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Meteorologia e poesia

Hoje não chove, diz a meteorologia. Lavo e ponho a secar o que faz mais falta: meias e cuecas. Agora, resta esperar que o vento faça o seu trabalho. «O vento é poesia imediata », escreveu Cioran. Às duas e meia da tarde, começa a chover. Um imenso aguaceiro. Ainda que próximas, não se deve confundir meteorologia com poesia.

Um diálogo, em breve um cântico

(…)  tem a ver com o facto de cada comunidade, unidade humana ser um diálogo, ser um projecto, como dizia o Hölderlin, e Hölderlin já é um poeta para os tempos de indigência, para quem resolve escutá-lo, e Hölderlin diria que nós somos algo ao nascer do dia, nós somos um diálogo, mas em breve seremos um cântico. Nós nascemos como um diálogo ou seja, a capacidade da linguagem em nós é inata, nós estamos preparados para a linguagem e por isso a linguagem faz-nos e ao fazer-nos nada impede que aquilo que eu faço seja partilhável. E nesse aspecto, se nós existimos nesta dupla condição de esperados sobre esta terra e de preparados para uma linguagem, como diz o Benjamin, está encontrado o quadro para pensar a relação da poesia com o mundo da História.

O tempo das cerejas

Dois euros, meio quilo, na frutaria da minha rua. Na verdade, o preço é 1,99 euros, meio quilo. O cêntimo de diferença é o intervalo onde está a ficção. O desvio literário, o clinâmen. A diferença entre o meio quilo e o quilo já é outra coisa — pura e dura economia.

Um trabalho de vida

Por que é que o velho marinheiro, da balada de Coleridge, mata o albatroz? Porquê? Não se sabe, responde Alberto Pimenta . Talvez por diversão, por tédio, porque estava aborrecido, porque não tinha nada melhor para fazer. Não se sabe. «Estará aqui» - pergunta Alberto Pimenta - «não só o fundo de todo este poema, como até o próprio caminho que leva à poesia? É talvez uma compulsão dessas que habita e sempre habitou o poeta.» O certo é que a bala que atravessa o corpo do inocente albatroz também condena a tripulação à morte. A natureza vinga-se. O marinheiro é condenado à morte-em-vida e à eterna compulsão de narrar a história, uma e outra vez, que é o mesmo que a reviver continuamente. Alberto Pimenta propõe uma hipótese: «Esta compulsão de quase permanentemente refazer, narrando, o próprio crime, ou falha, ou falta, ou desvio inicial, é provavelmente o arranque que leva a qualquer narração poética, que se torna assim um trabalho de vida. (...) Quer dizer que poesia que claramente o é,

A palavra retoma consciência

Ao utilizarmos as palavras correntes esquecemo-nos de que são fragmentos de histórias remotas e eternas, e que construímos - como os antigos - a nossa casa com estilhaços das estátuas dos deuses. Os nossos conceitos e termos mais concretos são derivações muito remotas dos mitos e das histórias antigas. Não há um único átomo nas nossas ideias que não provenha daí, que não seja uma mitologia transformada, estropiada ou alterada. (...) A poesia reconhece o sentido perdido, restitui as palavras ao seu lugar, enlaça-as de acordo com certos significados. Manejada por um poeta, a palavra retoma consciência, digamos assim, do seu sentido primevo, desabrocha espontaneamente segundo as suas próprias leis, recupera a sua integridade. Bruno Schulz, A mitificação da realidade . Tradução de Patrícia Guerreiro Nunes.

corpo vulnerável (que fracassa)

Canoagem é um título bestial. Mas o que mais gosto em Joaquim Manuel Magalhães nem é esse golpe de apanhar uma palavra (ou uma frase) que ressoa, ou deixa um rasto intrigante. O que me emociona a valer é o trabalho que se vê em cada página: Joaquim Manuel Magalhães não só escreve os poemas, também os traduz. — Imagino-o vestido com um fato macaco e as mãos sujas (mais um para o grupo Die letzten Menschen , de August Sander) .

Paisagens despojadas da Escócia

Armand Robin, este estranho tradutor que conhecia toda a poesia, um dia em que lhe falei de Chuang-Tzu, disse-me que o punha acima de todos os poetas e de todos os pensadores, e que só o podia comparar com algumas paisagens despojadas da Escócia. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972.

Especial vitalidade

(...) A filosofia, língua morta. “A língua dos poetas é sempre uma língua morta... um dito curioso: uma língua morta que se usa para dar uma vida maior ao pensamento”. Talvez não uma língua morta, mas um dialecto. Que a filosofia e a poesia falem numa língua que é menos do que língua é o que lhes dá a medida do seu alcance, da sua especial vitalidade. Pesar, julgar o mundo medindo-o através de um dialecto, de uma língua morta e, no entanto, fértil, onde não há a mudar uma virgula sequer. Continua a falar este dialecto, agora que a casa arde. (...) A poesia e a palavra são a única coisa que nos resta de quando não sabíamos ainda falar, um canto obscuro dentro da língua, um dialecto ou um idioma que não percebemos completamente, mas que não podemos deixar de ouvir – mesmo que a casa arda, mesmo que na sua língua que arde a humanidade continue a falar em vão.  Existirá uma língua da filosofia, como existe uma língua da poesia? Como a poesia, a filosofia habita integralmente na linguagem e

Poesia

Perpétua poesia sem palavras ; silêncio que ressoa por baixo de mim mesmo. Porque não tenho o dom do Verbo? Ser estéril com tantas sensações!  Qualquer laivo de poesia envenena a prosa e torna-a irrespirável. Renunciei, entre outras coisas , à poesia. Há meses que vivo todos os meus momentos de angústia na companhia de Emily Dickinson. Sinto que vou reconciliar-me com a poesia. Não podia ser de outra forma: não consigo pensar senão em mim mesmo... O meu gosto doentio por Tácito, a necessidade que tenho de me alimentar de horrores. Em seguida, a eloquência e a poesia da indignação. Os Anais e Macbeth , os livros, não, as imagens do meu rame-rame quotidiano. A poesia propriamente dita parece-me cada vez mais inconcebível; já não posso suportar senão a que é implícita, indirecta, que precisamente não é dita , refiro-me à poesia sem os meios e os subterfúgios que habitualmente usa. Deus, “o nosso velho vizinho” como lhe chama Emily Dickinson. Hesito. S

Ah, é poeta!

A polícia bate na porta: a poeta Ingeborg Bachmann, um pouco sonolenta, levanta e se prepara para atender ao chamado. Estamos em 1954 e, ao contrário do que se poderia imaginar, não se trata de uma batida da polícia secreta nos tantos países totalitários da época. Uma vizinha de Bachmann denunciou às autoridades o ruído causado pela poeta durante a madrugada: o barulho ritmado das teclas da máquina de escrever ecoa na noite e interrompe o sono dos justos. A poeta diz aos policiais que as ideias só vêm à noite e que o barulho da praça durante o dia atrapalha seu trabalho. “Mas em que diabos a signorina trabalha à noite?”, perguntam os policiais. Ela entra no apartamento e volta com uma folha datilografada, um poema em alemão que testemunha seu ofício. “Ah, é poeta!”, respondem os policiais. Tudo se resolve, mas Bachmann ainda escuta os policiais comentando quando se afastam: “Poemas tão curtos para tanto barulho!”. (...) Kelvin Falcão Klein escreve sobre Ingeborg Bachmann aqui .

Vida e obra

Leio no Público um artigo de Luís Miguel Queirós sobre a edição de poesia em Portugal. O texto termina com um comentário importante do Changuito : «[o leitor e livreiro] confessa que acha que “o panorama da poesia portuguesa anda muito fraquinho”. E os editores não são isentos de culpas. “Vejo muitos livros que me fazem pensar: então não houve ninguém que dissesse a este autor ‘vai lá trabalhar mais uns anos nisto, que não está pronto’?”» Ocorrem-me as palavras de Brigge , o personagem de Rilke, que a páginas tantas diz: «Ah, mas que significam os versos, quando os escrevemos cedo! Devia-se esperar e acumular sentido e doçura durante toda a vida e se possível durante uma longa vida, e então, só no fim, talvez se pudessem escrever dez versos que fossem bons. Porque os versos não são, como as gentes pensam, sentimentos (esses têm-se bastante cedo), - são experiências.» Rilke publicou o seu primeiro livro de poesia antes dos vinte anos.

Pó de estrelas

O título de jornal diz: «O mais antigo material na Terra é feito de pó de estrelas.» E prossegue: «São chamados “grãos pré-solares”. Como o nome denuncia, são grãos formados antes de o nosso Sol ter nascido e são feitos de pó de estrelas.» Um destes grãos é uma minúscula migalha que não mede mais do que 0,008 milímetros. Uma estrela mais pequena do que este ponto final. Talvez neste exacto momento, enquanto inspiro e expiro, esteja a inalar um pedacinho de estrela. Ou uma estrela se tenha alojado entre os dedos dos meus pés. Os recursos poéticos da ciência são ilimitados.

Como um cão a olhar para o dedo

É um livro pequeno — lê-se numa tarde —, mas deixa um rasto impressionante. Começa logo pelo título: “Raparigas de Escassos Recursos”. Ora, as raparigas nunca são de escassos recursos , menos ainda no fim da Segunda Guerra Mundial em Londres. A ironia atravessa também a história e o modo de a escrever. Muriel Spark recorre a tempos e registos diferentes para criar uma novela que tem mais ou menos o ritmo de  Ein musikalischer Spaß : passagens cómicas misturam-se com versos de poemas clássicos, costumes velhos, ousadias, papel de parede, um vestido  Schiaparelli  partilhado e mais ainda. Toda esta trama culmina na explosão de uma bomba perdida e na morte de um poeta convertido. O divertimento, como aliás tantas vezes em Mozart, dá lugar a uma tristeza miudinha e é disso que é difícil livrarmo-nos. Outra curiosidade de “Raparigas de escassos recursos” é que Muriel Spark aponta para coisas diversas (raparigas, um edifício, a cidade, os restos da guerra, etc.), mas reagi sempre como um

Propriedades incandescentes

O trabalho intelectual de Jane era de três tipos. Em primeiro lugar, e em segredo, escrevia poesia de uma natureza absolutamente não racional, em que ocorriam, mais ou menos na mesma proporção das cerejas num bolo de cereja, certas palavras que ela descrevia como tendo “propriedades incandescentes”, tais como flancos e amantes, a raiz, a rosa, a alga e a mortalha. “Raparigas de Escassos Recursos”, de Muriel Spark, tradução de Margarida Vale de Gato, edição da Relógio d’ Água, página 39.
Só tenho jeito para coisas pequenas. Mas às vezes gosto de imaginar edifícios enormes, cheios de pormenores — projectos para abandonar a meio. Por exemplo: um curso de literatura através dos filmes de Godard, à deriva, com pistas falsas e becos sem saída. Podia começar aqui: La poésie, c'est qui perd gagne.
Acto Isolado Podia ser um poema de cinquenta e tal páginas: palavras cheias de pressa; rudes, talvez; um pensamento inacabado; nem sequer ainda um pensamento, apenas um jacto de sons. Mas não, designa a “emissão de um recibo pela prática esporádica e imprevisível de serviços ou transmissão de bens”. Mais uma vez, as finanças passaram a perna à nomenclatura da poesia.