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A mostrar mensagens com a etiqueta Emil Cioran

Imobilidade em movimento

O sentimento de que corre tudo mal existiu em todas as épocas, e com razão, já que o maior prazer dos homens é inventar maneiras de tornar a vida uns dos outros miserável. A afirmação dos conservadores de que a sociedade actual é má, mas a seguinte será ainda pior, é irritante e até mesmo insuportável. E, no entanto, a história confirma este diagnóstico à risca. Que fazer? Tornar-se budista ou aceitar o Progresso de olhos fechados? Esta superstição vem do tempo do Marquês de Condorcet, e a sua influência tem sido enorme. A ideia de Progresso é uma forma atenuada de utopismo, um delírio aparentemente razoável sem o qual as ideologias do século passado, assim como as do nosso, teriam sido impossíveis. A originalidade do ponto de viragem histórico que estamos a testemunhar reside no facto de este delírio estar a ser contestado, submetido a uma lucidez fatal — um despertar ao mesmo tempo libertador e terrível. As velhas categorias de «direita» e de «esquerda» parecem ultrapassadas. Eviden...

As alegrias em cadeia da tradução

Voltei a Cioran. Estou a traduzir mais alguns dos empolgantes Exercícios de Admiração (o outro lado do filósofo sinistro). Quando encontrei a citação de The Crack-Up , fui buscar a versão de Aníbal Fernandes ( A Ferida Aberta , Hiena, Janeiro de 1986) e, ao folhear o livro, descobri a expressão estar na fossa na página 65. Apesar de me ocorrer muitas vezes, nunca tive coragem de a usar nos textos de Cioran, porque é demasiado moderna. Encontrá-la no livrinho maldito de F. Scott Fitzgerald pareceu-me um sinal inequívoco de pensamento circular. 

Admiradores

Joyce e Musil moravam muito perto um do outro em Zurique durante a última guerra; no entanto, não fizeram nenhuma tentativa de se conhecerem, de se encontrarem. Os criadores não comunicam entre si. Precisam de admiradores, não de semelhantes . Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

Livros fortificantes

O que não devo aos livros destrutivos, do contra, «ácidos»? Sem eles, já não estaria vivo. É por reacção ao seu veneno, por resistência à sua força nociva, que me fortaleci e me apeguei ao ser. Livros fortificantes , pois despertaram em mim tudo o que os devia negar. Li quase tudo o que é preciso para soçobrar, mas foi precisamente por isso que consegui evitar o naufrágio. Quanto mais «tóxico» é um livro, mais age em mim como um tónico. Só me afirmo pelo que me exclui. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972
O nacionalismo é um pecado do espírito. Pertencer a um povo não tem um significado profundo (excepto, talvez, para os Judeus). A única comunidade verdadeira é aquela que se funda na «família espiritual», nem nacional nem ideológica. Só me sinto solidário com quem me compreende e que eu compreendo, com quem acredita em certos valores inacessíveis às multidões. Tudo o resto é mentira. Um povo é uma realidade, sem dúvida; uma realidade histórica e não essencial. Quando penso na efervescência da minha juventude por causa da minha tribo! Que loucura, meu Deus! Temos de nos libertar das nossas origens, ou pelo menos esquecê-las. Tenho tendência a voltar a elas, sem dúvida por masoquismo, por gosto da servidão, das «grilhetas», da humilhação. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

China my China

21 de Junho  Ontem disse à Doreen que o governo devia pôr à disposição da população uma sala ou um edifício onde as pessoas se pudessem encontrar, conversar, fazer discursos, desabafar. Ela respondeu-me que as mulheres na China antiga, quando estavam com raiva ou tinham alguma aflição, subiam a pequenos estrados, montados especialmente para elas na rua, e ali davam rédea solta à sua fúria ou à sua tristeza. Essa «prática» parece-me muito mais eficaz do que o método psicanalítico ou o confessionário. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

Ir ao mercado

Ouvido no mercado. Duas mulheres velhas e gordas prestes a terminar a conversa. Uma diz à outra: «Para se viver tranquilo, não devemos sair do rame-rame da vida.» Uma manhã destas, fui ao mercado (como todos os dias). Depois de dar três voltas, saí incapaz de me decidir por o que quer que fosse. Nada me tentava, não tinha vontade de nada. Em tudo, a escolha tem sido a minha perdição ao longo da vida. Noutro dia, no mercado, olhei por um instante para uma cabeça de boi cuja pele tinha sido arrancada. Os olhos, ou o que deles restava, deram-me um calafrio terrível. No mercado, uma mulher horrível, com cabeça de águia, começou a gritar comigo porque eu tinha acabado de passar entre ela e a banca. «Você não é educado. Um cavalheiro não deve passar à frente de uma mulher, etc.» Ela insiste. Fraqueza incrível da minha parte, tento justificar-me e enervo-me tanto como a mulherzinha. Nisso, como sempre, sensação de mal-estar físico. Decididamente, só morto alcançarei a indiferença. ...
Um Papa que perdia a fé e abandonava o Vaticano depois de uma declaração pública de ateísmo... Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 
Como todos os grandes acontecimentos cá em baixo, o «fim do mundo» chegará com um «primário», com um louco... medíocre. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 

& outras manhas

Foi uma luta para me obrigar a traduzir decentemente este aforismo (V ariations Goldberg . / … Après ça, il faut tirer l’échelle). Na verdade, gosto mais da versão censurada ( Variações de Goldberg . / … Depois disto, deitar fora a escada). Tenho uma predilecção por escadas.
Antes de imprimir uma cópia de trabalho, passo os olhos outra vez pela tradução dos  Cadernos . Substituo algumas palavras, corrijo advérbios, corto pronomes, inverto a ordem, verifico se as notas batem certo... Podia andar anos nisto. Um tabuleiro de Mahjong infinito. (Outro tipo de terapia.)

Campanha eleitoral

É incrível a que ponto o espírito é tão pouco capaz de prever, de admitir, de assimilar as catástrofes. À minha volta só vejo pessoas que não querem acreditar nas catástrofes. Isso vem de uma reacção de defesa completamente natural, mas também de uma falta de cultura histórica. Ora o que é a História senão a disciplina do pior? Quem a cultiva, habitua-se e até lhe ganha o gosto...  Eles não ousariam (foi o que os checos disseram a si mesmos recentemente... até que viram). Os romanos também não acreditavam que Alarico ousaria. Um homem político que rejeita a ideia de catástrofe é um ingénuo e prepara a ruína do seu país. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 

Best-seller

Graças ao Daniel e à Diana, o Caderno de Talamanca é o livro mais bonito de Cioran que já vi. Entretanto comecei a fazer pequenas emendas à tradução, o que sustenta o meu carácter duvidoso. Não há contradição entre os axiomas.
Nostalgia e ansiedade — é a isto que a minha «alma» se resume. Dois estados aos quais correspondem dois abismos: o passado e o futuro. Entre os dois, apenas o ar suficiente para poder respirar, apenas o espaço suficiente para me aguentar de pé Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 

A velha tradição dos ladrões de malas

A história do deputado da extrema-direita que roubava malas lembrou-me um episódio contado por Cioran nos Cadernos : «Gertrud Kantorowicz, ao viajar com todos os inéditos de Simmel, perdeu-os a todos, pois a sua mala foi roubada enquanto ela estava no vagão-restaurante.»  (Tradução de Cristina Fernandes.) Na longa tradição dos ladrões de malas, imagine-se um nazi dos anos 20 ou 30 a abrir, ansioso e malandro, uma mala que acabara de roubar, e a descobrir, desiludido, um monte de gatafunhos sobre sociologia.

Fulgor de fim de partida

A fisiologia não é um instrumento de análise do pensamento. Às vezes sabemos algum pormenor das funções orgânicas de um ou outro filósofo, uma disfunção, uma doença mais grave, mas esses factos são resguardados e não afectam o trabalho de escrutínio dos seus raciocínios — simplesmente, não é assim que as convenções académicas funcionam.  Porém, quando um pensador faz gala de se afastar das práticas admitidas, tudo é possível. É o que acontece com Emil Cioran: para compreendermos os seus pensamentos devemos, antes de mais, esquecer o jargão da hermenêutica e considerar a fisiologia e as suas palavras clínicas.  Essa é uma das ideias que se apreende logo nas primeiras páginas dos seus Cadernos . Quando começou a escrever estas notas diárias, Cioran tinha 46 anos o que, na altura, correspondia a uma idade já um bocado avançada (em 1957, a esperança de vida em França para os homens era de 65,5 anos). Mas o problema é mais estrutural. Para além dos males do espírito de que sofre de...