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A mostrar mensagens com a etiqueta Emil Cioran

Comme un dialogue d’amoureux

Quero fazer (!) um livro composto unicamente de fragmentos, notas, aforismos. Pode ser um erro, mas essa fórmula está mais próxima da minha natureza, do meu gosto pelo inacabado, diga-se, do que os ensaios elaborados onde é preciso manter uma aparência de rigor às custas da verdade interna.  Emil Cioran, Cadernos 1957-1972.

Nunca desilude

Sempre que ouço Bach, digo a mim mesmo que é impossível que tudo seja aparência. Tem de haver outra coisa. E depois, a dúvida toma conta de mim de novo. * Se Bach pode tomar para mim o lugar do resto da música, não consigo ver o escritor que possa substituir sozinho todos os outros – nem mesmo Shakespeare. Cansamo-nos das palavras, sejam elas de Macbeth ou de Lear; não nos cansamos de sons quando compõem certos motetos, certas cantatas. * A coisa mais difícil que há é renovar as nossas admirações. Só admiramos de verdade até aos vinte anos. Depois, é só entusiasmos ou caprichos. Mudei de opinião sobre toda a gente, exceto sobre Shakespeare, Bach e Dostoiévski. Desses três, a minha preferência vai para Bach. Dele podemos dizer: este nunca desilude . * Ouvir Bach nos grandes armazéns enquanto compramos cuecas! E.M. Cioran, Cadernos 1957-1972 . Tradução de Cristina Fernandes. Folha de sala das Variações Goldberg , por Pedro Burmester. Teatro São João, Outubro de 2024.
«O homem começa de novo todos os dias, apesar de tudo o que sabe, contra tudo o que sabe.» Cioran a abrir o belíssimo livro A Noite de Todos os Dias que acompanha a exposição de Maria Capelo na Galeria Ala da Frente, em Famalicão, até 4 de Outubro.

Refletir (um postal para a Alexandra)

Conheci escritores obtusos e até mesmo estúpidos; todos os tradutores que conheci eram, sem excepção, inteligentes e muitas vezes mais interessantes do que os autores que traduziam. (Há mais reflexão na tradução do que na «criação».) Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 (outubro de 1971).

Uma novidade desastrosa

Todo o dia ruminei sobre um pequeno detalhe extraordinário. Quando Pascal fala do homem, diz: que caos, que contradições, etc. O homem, que novidade ! Esta «novidade», que palavra admirável para definir o carácter anormal da aparição do homem, o imprevisto e o desconcertante de tal fenómeno. Com efeito, o homem é, na natureza, uma novidade, uma novidade desastrosa. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972.

Borges (o último dos delicados)

Carta para Fernando Savater Paris, 10 de dezembro de 1976 Querido amigo, Em novembro, quando passou por Paris, pediu-me para colaborar num volume de homenagem a Borges. A minha primeira reação foi negativa; a segunda… também. Para quê venerá-lo quando as próprias universidades já o fazem? A má sorte de ser conhecido abateu-se sobre ele. Merecia melhor. Merecia permanecer na sombra, no imperceptível, manter-se tão esquivo e tão impopular como uma nuance. Era aí que se sentia em casa. A consagração é a pior das punições — para um escritor em geral, e muito especialmente para um escritor do seu género. A partir do momento em que todos o citam, já não o podemos citar ou, se o fazemos, temos a impressão de estar a engrossar a legião dos seus «admiradores», dos seus inimigos. Na verdade, aqueles que querem a todo o custo prestar-lhe justiça, mais não fazem do que precipitar a sua queda. E fico por aqui, porque se continuasse neste tom acabaria por me compadecer do seu destino

Peso e leveza

De volta aos Cadernos de Cioran, na tradução da Cristina. Impressiona-me o número de frases que terminam com reticências. As palavras são firmes, graves, sólidas. Mas também transparentes, leves, musicais. Peso e leveza, em simultâneo. As reticências são talvez um ponto de fuga, um pequeno movimento para libertar energia. Como as pontes que têm de oscilar para não cair.

Benjamin Fondane

6, rue Rollin O rosto mais sulcado, mais escavado que se possa imaginar, um rosto com rugas milenares, mas de modo algum petrificadas, pois eram animadas pelo tormento mais contagioso e mais explosivo. Não me cansava de as contemplar. Nunca antes tinha visto uma tal concordância entre parecer e dizer, entre fisionomia e palavra. É-me impossível pensar na mais pequena das afirmações de Fondane sem imediatamente me dar conta da presença imperiosa dos seus traços.  Visitava-o muitas vezes (conheci-o durante a Ocupação), sempre com a ideia de não ficar mais de uma hora e acabava por passar a tarde inteira em sua casa, por minha culpa claro, mas também por culpa dele: ele adorava falar, e eu não tinha coragem e muito menos vontade de interromper um monólogo que me deixava exausto e arrebatado. No entanto, na primeira visita que lhe fiz com intenção de o interrogar sobre Chestov, eu é que fui descomedido. Pois, sem dúvida por necessidade de me exibir, não lhe fiz pergunta nenhuma, preferin

Ao reler...

Traduzido para alemão por Paul Celan, o Breviário de Decomposição foi publicado pela Rowohlt em 1953. Quando foi reeditado pela Klett-Cotta, há oito anos, o director da Akzente pediu-me para o apresentar aos leitores da revista. É esta a origem deste texto. Ao reler este livro, que remonta a mais de trinta anos, procuro reconhecer a personagem que fui e que se esgueira, que me escapa, pelo menos em parte. Os meus deuses eram Shakespeare e Shelley. Continuo a ler o primeiro; o segundo, raramente. Cito-o para indicar por que tipo de poesia estava intoxicado. O lirismo desenfreado combinava com as minhas disposições: infelizmente apercebo-me dos seus vestígios em todos os meus exercícios dessa época. Quem consegue ainda ler um poema como Epipsychidion ? Enfim, eu lia-o com prazer. O platonismo histérico de Shelley repugna-me e à efusão, seja qual for a forma que apresente, prefiro agora a concisão, o rigor, a frieza deliberada. No essencial, a minha visão das coisas não mudou; o que

Uma citação e duas notas

Mas o público de cinema adora os artifícios emocionais, diverte-se participando emocionalmente nos filtros artificiais, e não se pode deixar de compreender quem sai a correr de Diário de um Pároco de Aldeia pelo mesmo motivo que de Sleep (1964), de Warhol — são filmes pura e simplesmente demasiado «chatos». O Estilo Transcendental no cinema (página 138), de Paul Schrader.  Em Bresson e a sua personalidade , na página 157, directa ou indirectamente, Paul Schrader atira as seguintes classificações ao cineasta: estilista consumado, excêntrico, mórbido, hermético, estranho e obcecado com os dilemas teológicos, reaccionário cultural, revolucionário artístico, fanático religioso obsessivo, uma figura romântica, inquieta e torturada, forçado a viver as suas neuroses na tela, inadaptado, um neurótico suicida, génio excêntrico .  Na página 161, num só parágrafo sobre o desconcertante problema do suicídio nos filmes de Bresson, a palavra suicídio aparece quatro vezes, suicida-se , uma. E a

Menear-se

Todos esses professores, Heidegger à cabeça, que vivem como parasitas de Nietzsche, e que acham que filosofar é falar de filosofia. — Fazem-me pensar nos poetas que imaginam que a missão de um poema é cantar a poesia. Por toda a parte o drama do excesso de consciência: trata-se de um esgotamento de talentos ou de um esgotamento de temas? Dos dois, sem dúvida: falta de inspiração que acompanha a falta de matéria. Desaparecimento da ingenuidade; muito malabarismo, habilidade , nas coisas importantes. O acrobata suplantou o artista, o próprio filósofo não é senão um pedante que se meneia . Emil Cioran, Cadernos 1957-1972.
1 de Janeiro de 1969  Fui passear entre Étréchy e La Ferté-Alais. Neve e nevoeiro, um nevoeiro tão suave que as árvores pareciam fumo imobilizado. Raramente vi uma paisagem tão poética. Tudo era irreal — e depois, por causa do gelo, as estradas estavam desertas.  Entrei num cafezinho em Villeneuve-sur-Auvers, onde ouvi uma canção americana (inglesa?) « Those were the days » que, pela entoação elegíaca, me comoveu mais do que seria de esperar. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972.

Soma de derrotas = vitória

21 de Dezembro  A única solução: continuar como se nada fosse; aconteça o que acontecer, um dia havemos de ganhar a causa. Perante quem? Não importa. O certo é que, se permanecermos nós mesmos, se tivermos a coragem de defender a nossa causa até ao fim, a soma de derrotas que teremos experimentado equivalerá a uma vitória. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972.

Rigidez e graça

Visita de um professor japonês, Tadoo Arita, e da sua mulher. Decididamente, este povo tem classe. Nem o menor traço de vulgaridade! Têm «estilo» como os franceses devem ter tido noutro século e como os ingleses ainda têm um pouco. Rigidez e graça — paradoxalmente combinadas. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 (março de 1967).

Admiradores desconhecidos

Nunca devemos responder a cartas de desconhecidos. Quando as recebia, agora compreendo, era porque falavam de mim na «imprensa». Como já não publico e depois de uma certa «conspiração de silêncio» (!), mais ninguém repara na minha existência. Facto com que me congratulo. Mas que lição! E pensar que, como toda a gente, acreditei nos «admiradores»! (Outubro de 1962)  Acho que não recebi uma única carta de um desconhecido que fosse normal. De um desconhecido, entenda-se, que me tenha escrito entusiasmado, a quem dei alguma coisa e que confessou sentir afinidades comigo. Destroços, perdidos, infelizes, doentes, dilacerados, incapazes de inocência, corroídos, atingidos por todos os tipos de enfermidades secretas, falharam em todos os exames cá em baixo, arrastando atrás de si o seu jovem ou o seu velhíssimo desconcerto. Nunca me pediram nada, porque sabiam que nada lhes podia oferecer. Só queriam dizer que me tinham compreendido... (Novembro 1968) Emil Cioran, Cadernos 1957-1972.

O que resta de um pensador

De tudo o que Schopenhauer escreveu e pensou, apenas as explosões de humor permanecem vivas. Sempre que fala do seu sistema, e sabe Deus como insiste nisso, é chato, cai numa ladainha; assim que se esquece que é filósofo e que tem de permanecer fiel às suas teorias, é vivaço até mais não. O que resta de um pensador é o seu temperamento, quer dizer, o que o faz esquecer-se de si mesmo ; é pelas contradições, pelos caprichos, pelas reacções imprevisíveis e incompatíveis com as linhas fundamentais da sua filosofia, que diverte, desconcerta, interessa. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 (dezembro de 1967).

Influenciadores do século XX

O meu «tipo»: pensamento obsessivo — estilo acrobático. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 (dezembro de 1965)