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Diálogos Imaginários entre Santo Agostinho e Buster Keaton

Alguém descobriu que um antigo funcionário, que tem estado doente e cujas baixas têm sido prolongadas repetidamente, se entretinha a redigir registos falsos e a inseri-los no sistema. Por causa disso, existem neste momento milhares de livros fictícios catalogados entre os verdadeiros. Alguns têm um título tão absurdo que saltam à vista, outros confundem-se com os legítimos devido à plausibilidade — o que não é pequeno feito, porque simular a banalidade e a conformidade é uma proeza que não está ao alcance de todos. E ele mencionou de memória, para meu deleite, alguns exemplos: Contributos para Uma História da Regulamentação da Talassoterapia na Província da Pomerânia; Diálogos Imaginários entre Santo Agostinho e Buster Keaton; Raízes Históricas do Hábito de Depilar as Sobrancelhas; Confissões de Um Amestrador de Colibris; Testemunhos Fraudulentos sobre Eclipses Lunares; Pode o Feldspato Ser Considerado Um Fetiche? Democracia, de Alexandre Andrade (página 342).

LP

As 450 páginas de Democracia , de Alexandre Andrade; as 4h12m d' O Amor Louco , de Jacques Rivette — para mim, são a mesma coisa. Parto para os dois com o mesmo entusiasmo pela longa duração.

Democracia

As notícias que nos rodeiam são angustiantes — apertam, literalmente, as nossas ideias, os nossos sentimentos e até o nosso corpo. Resta-nos procurar no meio desse amontoado qualquer coisa que nos dê alguma alegria, por exemplo: um novo livro do rivettiano Alexandre Andrade.  Pelo título, Democracia  vale por dois. Andar na rua com a sua parcela de liberdade ao alcance da mão, pronta a brandir como se fosse uma bandeira ou uma ferramenta que se traz num saco a tiracolo .  Força, Mafalda!

Princípio de intriga geográfica

Descobri o último livro do Alexandre Andrade à venda no OLX. É um anúncio vulgar, mas esta frase das condições de entrega tem um princípio de intriga geográfica, podia fazer parte de um conto escrito pelo Alexandre: “Entregamos em mãos na Faculdade de Letras de Lisboa (dias úteis das 10h às 17h), entregamos em Alcochete a qualquer hora.”

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Cada rua de Paris é como uma noveleta cheia de incidentes e isenta de moral. Também há ruas tão pequenas que parecem coexistir, na sua materialidade de pedra e cimento, com a vergonha e a modéstia próprias da sua condição de notas de rodapé urbanístico. Essas não se confundem com uma ficção: são frases, interjeições, fragmentos, aparas de madeira, trocos esquecidos no bolso do casaco. As próprias fachadas, os algerozes, as portas, os marcos de correio, os sinais de trânsito, existem numa harmonia cuidada, mas sobretudo eloquente. Os objectos nas montras das lojas também servem com naturalidade de pasto para os apetites narrativos que se encontrem à solta, para todas as ocorrências da mais poderosa pulsão de todas, que é a de fazer sentido e de narrar. Rue Ernest Cresson. Alimentação geral. As cores vivas das latas de bebidas, alinhadas como um exército. Tomates, cenouras, couves-de-Bruxelas, chalotas. Alguns passos mais adiante: cabeleireiro para damas e cavalheiros. Frascos de lo...

Mas, na manhã seguinte

(Depois dos espargos, do folar de azeitonas, do salmão fumado e do vinho do Douro — fórmula petisco improvisado — não me apeteceu trabalhar. Sentei-me na varanda a aproveitar o sol e a ler mais umas páginas d’ O Leão de Belfort e agora já sei demasiado, pelo que vai ser difícil defender a crítica a uma obra baseada apenas num parágrafo. Vou tentar não fugir do risco. Dentro do possível.) A questão geográfica. No excerto referido é apenas o parêntesis (ou seja, a Paris), a Rue Lemercier e o bairro de Batignolles, mas isso basta para prevermos (o plural define os leitores habituais do Alexandre Andrade) deambulações várias pela cidade, viagens de metro e autocarro. E, num salto completamente bem executado, a geografia mistura-se com a arquitectura, e entramos nas casas quase sempre pequenas e alugadas, nos quartos, nos corredores e escadas. É uma espécie de guia, mas ao contrário, em que o objectivo principal (a esperança, diria até) é desviar-nos do caminho certo. Ou, pelo menos, enc...

Agora sim, Facilidades e Amenidades

Há regras para fazer crítica literária. Uma delas obriga a que se leia a obra antes de se proceder à análise (nos casos mais violentos pode dizer-se autópsia?) Outra (não sei se esta tem estatuto de regra ou é apenas um conselho) estabelece que não se deve tomar a parte pelo todo e vice-versa. Acima de tudo convém evitar amiguismos. Pois o que me proponho fazer não é nada disso. Apanhei o “Leão de Belford” na biblioteca e, enquanto esperava pelo 200 para o Bolhão, comecei a ler e logo nas primeiras páginas, no singular diálogo entre Georges e Sidonie, percebi tudo, quer dizer, percebi porque é que gosto desta noveleta urbana em particular e da escrita do Alexandre Andrade em geral. (Se isto fosse uma cena tipo ted talk, a imagem do leão projectada atrás de mim abria a boca, rugia e era substituída, após um corte abrupto, pela transcrição do segundo parágrafo em letras luminosas. Sons de rua distantes.) Primeira e única prova a apresentar: segundo parágrafo da obra já referida, ne...

Leituras em lugares públicos (de acesso restrito)

A/C Alexandre : Na reportagem sobre o Estabelecimento Prisional de Tires, transmitida pela RTP1 na quinta-feira à noite, vi Rosa Grilo empunhar “O Processo” (nº 91 da Colecção Mil Folhas, do jornal Público) frente à câmara da televisão. Pensei que ela procurava na literatura respostas para o seu problema, pensei que a seguir ir atacar “O Crime e Castigo” (nº 55 da mesma colecção). Pensei no último plano do carteirista. Mas pensei tudo errado. Rosa Grilo explicou que o livro de Franz Kafka foi uma sugestão de um inspector que a interrogou. Neste caso, o louvor e admiração vão direitinhos para a Polícia Judiciária.