch, Epistolário Russo . Tradução de Pedro Tamen.

Má rês

Já estava na cama quando traduzi de improviso le mauvais demiurge por demiurgo má rês (mais um para a lista ) . Utilizei (de forma oblíqua, sempre de forma oblíqua) a técnica açoreana de aportuguesar palavas inglesas . Para estabelecer equivalência fonética é preciso fechar as vogais, ensombrear a expressão, carregar um bocado no sotaque. Dito com o desequilíbrio necessário, até parece francês de imigrante.  Foi uma noite bem dormida.

De que cor é a quarta-feira?

Num artigo publicado num semanário britânico, um professor diz que colocar-se questões de metafísica não faz mais sentido do que perguntar: «What is the colour of Wednesday*»?  Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 * Podia ser o título de uma canção da Laurie Anderson.

Insónia

Quatro da manhã. Acordo e não consigo voltar a adormecer. Os antigos diziam que se tinha «espantado o sono». No escuro, para passar o tempo, enumero mentalmente as expressões que me ocorrem relacionadas com o acto de dormir: ferrar o galho, ferrar no sono, dormir como um justo, dormir como uma pedra, dormir como um porco, amassar a palha, chonar, dormir como um prego, passar pelas brasas, pesar figos.

Auto-retrato mais ou menos ficcional de Robert Walser

O alcoolismo é uma coisa exemplarmente feia: porque se entrega o homem a esse vício? Manifestamente porque por vezes sente a necessidade premente de afogar o seu discernimento nos sonhos que nadam nos diferentes tipos de álcool. Uma cobardia assim assenta bem numa coisa tão imperfeita como é o ser humano. Somos imperfeitos em tudo. Robert Walser, As redacções de Fritz Kocher . Tradução de Isabel Castro Silva.

corpo vulnerável (que fracassa)

Canoagem é um título bestial. Mas o que mais gosto em Joaquim Manuel Magalhães nem é esse golpe de apanhar uma palavra (ou uma frase) que ressoa, ou deixa um rasto intrigante. O que me emociona a valer é o trabalho que se vê em cada página: Joaquim Manuel Magalhães não só escreve os poemas, também os traduz. — Imagino-o vestido com um fato macaco e as mãos sujas (mais um para o grupo Die letzten Menschen , de August Sander) .

Primavera no Porto

Saio cedo, antes do trabalho, para ir à frutaria. Na rua, uma fila interminável de carros estende-se a perder de vista, ao longo de Antero de Quental. Dezenas de latas paradas, guinchando, roncando, zunindo, tossindo, bramindo, ensurdecendo, como uma fábrica infernal de nada. Aqui e ali, ergue-se um autocarro vazio, como um elefante morto e empalhado. E é tudo. Ah, o perfume primaveril da cidade pós-desconfinamento!

Vivre loin de la Méditerranée est une erreur

Traduzi o Caderno de Talamanca (também conhecido pelos aficionados como Noite de Talamanca ) a partir da versão espanhola. Como é passado em Ibiza, pareceu-me razoável o deslize.  Mesmo assim resolvi comprar o livro em francês (colecção "Le petit Mercure", 4,52€). Chegou há pouco e já me entusiasmou. Um livrinho de dez por dezasseis centímetros (é o formato de um postal), com cerca de 60 páginas impressas e muitas ainda em branco (vão dar jeito), perdido numa caixa enorme cheia de ar. Tantos significados em fila para serem reconhecidos. Por outro lado penso logo: ah, alguém nos meandros da distribuição reconhece o valor de Cioran, juntos ainda podemos dar cabo disto tudo.  

Via delle Botteghe Oscure

A rua das Lojas Escuras é referida pela primeira vez na página 133, numa ficha de informações de Jean-Pierre Bernardy: derradeira morada conhecida de STERN, Jimmy Pedro, corrector, oficialmente desaparecido em 1940.  Na última página do livro, não conseguindo encontrar Freddie numa das ilhas da Polinésia, o narrador percebe que só lhe resta voltar à sua (?) antiga casa em Roma, na rua das Lojas Escuras, nº 2.  Mas o mistério do narrador é empurrado para fora de campo — e isso revela-se uma óptima estratégia de Modiano. Até porque a via delle Botteghe Oscure — como é bonita a sua denominação original — é, ela própria, rica em histórias ocultas e inacabadas.