Avançar para o conteúdo principal

Mensagens

A mostrar mensagens com a etiqueta A mãe e a puta

Son coeur mis à nu

O monólogo de Véronika é talvez a parte mais referida e até venerada d’ A mãe e a puta . Compreende-se, tem a força dos desastres: uma explosão, uma chuva torrencial, esses fenómenos que atraem e metem medo.  Mas prefiro encarar este monólogo de um jeito menos isolado e mais dialéctico, como uma resposta a todas as coisas cruéis que Alexandre disse à personagem Véronika e à antiga amante Françoise Lebrun durante essa longa  sequência de treze minutos no Flore . Como um verdadeiro contracampo — o mais intenso que já se viu num filme pois dura o tempo que tem de durar e usa um vocabulário em tudo contrário ao de Alexandre. Mostrando as suas contradições, as próprias debilidades do seu pensamento (haverá maior prova de sinceridade?), Véronika leva tudo pela frente: as palavras e a pose do amante e até as ideias do seu tempo. Exactamente como uma queimada quando o mundo era ainda rodeado de deuses. E mesmo depois desta catarse, depois do vómito e do plano igual ao de La Chienne , e da repr

Fazer frente a todas as ofensas

A sequência 26 é uma das mais longas do filme, dura treze minutos. É também a mais dolorosa e a mais grave. […] No Flore , Alexandre conta a Véronika as circunstâncias da sua ruptura com Gilberte. Com despudor e arrogância, pela boca de Léaud, Eustache acerta contas com Françoise Lebrun, contando minuciosamente todos os acontecimentos que levaram à separação e os que daí resultaram. A personagem é Véronika, mas a atriz é Françoise Lebrun. Pela única vez no filme, os olhares estão directamente no eixo da objectiva para dar mais peso aos argumentos. Além disso, a atriz luta para esconder a emoção, as lágrimas caiem dos olhos. Mas resiste e fica calada; ao aceitar o filme, decidiu enfrentar todas as ofensas. Quando Alexandre diz: "As mulheres que estão com tipos decentes deixam-nos sempre por gajos menores", a equipa sabe que o marido de Françoise está a fazer figuração sentado num banco vizinho. O casal aceitou o acerto de contas e o “menor” veio espontaneamente naquele dia ofe

Uma brecha

— Um dia em maio de 68…, havia muita gente no Mahieu , e estavam todos a chorar. Um café inteiro a chorar, era muito belo. Tinha lá caído uma granada de gás lacrimogéneo... Se não fosse lá todas as manhãs, não teria visto nada disso. Mas assim, diante dos meus olhos, abriu-se uma brecha na realidade.

Le Train Bleu

— Gosto tanto deste sítio. Quando estou de mau humor, venho para aqui, creio que sou o melhor cliente. Só há pessoas de passagem. Parece um filme de Murnau. Nos filmes de Murnau há sempre uma passagem: da cidade ao campo, do dia à noite. Tudo isso existe aqui. À direita, os comboios, o campo; à esquerda, a cidade. Parece que não há um grama de terra, nada mais do que pedra, betão, viaturas.

Quem é quem

Jean-Pierre Léaud interpreta Alexandre, alter ego de Jean Eustache.  Bernadette Lafont faz de Marie que na verdade é Catherine Garnier, encarregada do guarda-roupa e maquilhadora do filme, companheira de Eustache.  Françoise Lebrun, antiga companheira de Eustache, interpreta Véronika que na vida real é Marinka Matuszewski, amante de Eustache (ela aparece por um instante no Flore  a pedir lume a Alexandre).  Isabelle Weingarten interpreta Gilberte, na realidade Françoise Lebrun, aquela que deixou Eustache e não quer voltar para ele apesar das suas súplicas.  Vê-se Jean Eustache no supermercado a empurrar um carrinho de compras e de braço dado com Gilberte. Representa o marido daquela que o deixou. Aparece, portanto, no papel do seu rival. Luc Béraud, Au travail avec Eustache (Making of), Lyon, Arles, Institut Lumière/Actes Sud, 2017, p. 34

Falar com as palavras dos outros, deve ser isso a liberdade.

— E se fossemos tomar o pequeno-almoço ao Mahieu? É um café no boulevard Saint-Michel que abre às 5h25. A essa hora encontram-se por lá pessoas formidáveis, pessoas que falam como livros, como dicionários. Ao pronunciar uma palavra, é a própria definição dessa palavra que nos oferecem. Nada a ver com o jargão, a linguagem cifrada do Nouvel Observateur ou do Monde . Lembro-me de um árabe que dizia, pronunciando cada sílaba: “Consta que as mulheres negras fazem amor de forma extraordinária. Quando o homem introduz o seu órgão sexual na vagina da mulher, parece que se sente um calor de fornalha. Foi um administrador das colónias que me contou isto.” Gostava de poder falar assim. Falar com as palavras dos outros, deve ser isso a liberdade.

En vert et contre tout

Apesar de Jean-Pierre Léaud dizer que passa as tardes no Flore a ler ,  só o vemos com “À procura do tempo perdido”  — e o filme  tem três horas e quarenta minutos! O livro (com dedicatória) que ele tenta oferecer a Gilberte é “Os desastres de Sofia” (curiosa, mas não inédita, a ligação de Proust à Condessa de Ségur).  Em casa de Marie, quase escondido, o Cahier Michaux , das Editions de L’Herne .  Em casa do amigo, um livro sobre as SS.  Há mais algumas citações esparsas (Bernanos, Borges, Céline? et al .) O resto é a perfeição e diversidade literária do texto de Eustache: muitos aforismos, críticas de todos os tipos, pequenas narrações, confissões, diálogos, monólogos,  anedotas , etc. Contra todos.

Locais de filmagem em Paris:

Jardim de Luxemburgo, fora e dentro do gradeamento. Em frente ao liceu Montaigne.  Interior e esplanada do café Les Deux Magots . Interior do café de Flore . O café Le Saint-Claude . Interior de La Rhumerie . Le Train bleu , restaurante na estação de Lyon, O apartamento do amigo, rue du Commandant-Mouchotte . O apartamento de Marie (de Catherine Garnier), rue de Vaugirard . A boutique de Marie (de Catherine Garnier), rue Vavin. Um cais do Sena, à noite. O quarto de enfermeira nas águas-furtadas do hospital de Laennec, rue de Sèvres .  Algumas ruas do Quartier Latin .   Em Paris, Antoine de Baecque.