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Um turista mexeu

Notícia no jornal: «O relógio da Torre dos Clérigos, no Porto, está atrasado 40 minutos desde segunda-feira, após um turista ter mexido num dos seus veios mecânicos.»  De repente, um turista trapalhão lança toda a cidade num salto mirabolante pelo abismo do tempo. Um pequeno gesto involuntário e o Porto passa a ser o único lugar do mundo que avança segundo uma escala temporal diferente. 40 minutos, 40 horas, quem sabe 40 anos fora do tempo. Ou simplesmente — outra hipótese — o turista não resistiu ao apelo erótico do veio mecânico do relógio dos Clérigos e tocou-lhe. Com a ponta dos dedos, com a mão toda, talvez.

O preço das coisas

Dois tipos falam de negócios no Piolho. Um jogador que vai ser transferido e render não sei quantos milhões. Outro que custou uma quantia faraónica e que nem sequer joga. A gestão dos activos que tem sido ruinosa. As opções de investimento que têm de ser mais ousadas. Etc., etc. O café e a meia torrada, felizmente, ainda custam o mesmo.

Os pássaros do Marquês

Um bando de publicitários decidiu pendurar nas árvores do Marquês um sistema de som que reproduz, sem descanso, o canto gravado de vários pássaros. Apesar do barulho do trânsito, o monstruoso chilreio ouve-se em toda a praça e nas ruas mais próximas. As aves de carne e osso, tomadas de pavor, voaram para longe. Nem os pardais ficaram. Espécie esquisita de gentrificação.

A estátua de Camilo na Cordoaria

Não conheço ninguém que goste da estátua de Camilo na Cordoaria. Em três dias, porém, transformou-se num símbolo de resistência contra o snobismo parolo dos «ilustres» da cidade . Agora, sim, aquela coisa de bronze tem um significado. A estátua mal amada já não sai da Cordoaria. E espero que nunca saia.

Uma espada talvez

Há no Cemitério da Lapa um grande anjo que se vê da Rua Antero de Quental. Eleva-se acima do muro alto, pousado no telhado de um mausoléu e com o braço direito erguido para o céu. Na verdade, o anjo segurava qualquer coisa que entretanto desapareceu. Talvez um estandarte, uma luz, uma espada talvez. O anjo parece estar sempre amuado, a cismar naquilo.

An alternative Porto

Texto num mupi publicitário, no centro do Porto: Neonia Coming soon An alternative Porto inside the real one. Não há melhor ilustração do «Porto real» destes tempos: uma coisa «alternativa» dentro de outra mais «alternativa» ainda. Uma fachada de plástico com néons a esconder o vazio. Simples simulacro publicitário. Apenas isso.

O Porto em Agosto

Em Agosto, o vento acha-se mais à vontade. Está livre de obrigações: não há chuva, nuvens, nada. Entra pelas casas como se tudo isto fosse de papelão. Voam cortinas e fotografias, as portas batem com estrondo, sombras uivam debaixo da escada. Talvez Kafka tenha sonhado com o Porto em Agosto quando lhe apareceu o primeiro Odradek.

Olhar pela janela

É cedo. Ainda não há turistas no metro. Apenas gente que se desloca para o trabalho e que, como sempre, faz a viagem sem levantar os olhos do telemóvel. De súbito, apercebo-me de um tipo, o único na carruagem cheia, que olha pela janela. Não tem telemóvel. Não tem um livro, um jornal. Limita-se a olhar pela janela, estação após estação. Quem é ele? Um fantasma do passado? Um sábio? Um louco?

Virtudes

Domingo de tarde. Está calor. Estendemos as toalhas nas Virtudes, debaixo de uma oliveira, e pomo-nos a ler: «Estava ali como na sua varanda, ao sol de Maio, o jornal em cima do rosto e uma vareja a zumbir em volta dele, tétrica» (Agustina, Escritos sobre Cinema, p. 67.)

Ajuda para comer

No Largo da Lapa, um homem pede-me «uma ajuda para comer». Deve ter cinquenta e muitos. Provavelmente, dorme na rua. Enquanto procuro a carteira no fundo da mochila, o homem acrescenta: «Isto se não lhe fizer diferença. Não quero prejudicar ninguém. Isto está fodido para todos.»

A coisa está em marcha

Um homem no Marquês, à porta de um café. Setenta e muitos. A bengala encostada à parede. Com uma moeda, risca uma raspadinha. «Oh, meu Deus! Oh, meu Deus!» Risca uma vez, risca outra. «Oh, meu Deus!» A coisa está em marcha. A moeda risca, risca, risca uma e outra vez ainda. Nada. Larga a raspadinha no lixo. Tira um maço de tabaco do bolso e acende um cigarro. Pega na bengala. Desce a Constituição, fumando.

E assim por diante

Da janela do Candelabro, observo um tipo que está na esplanada ao lado e que acaba de pedir vinho. O empregado traz a garrafa, serve uma pequena quantidade no fundo do copo e espera que o cliente prove. O tipo é como eu: de vinho, conhece apenas o rústico prazer de beber. Seja como for, compõe o ar mais digno possível, leva o copo à boca, bebe um bocadinho, fixa um ponto vago numa parede do largo e, finalmente, faz que sim com a cabeça. O empregado já serviu milhares de tipos como este. Ambos sabem que todos estes gestos são inúteis. Mas alguém pode estar a olhar, talvez de uma janela próxima. É preciso repetir os gestos outra vez. E outra vez. E outra vez. E assim por diante.

Cegos

Manhã cedo. Bebo um café junto à janela da cozinha. Lá fora, os vizinhos passeiam os animais de estimação. Se por um fenómeno esquisito, os animais de repente se evaporassem, os vizinhos pareceriam cegos a caminharem para a frente e para trás, segurando bengalas em forma de trelas.