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A mostrar mensagens com a etiqueta Emil Cioran

Borges (o último dos delicados)

Carta para Fernando Savater Paris, 10 de dezembro de 1976 Querido amigo, Em novembro, quando passou por Paris, pediu-me para colaborar num volume de homenagem a Borges. A minha primeira reação foi negativa; a segunda… também. Para quê venerá-lo quando as próprias universidades já o fazem? A má sorte de ser conhecido abateu-se sobre ele. Merecia melhor. Merecia permanecer na sombra, no imperceptível, manter-se tão esquivo e tão impopular como uma nuance. Era aí que se sentia em casa. A consagração é a pior das punições — para um escritor em geral, e muito especialmente para um escritor do seu género. A partir do momento em que todos o citam, já não o podemos citar ou, se o fazemos, temos a impressão de estar a engrossar a legião dos seus «admiradores», dos seus inimigos. Na verdade, aqueles que querem a todo o custo prestar-lhe justiça, mais não fazem do que precipitar a sua queda. E fico por aqui, porque se continuasse neste tom acabaria por me compadecer do seu destino

Peso e leveza

De volta aos Cadernos de Cioran, na tradução da Cristina. Impressiona-me o número de frases que terminam com reticências. As palavras são firmes, graves, sólidas. Mas também transparentes, leves, musicais. Peso e leveza, em simultâneo. As reticências são talvez um ponto de fuga, um pequeno movimento para libertar energia. Como as pontes que têm de oscilar para não cair.

Benjamin Fondane

6, rue Rollin O rosto mais sulcado, mais escavado que se possa imaginar, um rosto com rugas milenares, mas de modo algum petrificadas, pois eram animadas pelo tormento mais contagioso e mais explosivo. Não me cansava de as contemplar. Nunca antes tinha visto uma tal concordância entre parecer e dizer, entre fisionomia e palavra. É-me impossível pensar na mais pequena das afirmações de Fondane sem imediatamente me dar conta da presença imperiosa dos seus traços.  Visitava-o muitas vezes (conheci-o durante a Ocupação), sempre com a ideia de não ficar mais de uma hora e acabava por passar a tarde inteira em sua casa, por minha culpa claro, mas também por culpa dele: ele adorava falar, e eu não tinha coragem e muito menos vontade de interromper um monólogo que me deixava exausto e arrebatado. No entanto, na primeira visita que lhe fiz com intenção de o interrogar sobre Chestov, eu é que fui descomedido. Pois, sem dúvida por necessidade de me exibir, não lhe fiz pergunta nenhuma, preferin

Ao reler...

Traduzido para alemão por Paul Celan, o Breviário de Decomposição foi publicado pela Rowohlt em 1953. Quando foi reeditado pela Klett-Cotta, há oito anos, o director da Akzente pediu-me para o apresentar aos leitores da revista. É esta a origem deste texto. Ao reler este livro, que remonta a mais de trinta anos, procuro reconhecer a personagem que fui e que se esgueira, que me escapa, pelo menos em parte. Os meus deuses eram Shakespeare e Shelley. Continuo a ler o primeiro; o segundo, raramente. Cito-o para indicar por que tipo de poesia estava intoxicado. O lirismo desenfreado combinava com as minhas disposições: infelizmente apercebo-me dos seus vestígios em todos os meus exercícios dessa época. Quem consegue ainda ler um poema como Epipsychidion ? Enfim, eu lia-o com prazer. O platonismo histérico de Shelley repugna-me e à efusão, seja qual for a forma que apresente, prefiro agora a concisão, o rigor, a frieza deliberada. No essencial, a minha visão das coisas não mudou; o que

Menear-se

Todos esses professores, Heidegger à cabeça, que vivem como parasitas de Nietzsche, e que acham que filosofar é falar de filosofia. — Fazem-me pensar nos poetas que imaginam que a missão de um poema é cantar a poesia. Por toda a parte o drama do excesso de consciência: trata-se de um esgotamento de talentos ou de um esgotamento de temas? Dos dois, sem dúvida: falta de inspiração que acompanha a falta de matéria. Desaparecimento da ingenuidade; muito malabarismo, habilidade , nas coisas importantes. O acrobata suplantou o artista, o próprio filósofo não é senão um pedante que se meneia . Emil Cioran, Cadernos 1957-1972.
1 de Janeiro de 1969  Fui passear entre Étréchy e La Ferté-Alais. Neve e nevoeiro, um nevoeiro tão suave que as árvores pareciam fumo imobilizado. Raramente vi uma paisagem tão poética. Tudo era irreal — e depois, por causa do gelo, as estradas estavam desertas.  Entrei num cafezinho em Villeneuve-sur-Auvers, onde ouvi uma canção americana (inglesa?) « Those were the days » que, pela entoação elegíaca, me comoveu mais do que seria de esperar. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972.

Soma de derrotas = vitória

21 de Dezembro  A única solução: continuar como se nada fosse; aconteça o que acontecer, um dia havemos de ganhar a causa. Perante quem? Não importa. O certo é que, se permanecermos nós mesmos, se tivermos a coragem de defender a nossa causa até ao fim, a soma de derrotas que teremos experimentado equivalerá a uma vitória. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972.

Rigidez e graça

Visita de um professor japonês, Tadoo Arita, e da sua mulher. Decididamente, este povo tem classe. Nem o menor traço de vulgaridade! Têm «estilo» como os franceses devem ter tido noutro século e como os ingleses ainda têm um pouco. Rigidez e graça — paradoxalmente combinadas. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 (março de 1967).

Admiradores desconhecidos

Nunca devemos responder a cartas de desconhecidos. Quando as recebia, agora compreendo, era porque falavam de mim na «imprensa». Como já não publico e depois de uma certa «conspiração de silêncio» (!), mais ninguém repara na minha existência. Facto com que me congratulo. Mas que lição! E pensar que, como toda a gente, acreditei nos «admiradores»! (Outubro de 1962)  Acho que não recebi uma única carta de um desconhecido que fosse normal. De um desconhecido, entenda-se, que me tenha escrito entusiasmado, a quem dei alguma coisa e que confessou sentir afinidades comigo. Destroços, perdidos, infelizes, doentes, dilacerados, incapazes de inocência, corroídos, atingidos por todos os tipos de enfermidades secretas, falharam em todos os exames cá em baixo, arrastando atrás de si o seu jovem ou o seu velhíssimo desconcerto. Nunca me pediram nada, porque sabiam que nada lhes podia oferecer. Só queriam dizer que me tinham compreendido... (Novembro 1968) Emil Cioran, Cadernos 1957-1972.

O que resta de um pensador

De tudo o que Schopenhauer escreveu e pensou, apenas as explosões de humor permanecem vivas. Sempre que fala do seu sistema, e sabe Deus como insiste nisso, é chato, cai numa ladainha; assim que se esquece que é filósofo e que tem de permanecer fiel às suas teorias, é vivaço até mais não. O que resta de um pensador é o seu temperamento, quer dizer, o que o faz esquecer-se de si mesmo ; é pelas contradições, pelos caprichos, pelas reacções imprevisíveis e incompatíveis com as linhas fundamentais da sua filosofia, que diverte, desconcerta, interessa. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 (dezembro de 1967).

Influenciadores do século XX

O meu «tipo»: pensamento obsessivo — estilo acrobático. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 (dezembro de 1965) 
Não sou nem pensador, nem homem de acção (!), nem, nem, nem, nem tudo o que quiserem — sou um elegíaco do fim do mundo. Cioran descarregava nos  cadernos tudo o que lhe ia na alma. Não exactamente como filósofo. Aliás, Cioran não é um verdadeiro filósofo ou, melhor dizendo, não é um filósofo a sério : não respeita nem a disciplina nem os protocolos, está na filosofia a meio gás, sempre a cair noutros temas e também no chão.  Sou um filósofo-uivador. As minhas ideias, se é que as há, uivam; não explicam nada, explodem.   É apenas um homem solitário cheio de dúvidas, sofrimento e energia. Um homem que se atira às palavras como um guerreiro à procura de uma fórmula. Um pobre diabo. Um homem em constante movimento. Um homem encantador.

Convite para sábado, 9 de Dezembro.

A livraria Térmita fica no Largo de Mompilher, n.º 5, no Porto (porta ao lado do Candelabro). Os Mompilher Rendez-Vous têm o grafismo dos Lina&Nando .

A estranheza do branco

Quatro horas de caminhada. A Beauce completamente coberta de neve. Frio intenso: 5°. Avanço nesta pequena estrada que mal se distingue da camada branca: um simples ponto na imensidão. Estou impressionado com a estranheza do branco. Diz-se, creio, branco como a morte. Sensação de caminhar noutro planeta. Total irrealidade. O sol alinhava no jogo. Também ele irreal. Se todo o universo estivesse contra mim, se eu fosse execrado quer por homens quer por deuses, nada me podia tocar ou abalar: que se pode fazer contra um ponto? um ponto no meio de uma extensão cor de nada? um nada no inexistente?   Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 (3 de janeiro de 1971) 

Condição de sobrevivente

Esta manhã, por volta das 3h, do Colégio Militar ao Odéon, meti por ruelas completamente solitárias. Nem vivalma. Frio. E ocorreu-me a ideia de que caminhava por uma cidade onde todos os vivos tinham sido exterminados instantaneamente (guerra bacteriológica?). Nenhuma angústia nem satisfação. E pensei que nos adaptamos depressa à condição de sobrevivente. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 (22 de novembro de 1968) 
Rever a tradução dos Cadernos de Cioran é das actividades mais obsessivas que já experimentei. Mesmo que em parte a culpa seja do ritmo repetitivo do texto, deixar-me levar por essas variações crescentes já é problema, ou defeito, meu. Trabalho como um carpinteiro maluco que não se cansa de aplainar a madeira porque quer que ela fique simultaneamente muito suave e muito rude.
Começamos a saber o que é a solidão quando escutamos o silêncio das coisas. Então compreendemos o segredo enterrado na pedra e revelado na planta, o ritmo oculto ou visível da Natureza toda inteira. O mistério da solidão deriva do facto de para ela não existirem criaturas inanimadas. Cada objecto tem a sua linguagem, que deciframos graças a silêncios incomparáveis. Lágrimas e Santos, Emil Cioran. Edições 70, novembro 2022. 

Itinerário da alma vacilante

Rue de Vaugirard, Rue Rataud, Rue Lhomond, Rue du Pot-de-Fer, Rue Amyot, Rue du Cardinal-Lemoine, Rue Jean-de-Beauvais, Rue du Sommerard, Rue Médicis, Rue Guynemer, Rue Daru, Rue d'Orléans, Rue Saint-Denis, Rue de Tournon, Rue de l'Odéon, Rue d'Assas, Rue Garancière, Rue Cujas, Rue Servandoni, Rue Racine, Rue Vavin.  Place des Vosges, Place de l'Odéon, Place des Vosges, Place de la Concorde, Place de l’ Étoile, Place Saint-Sulpice, Place du Panthéon. Jardin des Plantes, Jardin du Luxembourg.