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China my China

21 de Junho  Ontem disse à Doreen que o governo devia pôr à disposição da população uma sala ou um edifício onde as pessoas se pudessem encontrar, conversar, fazer discursos, desabafar. Ela respondeu-me que as mulheres na China antiga, quando estavam com raiva ou tinham alguma aflição, subiam a pequenos estrados, montados especialmente para elas na rua, e ali davam rédea solta à sua fúria ou à sua tristeza. Essa «prática» parece-me muito mais eficaz do que o método psicanalítico ou o confessionário. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

Ir ao mercado

Ouvido no mercado. Duas mulheres velhas e gordas prestes a terminar a conversa. Uma diz à outra: «Para se viver tranquilo, não devemos sair do rame-rame da vida.» Uma manhã destas, fui ao mercado (como todos os dias). Depois de dar três voltas, saí incapaz de me decidir por o que quer que fosse. Nada me tentava, não tinha vontade de nada. Em tudo, a escolha tem sido a minha perdição ao longo da vida. Noutro dia, no mercado, olhei por um instante para uma cabeça de boi cuja pele tinha sido arrancada. Os olhos, ou o que deles restava, deram-me um calafrio terrível. No mercado, uma mulher horrível, com cabeça de águia, começou a gritar comigo porque eu tinha acabado de passar entre ela e a banca. «Você não é educado. Um cavalheiro não deve passar à frente de uma mulher, etc.» Ela insiste. Fraqueza incrível da minha parte, tento justificar-me e enervo-me tanto como a mulherzinha. Nisso, como sempre, sensação de mal-estar físico. Decididamente, só morto alcançarei a indiferença. ...
Um Papa que perdia a fé e abandonava o Vaticano depois de uma declaração pública de ateísmo... Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 
Como todos os grandes acontecimentos cá em baixo, o «fim do mundo» chegará com um «primário», com um louco... medíocre. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 
Antes de imprimir uma cópia de trabalho, passo os olhos outra vez pela tradução dos  Cadernos . Substituo algumas palavras, corrijo advérbios, corto pronomes, inverto a ordem, verifico se as notas batem certo... Podia andar anos nisto. Um tabuleiro de Mahjong infinito. (Outro tipo de terapia.)

Campanha eleitoral

É incrível a que ponto o espírito é tão pouco capaz de prever, de admitir, de assimilar as catástrofes. À minha volta só vejo pessoas que não querem acreditar nas catástrofes. Isso vem de uma reacção de defesa completamente natural, mas também de uma falta de cultura histórica. Ora o que é a História senão a disciplina do pior? Quem a cultiva, habitua-se e até lhe ganha o gosto...  Eles não ousariam (foi o que os checos disseram a si mesmos recentemente... até que viram). Os romanos também não acreditavam que Alarico ousaria. Um homem político que rejeita a ideia de catástrofe é um ingénuo e prepara a ruína do seu país. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 
Nostalgia e ansiedade — é a isto que a minha «alma» se resume. Dois estados aos quais correspondem dois abismos: o passado e o futuro. Entre os dois, apenas o ar suficiente para poder respirar, apenas o espaço suficiente para me aguentar de pé Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 

Refletir (um postal para a Alexandra)

Conheci escritores obtusos e até mesmo estúpidos; todos os tradutores que conheci eram, sem excepção, inteligentes e muitas vezes mais interessantes do que os autores que traduziam. (Há mais reflexão na tradução do que na «criação».) Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 (outubro de 1971).

Uma novidade desastrosa

Todo o dia ruminei sobre um pequeno detalhe extraordinário. Quando Pascal fala do homem, diz: que caos, que contradições, etc. O homem, que novidade ! Esta «novidade», que palavra admirável para definir o carácter anormal da aparição do homem, o imprevisto e o desconcertante de tal fenómeno. Com efeito, o homem é, na natureza, uma novidade, uma novidade desastrosa. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972.

Peso e leveza

De volta aos Cadernos de Cioran, na tradução da Cristina. Impressiona-me o número de frases que terminam com reticências. As palavras são firmes, graves, sólidas. Mas também transparentes, leves, musicais. Peso e leveza, em simultâneo. As reticências são talvez um ponto de fuga, um pequeno movimento para libertar energia. Como as pontes que têm de oscilar para não cair.

Menear-se

Todos esses professores, Heidegger à cabeça, que vivem como parasitas de Nietzsche, e que acham que filosofar é falar de filosofia. — Fazem-me pensar nos poetas que imaginam que a missão de um poema é cantar a poesia. Por toda a parte o drama do excesso de consciência: trata-se de um esgotamento de talentos ou de um esgotamento de temas? Dos dois, sem dúvida: falta de inspiração que acompanha a falta de matéria. Desaparecimento da ingenuidade; muito malabarismo, habilidade , nas coisas importantes. O acrobata suplantou o artista, o próprio filósofo não é senão um pedante que se meneia . Emil Cioran, Cadernos 1957-1972.
1 de Janeiro de 1969  Fui passear entre Étréchy e La Ferté-Alais. Neve e nevoeiro, um nevoeiro tão suave que as árvores pareciam fumo imobilizado. Raramente vi uma paisagem tão poética. Tudo era irreal — e depois, por causa do gelo, as estradas estavam desertas.  Entrei num cafezinho em Villeneuve-sur-Auvers, onde ouvi uma canção americana (inglesa?) « Those were the days » que, pela entoação elegíaca, me comoveu mais do que seria de esperar. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972.

Soma de derrotas = vitória

21 de Dezembro  A única solução: continuar como se nada fosse; aconteça o que acontecer, um dia havemos de ganhar a causa. Perante quem? Não importa. O certo é que, se permanecermos nós mesmos, se tivermos a coragem de defender a nossa causa até ao fim, a soma de derrotas que teremos experimentado equivalerá a uma vitória. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972.

Rigidez e graça

Visita de um professor japonês, Tadoo Arita, e da sua mulher. Decididamente, este povo tem classe. Nem o menor traço de vulgaridade! Têm «estilo» como os franceses devem ter tido noutro século e como os ingleses ainda têm um pouco. Rigidez e graça — paradoxalmente combinadas. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 (março de 1967).

Admiradores desconhecidos

Nunca devemos responder a cartas de desconhecidos. Quando as recebia, agora compreendo, era porque falavam de mim na «imprensa». Como já não publico e depois de uma certa «conspiração de silêncio» (!), mais ninguém repara na minha existência. Facto com que me congratulo. Mas que lição! E pensar que, como toda a gente, acreditei nos «admiradores»! (Outubro de 1962)  Acho que não recebi uma única carta de um desconhecido que fosse normal. De um desconhecido, entenda-se, que me tenha escrito entusiasmado, a quem dei alguma coisa e que confessou sentir afinidades comigo. Destroços, perdidos, infelizes, doentes, dilacerados, incapazes de inocência, corroídos, atingidos por todos os tipos de enfermidades secretas, falharam em todos os exames cá em baixo, arrastando atrás de si o seu jovem ou o seu velhíssimo desconcerto. Nunca me pediram nada, porque sabiam que nada lhes podia oferecer. Só queriam dizer que me tinham compreendido... (Novembro 1968) Emil Cioran, Cadernos 1957-1972.

O que resta de um pensador

De tudo o que Schopenhauer escreveu e pensou, apenas as explosões de humor permanecem vivas. Sempre que fala do seu sistema, e sabe Deus como insiste nisso, é chato, cai numa ladainha; assim que se esquece que é filósofo e que tem de permanecer fiel às suas teorias, é vivaço até mais não. O que resta de um pensador é o seu temperamento, quer dizer, o que o faz esquecer-se de si mesmo ; é pelas contradições, pelos caprichos, pelas reacções imprevisíveis e incompatíveis com as linhas fundamentais da sua filosofia, que diverte, desconcerta, interessa. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 (dezembro de 1967).

Influenciadores do século XX

O meu «tipo»: pensamento obsessivo — estilo acrobático. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 (dezembro de 1965)