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Andamentos perdidos

Da janela do escritório, ouço os calceteiros a empedrar a Rua de São Bento da Vitória, que está em obras. Dão três pancadas seguidas em cada pedra: a primeira mais forte, a segunda menos e a terceira é uma espécie de eco menor das anteriores. Perto deles, há um rádio sintonizado num canal de êxitos pop dos anos 80. Misturada com os diferentes sons do ferro a bater no granito, a música transforma-se noutra coisa. Andamentos perdidos de um Wagner enlouquecido.

«As nossas mulheres»

Na apresentação da candidatura à Câmara do Porto, o concorrente da «direita democrática» disse: «Nesta terra não se ameaça, não se intimida impunemente as nossas mulheres, as nossas crianças, ou qualquer cidadão, seja nas ruas, nos jardins, ou nas estações de metro. Quem não sabe comportar-se dessa forma, não é bem-vindo!» Ia escrever que é uma declaração repugnante e irresponsável, mas desisti. Certas palavras já não significam nada.

Novo mundo

Estão 33 ou 34 graus. Turistas japoneses passeiam pela Cordoaria de guarda-chuva aberto, tentando proteger-se do sol. Dezenas de guarda-chuvas, avançando em todas as direcções, como num dia de tempestade. Pousadas nos semáforos, as gaivotas observam este novo mundo, confusas.

A política do medo

À medida que o mundo se desconcerta e a extrema-direita se instala no poder ou se aproxima dele, o tempo parece empurrar-nos rapidamente para as grandes tragédias. Nos últimos dias, um pouco por toda a Baixa, dezenas de cartazes do Dia Internacional das Mulheres apareceram riscados e apagados com tinta preta. «Tem cuidado, Ofélia, tem cuidado/ E mantém-te na retaguarda do teu afecto,/ Abrigada dos projécteis e afrontas do desejo», diz Laertes à irmã. Ou melhor, Laertes ordena. Ele é um homem, viril e experimentado; Ofélia é apenas uma mulher, pura e inocente. E o macho conclui: «Toma por isso cuidado; a melhor política é o medo.» Os velhos textos não nos salvam, mas mostram o mundo sem paninhos quentes. Estamos avisados.

A Ratoeira

Um balão vermelho com a forma de um coração, talvez oferecido no dia dos namorados, prendeu-se nos cabos de telefone, na Praça da República. Quando o vento sopra, parece um bicho desesperado a tentar escapar de uma armadilha. «Como se chama a peça?», pergunta o Rei. «A Ratoeira – que tropológico!», responde Hamlet .

Sem pressa

Há um músico de rua que costuma estar, de manhã, no Miradouro da Vitória. Ouço-o da minha sala de trabalho. Não tem boa voz. Mas apurou uma técnica: alonga as canções até ao limite – versões de temas pop-rock famosos –, como se esticasse um elástico ao máximo e o conservasse assim, em absoluta contenção. Uma nota após outra, lentíssimo. Tão lento que, em vez de “cantar”, “diz” as letras. Diz, porém, como se as cantasse. A técnica musical do tipo exige uma atenção e um tempo que são o contrário do ritmo acelerado do turismo, dos vários turismos. «O tempo de sem pressa contarmos até cem.»

Dormir bem

Nazmul Hazari, imigrante no Porto, diz a um jornalista que em Portugal talvez não se ganhe tanto como noutros países, mas «come-se bem, bebe-se bem, dorme-se bem, vive-se bem e isso é o essencial». É a ideia mais bonita que já li sobre este país: um sítio onde se dorme bem.

Vantagens do turismo

Nove da manhã, seis graus centígrados. A cidade ainda está meio estremunhada. As colunas de som da esplanada do antigo café Luso (transformado, entretanto, numa coisa de cujo nome não me lembro nem quero lembrar) espalham pela Praça de Carlos Alberto, como brasas, as notas de Stayin' Alive , dos Bee Gees.