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O romance da poltrona de orelhas

Talvez a característica mais notável da escrita de Thomas Bernhard seja o ritmo musical, a forma como as palavras correm, balançam, volteiam. Esse movimento desenfreado tem um objectivo muito preciso: deitar abaixo de modo implacável todas as falsidade dos seus conterrâneos, expôr todas as hipocrisias dos seres humanos, derrubar-se a si mesmo, não deixar nada de pé. Mas Thomas Bernhard utiliza outras estratégias estilísticas igualmente potentes. Por exemplo, os objectos que surgem vezes sem conta ao longo dos seus monólogos, para além de conferirem materialidade ao discurso, acabam por ficar gravados na nossa memória, de tal forma que quase podemos jurar que chegámos a ver um ou outro. A poltrona de orelhas onde o narrador de Derrubar árvores — uma irritação se senta logo no início é o objecto principal do romance. É nesta poltrona que está na penumbra, atrás da porta por onde entram os convidados do jantar artístico , todos esses escritores e músicos e actores que ele conheceu

Nestbeschmutzer

Sempre pensei que nenhum escritor pudesse usar o método (exuberante? exagerado?) de Thomas Bernhard. O que ele faz com as palavras é tão difícil e extraordinário que sempre pensei que ninguém se atreveria e seguir esse caminho tortuoso. Além disso, a torrente musical do seu discurso ininterrupto não é bem da escrita que emerge e só um escritor que não seja escritor, ou melhor, só um escritor que lute contra a escrita e contra tudo, só um verdadeiro Nestbeschmutzer (não devia ser Nestzerstörer ?) consegue lá chegar. Foi por isso com muita estranheza que encontrei vestígios do tom bernhardiano em «Pudor e Dignidade». Dag Solstad até consegue estabelecer uma relação interessante com O Pato Selvagem de Ibsen. Quando, a meio de uma vulgar aula de literatura a uma turma do secundário, Elias Rukla descobre a importância e o verdadeiro papel do médico Relling, está longe de se aperceber que ele próprio é uma personagem secundária e está no centro de um livro sobre uma personagem secundária.

Na poltrona de orelhas

Nós julgamos que temos vinte anos e agimos de acordo com isso e temos na realidade mais de cinquenta e ficamos totalmente exaustos, pensei eu, procedemos connosco como com vinte anos e arruinamo-nos e procedemos também assim com todos os outros, como se tivéssemos vinte e temos cinquenta e na realidade já não aguentamos absolutamente nada, esquecemo-nos também de que temos uma doença, várias, muitas doenças juntas, as chamadas doenças mortais , com as quais temos de viver a maior parte do tempo, o que nós, porém, ignoramos, julgando a maior parte do tempo que não é verdade, quando afinal elas aí estão sempre, permanentemente, toda a vida e um dia nos matam, procedemos connosco como se ainda tivéssemos as mesmas forças que tínhamos há trinta anos, quando nem sequer já temos uma fracção dessas forças de há trinta anos, nada dessas forças já nos resta, pensei eu na poltrona de orelhas. Derrubar árvores — uma irritação , de Thomas Bernhard. (Maravilhosa) tradução de José A. Palma Caetano.

Andar para a frente e para trás

Quando comecei a ler «Pudor e dignidade», de Dag Solstad, não sabia que isso me iria obrigar a ler «O pato selvagem», de Ibsen (porque é que nunca tinha lido esta peça antes?) e reler «Derrubar árvores — uma irritação», de Thomas Bernhard.  Calhou bem, Bernhard é extremamente apropriado para opor ao cheiro a podre que emana da campanha eleitoral.

A cerimónia típica vienense

Encontrei [Thomas] Bernhard poucas vezes, todas elas memoráveis. A primeira vez foi em Roma, com Ingeborg Bachmann e Fleur Jaeggy, no início da década de 1970. Bernhard havia lido um texto seu no Instituto Austríaco. Contou-nos que o director do Instituto se preocupou logo em lhe dizer, com a cerimónia típica vienense: «A cama onde vai dormir é a mesma em que Johannes Urzidil morreu há alguns meses.» Roberto Calasso, O Cunho do Editor . Tradução de José J. C. Serra.

Ervilha debaixo do colchão

Também podia abrir um Gabinete de Investigações Literárias  — na verdade não me faltam ideias para negócios sem prosperidade. Mal comecei a ler Geada , de Thomas Bernhard, fiquei logo com vontade de descobrir qual é o livro de Henry James que o jovem estagiário de medicina levou para Weng. Em vez do livro de Koltz sobre as doenças do cérebro, mais apropriado às circunstâncias da sua missão, ele preferiu Henry James — porquê? E trata-se mesmo de uma decisão sua, enquanto personagem e narrador, ou é uma partida de Bernhard? Sobre o Pascal do pintor Strauch não tenho dúvidas, é um livro qualquer, quer dizer, todos. Além disso é possessivo: é o Pascal do pintor Strauch .  Agora o Henry James não me sai da cabeça. Às vezes acho que é “A fera na selva”, a seguir percebo que só pode ser “O desenho no tapete”, depois volto à estaca zero: nem fera nem desenho, é outra coisa.

Grelha de leitura

Toda a gente discorre sobre distopias conforme leu — ou ouviu dizer — no livro do Orwell e semelhantes. Custa-me a aceitar esse cenário. Quando leio os jornais, não vejo senão uma grande farsa (vertente Thomas Bernhard).

Conferências do casino (tardias)

A produção de pensamento é um acto importante, principalmente se ocorrer de forma independente à proposição enunciada; e ainda mais se não perder mão do pressuposto íntimo: “a nossa vida é sempre (e apenas) um amontoado de factos muito trágicos e muito cómicos”. Facilita ler Thomas Bernhard antes de iniciar o processo de fabrico — qualquer coisa, de preferência tudo. Nenhum objectivo será alcançado.

Marxismo cultural — a santíssima trindade

Devemos ficar do lado dos oprimidos em todas as circunstâncias, mesmo quando não têm razão, sem esquecer, porém, que eles foram amassados ​​na mesma lama que os seus opressores. Emil Cioran , Do inconveniente de ter nascido. É a terceira vez que apanho este pensamento bem formulado.  Cioran depois de Luis Buñuel (Tristana) e Thomas Bernhard (O sobrinho de Wittgenstein) .

Influenciadores do século XX

Nem um sopro de vida

As minhas ideias políticas mais importantes vêm de textos e filmes clássicos (Sófocles, John Ford, Kleist, Büchner, por aí fora), de um filme de Buñuel, do livro do Genet sobre Giacometti e, se não me engano, d’ O Sobrinho de Wittgenstein. Passo os olhos pelos programas eleitorais (não os consigo ler na íntegra); parecem chicletes velhas.