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A mostrar mensagens de outubro, 2022

Ideia de uma amiga

Para cada Escola Superior, devia existir também uma Escola Inferior. Uma Escola Superior de Cinema e uma Escola Inferior de Cinema. Uma Escola Superior de Belas Artes e a sua congénere, a Escola Inferior de Belas Artes. Uma Escola Inferior de Saúde, uma Escola Inferior de Biotecnologia, de Comunicação Social, de Teatro, de Hotelaria, de Dança, de Design, e por aí fora. Com que propósito? Ainda não sei. Mas é uma excelente ideia.

Mise-en-scène

Os tacões são importantes, mas o que conta mesmo para ganhar uma discussão com o patronato em que nos tentam encostar à parede com ardis sonsos, é ter lido Michael Kohlhaas, Antígona, e outros livros do género combativo; ter aprendido com Straub e Huillet uma entoação de voz vigorosa e movimentos do corpo leves e decididos. E já agora, também devo a Cioran a escolha das palavras mais destemidas e violentas. No fundo, são eles o meu sindicato.

A alma que perdeu as asas

Há vinte e três anos (em 1937) escrevi um livro inteiro sobre lágrimas. E depois, sem derramar uma única lágrima, nunca mais deixei de chorar.  Quantas horas não terei passado a pensar nas lágrimas que não derramei, que não pude derramar! Vivi toda a minha vida com a sensação de ter sido afastado do meu verdadeiro lugar; se as palavras «exílio metafísico» não tivessem nenhum significado, a minha existência dar-lhe-ia um. Não podemos ser menos deste mundo do que eu — por isso é que pensei tanto em lágrimas. Podia escrever um livro inteiro sobre elas; aliás, escrevi um em romeno . Sentir a própria carne a chorar, o sangue a carregar lágrimas, é do interior de sensações semelhantes que se compreende Plotino quando ele diz que a existência cá em baixo é «a alma que perdeu as asas».  Ter escrito um livro inteiro sobre lágrimas (e santos) — de certeza que isso tem um significado profundo. Tudo o que escrevi reduz-se a isso, a lágrimas agressivas .  Um troglodita e um esteta .   Emil Ciora
Duvido de tudo o que faço. É um defeito que já nem me interessa ultrapassar, digamos que aprendi a tolerá-lo. Sem competências académicas para traduzir Cioran, sei contudo que chego lá quando, a meio das traduções dos Cadernos , começo a chorar ou a rir-me.

O lar e um jornal

Leio no Público que dentro do túmulo de D. Dinis, além das ossadas do rei e do «espólio», os técnicos de restauro encontraram gesso, tijolo, madeira, insectos, plantas, cordas e uma página do Diário de Notícias , datada de Maio de 1938. Tijolo, madeira, plantas e um jornal. Podia ser o anúncio de um promotor imobiliário: apartamentos confortáveis para cidadãos pacatos. Pequenos túmulos em condomínios fechados.

Estofo de escritor

X escreve-me a dizer que gostava de me enviar um jovem muito leal , com carácter, etc., para que lhe dê alguns conselhos em assuntos literários. Respondo-lhe que não lhos posso dar porque não há conselhos nenhuns; mas o verdadeiro motivo da minha recusa é que à priori é duvidoso que este jovem moralmente irrepreensível tenha estofo de escritor. — Não são as nossas qualidades, são os nossos defeitos que prometem .   Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 

Latas de atum

Manchete do jornal: Supermercados estão a colocar alarmes em produtos alimentares básicos, como latas de atum ou garrafas de azeite. Os furtos estão a aumentar “desde o início de Setembro” por “pessoas que já não conseguem sobreviver só com o seu salário e pensão”. O texto é ilustrado com uma fotografia de uma prateleira de supermercado com latas de atum protegidas por sistemas de alarme. A única resposta digna seria todos desatarmos a roubar latas de atum nos supermercados. Dispararem todos os alarmes ao mesmo tempo e por toda parte. Exigir que o atum fosse pago pelos membros de todas as famílias Espírito Santo deste país. Não só o atum, mas também as batatas, o feijão-verde e o azeite. O atum de hoje, o de amanhã e o da semana seguinte. Mas falta-nos a coragem. Falta-nos a coragem. Falta-nos a coragem. Eles sabem isso. Eles sabem isso desde o princípio dos tempos.

Selfie VII

Eu a corrigir as traduções de Cioran (uma e outra vez).

Contas certas

Título do jornal de hoje: «Montenegro defende que “contas certas” do Governo levam país ao empobrecimento.» Se isto fosse um bom filme, Luís Montenegro seria Everett Sloane, na famosa sequência dos espelhos de A Dama de Xangai , a disparar sobre a sua própria imagem, mil vezes reflectida à sua volta. Infelizmente, é só um filme sem graça nem imaginação.

A palidez cadavérica de tanta «saúde»

Seja sob a influência da beberagem narcótica em que os homens e os povos primitivos entoavam os seus cantos, seja debaixo da força da renovação primaveril que se expande alegremente por toda a natureza, são sempre as pulsões dionisíacas que se intensificam levando o elemento subjectivo a dissolver-se inteiramente no esquecimento de si próprio. Durante a Idade Média alemã, multidões cada vez mais numerosas andavam de terra em terra, cantando e dançando, movidas pelo sopro desta força dionisíaca: nesses dançarinos das Janeiras e do São João relembramos os coros báquicos dos gregos cujas origens remontam à Ásia Menor, à Babilónia e às orgias sírias. Há pessoas que, por carência de experiência ou por estreiteza de espírito, se desviam de tais fenómenos com palavras de desdém ou de piedade, como se estivessem diante de «doenças do povo» contagiosas, julgando-se eles próprios no gozo da mais inteira saúde. Tais infelizes nem sequer suspeitam da palidez cadavérica de tanta «saúde», quando na

Combate

Traduzir Cioran não dá créditos em filosofia mas, se nos esforçarmos um bocado, equivale a um curso de língua francesa digno da Sorbonne (da Cantina à Capela).  O meu combate com a língua francesa é um dos mais duros que se pode imaginar. Vitória e derrota alternam — mas não cedo. É a única área das minhas actividades onde mostro algum encarniçamento. Em tudo o resto, faço questão de vacilar.  Em luta com a língua francesa: uma agonia no verdadeiro sentido da palavra, um combate onde fico sempre por baixo.   Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 

A Pedra Triste, de Filippos Koutsaftis

A certa altura, a câmara fixa-se no rosto de uma mulher de oitenta ou noventa anos. Um dos numerosos rostos que, como coros, aparecem no filme. A mulher diz: «Na vida, aguenta-se quase tudo. Se não houver carne, come-se pão com azeitonas. Mas o medo…» Acho que a memória não me trai. Acho que é isto que a antiga refugiada grega diz. Devia ver este filme todos os dias. Com a mesma naturalidade com que me levanto da cama e olho ao espelho de manhã.

Sombra

Ter medo da sua própria sombra. Como não ter medo? Tenho cinquenta e cinco anos e é a primeira vez na minha vida que «percebo» que tenho uma sombra — e não sou eu que a projecto, é ela que me projecta a mim. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 

Primeira página

A canalhice do título em maiúsculas e a vermelho na primeira página do DN para enganar os reformados. Já os estou a ver à porta da tabacaria a ler as gordas e a vociferar.  A jornalista (?) preferiu não explicar que as simulações são feitas sobre valores anuais e têm em consideração o extra de meia pensão de outubro inflacionando os rendimentos de 2022. Preferiu também não acrescentar que o aumento mensal efectivo a partir de janeiro de 2023 será superior aos tais 6 € (29€ para uma reforma de 650€).  Temos uma oposição de merda que joga tudo em esquemas indignos (e que vai contra a sua própria ideologia de direita). E jornalistas de merda que se prestam a estas tarefas de espalhar meias verdades. 

Sim, também em latas

Pois claro, compro muito bem, compro tudo, mas isso é por causa desta estúpida vida. Não há mais nada que fazer. Actualize-se, leia jornais modernos, conviva com firmas avançadas, arranje uma moral comercial, bem comercial. Compre artistas, não compre arte. Compre mulheres, não se apaixone. Compra-se tudo, elas, eles, jardins, quintas, flores, frutos... Sim, também em latas. Tudo se vende. Nós próprios... Salette Tavares, O Kágado .

Ervilha debaixo do colchão

Também podia abrir um Gabinete de Investigações Literárias  — na verdade não me faltam ideias para negócios sem prosperidade. Mal comecei a ler Geada , de Thomas Bernhard, fiquei logo com vontade de descobrir qual é o livro de Henry James que o jovem estagiário de medicina levou para Weng. Em vez do livro de Koltz sobre as doenças do cérebro, mais apropriado às circunstâncias da sua missão, ele preferiu Henry James — porquê? E trata-se mesmo de uma decisão sua, enquanto personagem e narrador, ou é uma partida de Bernhard? Sobre o Pascal do pintor Strauch não tenho dúvidas, é um livro qualquer, quer dizer, todos. Além disso é possessivo: é o Pascal do pintor Strauch .  Agora o Henry James não me sai da cabeça. Às vezes acho que é “A fera na selva”, a seguir percebo que só pode ser “O desenho no tapete”, depois volto à estaca zero: nem fera nem desenho, é outra coisa.

Não desejo isto a ninguém, nem mesmo ao pior inimigo

(...)  A leitura de um livro é, hoje, para muita gente, um acto anacrónico, anti-democrático, sem qualquer força de atracção para quem se habituou a tudo o que é interactivo. Num livro recente, Pouvoirs de la lecture. De Platon au livre électronique , o filósofo e musicólogo francês Peter Szendy, professor numa universidade norte-americana, começa por se referir a esse imperativo da leitura e conta como se sentiu espantado por uma série de decisões judiciais que prescreviam a leitura como pena a cumprir pelo réu. A primeira história que ele conta, leu-a no Courrier international em Julho de 2009 e tinha como título Pior do que a prisão, a leitura . Tratava-se aí da condenação de um cidadão turco, condenado por um tribunal do seu país a quinze dias de prisão, uma pena comutada em obrigação de ler uma hora e meia por dia, sob vigilância policial, durante alguns meses. Quando um jornal local perguntou ao indivíduo sentenciado como é que ele sentiu a sua entrada, pela primeira vez, na bibl

Imersão na lama

Depois do ciclo integral de Hong Sang-soo numa estância de verão abandonada, lembrei-me agora de lançar um curso prolongado e decadente sobre o Tango de Satanás .  Uma turma fechada numa casa velha no cu de Judas — duas ou três  semanas. Tinha de chover ininterruptamente. Vento também, forte e em grande quantidade. Comíamos batatas com paprika e bebíamos pálinca como se seguíssemos o método Stanislavsvki. Líamos e discutíamos os capítulos sem ordem nenhuma. Podíamos começar pelo fim, quando o doutor descobre o que é a escrita — a música que ele ouve também vem de Shakespeare, pois claro, que a vida não é só a realidade. Depois passávamos para o capítulo anterior e ia ser uma diversão encontrar retratos corrosivos da academia e da crítica literária naquelas personagens burocráticas que afinam os relatórios pidescos (Kraszhahorkai é um bocado exagerado mas também um cómico). Deus podia ser uma teia de aranha como em certos filmes e o diabo um estado de alma quebrada ou um ritmo coxo. O

Weigel-Brecht

A última casa onde Weigel e Brecht viveram fica ao lado do cemitério francês de Berlim, em Chausseestrasse. Mudaram-se para ali no princípio de 1954. Todas as janelas têm vista para o cemitério. A casa é tranquila e luminosa. Weigel e Brecht estão enterrados na parte do cemitério mais próxima da casa, do outro lado das janelas. O túmulo fica aos pés de um enorme castanheiro-da-índia. Quando o vento sopra, um ouriço cai com estrondo sobre as lápides. Há castanhas espalhadas por toda a parte. Duras, selvagens, incomestíveis.

Urnas com cinzas são mais fáceis de transportar

Mas, em toda a Grécia, os que partiram com os Átridas deixaram em suas casas um luto que oprime a alma e mil preocupações que assolam o coração. Sabe-se quais os que partiram; agora, em vez de homens, são urnas e cinzas que regressam a cada casa. Ares, o que transforma os vivos em mortos e é fiel da balança nas batalhas, envia de Ilion aos parentes o pó das fogueiras, o que lhes arranca lágrimas amargas, fazendo deles, em vez de homens, cinzas que enchem as urnas fáceis de transportar. (...) Terríveis são os propósitos do povo animado pelo ressentimento, e sempre a maldição popular pagou a quem lhe deve. Sinto-me angustiado pelo medo de assistir a alguma trama tenebrosa, pois aqueles que fazem correr sangue nunca escapam aos olhares dos deuses. Um dia virá, no curso das vicissitudes que consomem a nossa vida, em que as negras Erínias destruirão o homem feliz que menosprezou a justiça, e não há qualquer apelo para aquele que elas fazem desaparecer. Ésquilo, Agamémnon . Tradução de Virg

Rentrée

Recordo que naqueles anos não muito distantes de 70 houve uma greve de lixeiros em Paris e a cidade estava coberta de lixo. As ratazanas roçavam as pernas dos transeuntes e um fumo excrementício emanava das montanhas de matéria decomposta. Todos os dias, enquanto durou a greve, Beckett telefonava a Cioran para irem dar um passeio juntos. “Paris nunca foi tão bela”, comentava Beckett com exaltação juvenil. 

Filosofia para os trabalhadores

Até acho fixe pagar a tal graduação , mas duvido do resto.  A cena da caixa é tão batida que já nem merece comentários.  «Ver coisas que outros ainda não viram» — ora bem, se conseguirem mesmo ver coisas inauditas, de certeza que isso não vai ser bom nem para a competitividade nem para os negócios. E a filosofia a servir de analgésico é uma ideia muito preguiçosa e estúpida.  O que espero (no fundo do fundo sou muito optimista) é que, concluída a pós-graduação, os trabalhadores se despeçam do grupo Dst com uma boa argumentação (a filosofia ensina a pensar e argumentar, não é?) — pelo menos assim não se perdia tudo.

Não queiras

IO: O oráculo é difícil de sondar... PROMETEU: Não queiras a miséria toda aprofundar. Ésquilo, Prometeu Agrilhoado .