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O pé ateu

Mudei de trabalho. Agora, do meu gabinete, que fica num antigo mosteiro beneditino, ouço o sino dos Clérigos a marcar as horas e, ao fim da tarde, pequenos concertos de carrilhão. Não consigo evitar: de repente, foge-me o pé ateu para a nostalgia do paraíso.

Muitos anos

Já escrevi e apaguei várias vezes este texto. Ao fim de muitos anos, vou mudar de trabalho. Vou finalmente dedicar-me ao ofício que sempre desejei. Quero escrever sobre o assunto e não consigo. Falta de talento, com certeza. Mas é mais do que isso. A ideia tornou-se real. O excesso de realidade paralisa.

Apenas um pássaro

Uma rola fez o ninho numa árvore enfezada que cresce junto ao edifício de escritórios onde trabalho. Se abrisse a janela e esticasse o braço, conseguia tocar-lhe. Isto comove-me mais do que sou capaz de dizer. Não me interpretem mal: não há aqui nada de especialmente  poético . É apenas um pássaro a tentar manter-se vivo. Tão empenhado como eu em escapar às mil quedas de cada dia.

Não era preciso ouvir para saber

Nunca li nem ouvi falar da frase de Marx Diga-me o que comes e eu te direi quem és na minha juventude, mas isso era óbvio para mim, eu via o que os clientes da minha mãe compravam na mercearia de acordo com o bolso deles. Eu sabia muito bem em que dia o auxílio governamental «caía». Dizer que «eu sabia muito bem» não é muito preciso, era esse mundo que me moldava, não era preciso ouvir para saber. As palavras ligadas ao trabalho, à contratação e à demissão, «fazer cortes», etc., entraram no meu vocabulário naturalmente. Eu as escutava no café, ao lado da mercearia. Annie Ernaux, A escrita como faca e outros textos , tradução de Mariana Delfini. Citado por Kelvin Falcão Klein.

Amanhã há mais

Fim de tarde. Regresso a casa após mais um dia de trabalho. No metro, ouço um tipo dizer a outro: «Por hoje já está.» O segundo responde: «Amanhã há mais.» E isto é dito no tom branco e neutro de uma ladainha. É impossível perceber se existe um pingo de entusiasmo naquele «amanhã há mais» ou se, pelo contrário, é a tristeza que ali espreita e mostra a ponta fria do nariz.

O charme discreto da burguesia

Ontem à noite fomos a Coimbra ver a Companhia de Latão, de São Paulo. Depois do espectáculo , ficámos mais um pouco para assistir à conversa com os actores e o encenador. Quando tudo terminou, e enquanto ainda estávamos dentro da sala, muito filosoficamente distraídos com os amigos, vi os próprios actores e o encenador desmontarem o cenário e arrumarem os adereços. Gestos simples, precisos e experientes de mil anos. Minutos antes, tínhamos estado a falar sobre poder, dinheiro e exploração do trabalho. Voltámos para casa. Dormimos tranquilos. A consciência limpa como um lençol branco e cómodo.

Sou como

Manhã cedo. Antes de sair para o trabalho, bebo um café apressado. No rádio, alguém canta qualquer coisa cujo refrão me parece: «Sou como sopa.» Ouço com mais atenção. Afinal, o artista canta um banalíssimo: «Sou como sou.» O encanto desfaz-se. Desligo o rádio. Corro para o autocarro.

Irmão Gombrowicz

8h30. Meia hora antes de começar a trabalhar - dantes dizia-se «pegar ao trabalho» -, abro o diário de Gombrowicz e leio umas linhas. Página 250, mais ou menos a meio do livro. As mesmas queixas, a mesma cantilena triste, como uma litania ecoando pelos séculos dos séculos, sem princípio, sem fim: «Segunda-feira. (...) Não vejo nada diante de mim… nenhuma esperança. (...) Depois de tantos anos de tensão e trabalho duro, quem sou eu afinal? Um escriturário massacrado por sete horas de trabalho, estrangulado em todos os esforços da escrita. (...) Tudo sofre porque, diariamente e durante sete horas, cometo um homicídio no meu próprio tempo. (...) De quem é a culpa? Dos tempos? Das pessoas? Mas quantas delas foram mais bem esmagadas?» 9h00. É o meu turno.

Juízos à posteriori

Uma das vantagens de trabalhar em casa é poder estar sempre descalça. É difícil incluir esse direito na luta dos trabalhadores por condições laborais mais justas. A única hipótese era encarregar Cossery de escrever as exigências. — Sim, ele seria capaz de corroer o próprio conceito de trabalho (alegria extrema).

Três dias

Ainda tenho três dias de trabalho pela frente. E só depois, finalmente, duas semanas de férias. Quinze dias sob o sol tórrido de Agosto. O sonho molhado de qualquer trabalhador. Ah, o prodigioso fruto que tão generosamente me dão a colher, após meses e meses amarrado à secretária, obediente como um cavalo.

Quando for mais velha

No jornal de domingo, o antropólogo James Suzman explica que não existe nenhuma sustentação antropológica para a nossa obsessão com o trabalho duro. O trabalho árduo não compensa em termos económicos e não nos torna mais felizes: «Não é por teres dois empregos que vais realizar os teus sonhos. Esta ideia do sonho americano, de que qualquer um, desde que trabalhe arduamente, pode ser o que quiser, é pura falácia.» No dia anterior, sábado, o mesmo jornal publicava uma reportagem sobre três jovens «viciados no trabalho»: «Carina trabalha entre 80 e 84 horas por semana, Miguel sai de casa às 6h30 e só regressa à meia-noite e Frederico embarcou numa viagem transformativa para se redimir do vício no trabalho. Têm todos menos de 30 anos e respiram trabalho. Fazem-no por paixão e auto-reconhecimento.» Uma das jovens, Carina Ribeiro, de 26 anos, diz que vai ter tempo para descansar «quando for mais velha».

O que o jovem Rossum inventou

DOMIN: (...) Que tipo de trabalhador é que pensa ser o melhor? HELENA: O melhor? Talvez aquele... aquele... que é honesto e dedicado. DOMIN: Não, na verdade, o mais barato. Aquele que tenha menos necessidades. O que o jovem Rossum inventou foi um trabalhador com o menor número possível de necessidades. Ele teve de simplificar. Descartou tudo o que não era usado directamente para o trabalho. Então, deitou fora o homem e fez o Robot. Karel Čapek, R.U.R. Tradução de Patrícia Paixão.