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Mensagens

A mostrar mensagens de junho, 2020

Fronteiras

Reabriram hoje as fronteiras entre Portugal e Espanha. Uma repórter da rádio foi a Badajoz ouvir alguns habitantes locais. Uma agente imobiliária diz que o confinamento foi excelente para o negócio: as pessoas não querem repetir a experiência de ficarem fechadas em casas pequenas, «sem varanda, jardim ou piscina». Na verdade, diz ela, não há casas com jardim e piscina suficientes para tão grande procura. Os clientes já não procuram um lugar para viver, mas um sítio para confinar bem.

Tipos de confinamento: o confinamento de classe

Jean Vigo, À propos de Nice , 1930.

Teoria Geral das Lágrimas

Na idade em que, por inexperiência, ganhamos gosto à filosofia, decidi, como toda a gente, escrever uma tese. Que tema escolher? Queria um ao mesmo tempo corriqueiro e insólito. Quando achei que o tinha encontrado, apressei-me a comunicá-lo ao meu mestre. — Que pensa de uma Teoria Geral das Lágrimas? Sinto-me à altura para a trabalhar. — É possível, disse ele, mas vai andar aos papéis para encontrar uma bibliografia. — E isso que importa? Toda a História por inteiro me apoiará com a sua autoridade, respondi com um tom de impertinência e triunfo. Mas como ele, impaciente, me deitou um olhar de desdém, resolvi de imediato matar o discípulo em mim. Emil Cioran, Silogismos da Amargura.

Rabanetes e cenouras

Grande parte do tempo que passo na cozinha é a lavar e cortar: batatas, alho francês, brócolos, cenouras, cebolas, feijão verde, rabanetes, alho, pimentos, coentros, tomates, etc. Trabalho de ajudante e não de “chefe”. Corto cada vez melhor.

Tipos de confinamento: o confinamento nas alturas

Luis Buñuel, Simão do Deserto , 1965.

Três imagens

O botão dourado que cai do uniforme do porteiro do hotel Atlantic, em O último dos homens , de Murnau. Digo «dourado» porque imagino que não possa ter outra cor. O botão cai com o mesmo estrondo com que desaba um homem do tamanho de Emil Jannings. O estômago de Maling, personagem de Graham Greene, que apanha sons duma maneira espantosa e torna a emiti-los após as refeições, sob a forma de «ruídos estomacais», como um papagaio. O estranho estômago é capaz de reproduzir um concerto de Brahms, repetir um discurso ou imitar a sirene de um alarme. O remédio que o velho pastor da Calábria toma todas as noites antes de se deitar, no filme de Frammartino: pó de igreja dissolvido em água. As palavras não ajudam. É preciso ver.

No ideas but in things

Tempos difíceis

De pé à escrivaninha Vejo pela janela no jardim um sabugueiro E reconheço nele coisas vermelhas e pretas E lembro-me de repente do sabugueiro Da minha infância em Augsburgo. Vários minutos fico a pensar Muito a sério, se irei ou não à mesa Buscar os óculos pra ver outra vez As bagas pretas nos raminhos vermelhos. Bertold Brecht, traduzido por Paulo Quintela.

25.000 dólares

Quando o filme [«O charme discreto da burguesia»] foi nominated ou seja seleccionado para os Oscares de Hollywood (...) quatro jornalistas mexicanos que eu conhecia conseguiram localizar-me e vieram almoçar ao restaurante El Paular . Durante o almoço, fizeram-me perguntas e tomaram notas. Evidentemente, não deixaram de me perguntar: - Don Luis, pensa que vai ganhar o Oscar? - Com certeza, respondi-lhes com o ar mais sério do mundo. Já paguei os 25.000 dólares que me pediram. Os americanos têm muitos defeitos, mas são homens de palavra. Os mexicanos tomaram-me à letra. Quatro dias depois, os jornais mexicanos anunciam que comprei o Oscar por 25.000 dólares. Escândalo em Los Angeles, telex atrás de telex . Silberman chega de Paris muito chateado e pergunta-me que bicho me mordeu. Respondi-lhe que tinha sido uma brincadeira inocente. As coisas acabaram por se acalmar. Passam três semanas e o filme ganhou o Oscar. O que me permite confirmar: Os americanos têm muitos defeitos mas são

Marxismo cultural — a santíssima trindade

Devemos ficar do lado dos oprimidos em todas as circunstâncias, mesmo quando não têm razão, sem esquecer, porém, que eles foram amassados ​​na mesma lama que os seus opressores. Emil Cioran , Do inconveniente de ter nascido. É a terceira vez que apanho este pensamento bem formulado.  Cioran depois de Luis Buñuel (Tristana) e Thomas Bernhard (O sobrinho de Wittgenstein) .

Lado B

A ideia de um «regresso à normalidade» dispersa-se em farrapos diante da mais do que provável «segunda vaga» da pandemia. Rodamos o disco do Lado A para o Lado B, pousamo-lo no prato, a agulha baixa e escutamos: a mesma série de sons incompreensíveis, a mesma música estranhamente dissonante.

Pequena palestra sobre Kafka sobre Hölderlin

«Não consigo manter os meus sonhos direitos.» Com essa queixa Kafka quis dizer,  mantê-los numa linha recta do princípio ao fim . Os seus sonhos estavam inclinados a voltar a si mesmos; por exemplo, o sonho de Hölderlin. Kafka sonhou que Hölderlin começou a arder. «Finalmente conseguiste pegar fogo». Kafka começou a apagar o fogo com um casaco velho. Agora começa o desvio. «Afinal era eu quem estava a arder.» Aqui o desvio colide consigo mesmo. «E fui eu quem bateu no fogo com um casaco.» Finalmente, o desvio desfaz-se num desespero racional mas também neurótico. «Porém bater não ajudou e apenas confirmou o meu medo antigo de que essas coisas não possam extinguir um incêndio.» Eu eu mesmo acho os palíndromos sombrios — avançam como se quisessem desvendar alguma sabedoria; então, ali estávamos nós, escondidos de novo no fundo da caverna. E não era Kafka quem sonhava em nadar pela Europa com Hölderlin rio a rio? Lá vão eles, mas logo a razão instala-se. «Eu sei nadar como os outros, só q

Consolo

Para mim, é um mistério livros interessantes como os de Schopenhauer (e os meus!) não encontrarem leitores. Schopenhauer detestava Hegel. Dizia sempre: esse bronco do Hegel! E para desafiar Hegel, tinha fixado o horário das suas aulas na universidade de Berlim ao mesmo tempo que as de Hegel, resultando que a sala de Hegel estava sempre cheia quando a dele estava sempre vazia... Mas Hegel e Schopenhauer tinham argumentos par demonstrar que um génio não pode ter sucesso, uma vez que ultrapassa o seu tempo. É por isso que o génio é incompreensível e não serve para ninguém. Assim, Schopenhauer e eu encontramos consolo! Witold Gombrowicz, Curso de Filosofia em Seis Horas e um Quarto . Tradução de Telma Costa.

Pensando melhor

X insulta-me. Estou prestes a dar-lhe uma bofetada. Pensando melhor, abstenho-me. Quem sou eu? Qual é o meu verdadeiro eu: o da réplica ou o da retirada? A minha primeira reacção é sempre enérgica, a segunda, mole. Aquilo a que chamamos "sabedoria" não passa, no fundo, de um perpétuo "pensando melhor", quer dizer, a não-acção como primeiro movimento. Emil Cioran , Do inconveniente de ter nascido (tradução martelada).

Estantes

Tenho duas estantes: uma com os livros que li e outra com os livros que estão por ler. Não misturo. São domínios completamente diferentes. Quando não consigo terminar um livro, coisa que ainda me custa fazer, não o arrumo na estante dos livros já lidos, mas na outra, a estante dos livros por ler. Mesmo que tenha ficado a poucas páginas do fim. A estante dos livros já lidos está organizada de acordo com um sistema simples: os autores acham-se agrupados por línguas e dentro das línguas por nacionalidades. Entre os autores de língua alemã, por exemplo, estão os austríacos e os alemães. Os cubanos, os argentinos, os espanhóis ou os mexicanos, sucedem-se entre os de língua espanhola. Depois, os russos, os húngaros, os japoneses, e assim por diante. Há várias excepções. Beckett, apesar de tudo, permanece entre os autores de língua inglesa e Kafka está fora da secção alemã. Os suiços estão juntos, apesar do grupo incluir autores de línguas diferentes. Enfim, há também os belgas e outr

Adagio molto Larghetto Scherzo

Parte teórica Na maior parte dos casos, a responsabilidade social das empresas portuguesas é apenas uma treta:  escrevem-se palavras cheias de sentimento, atiram-se umas moedas para o chão de modo a ganhar dividendos sociais — vaidade e hipocrisia. Se quissessem, de facto, retribuir alguma coisa à comunidade, então a responsabilidade social deveria ser uma prática e não um gabinete de comunicação. O seu campo de acção deveria começar no primeiro círculo das empresas: pagar salários justos aos trabalhadores, cumprir os prazos de pagamento aos fornecedores, não tentar enganar os clientes e por aí fora. Exercício prático (salto ao eixo) Comparar (por exemplo) este parágrafo: É um braço de nós. Manifesta a natureza integradora da Música e a responsabilidade social como eixo da nossa acção. Ao Alcance de Todos é um vasto programa de inclusão social que soma projectos artísticos e comunitários, criando oportunidades de expressão e realização a cidadãos com fragilidades de ordem dive

Máscara e dioptrias

Óculos embaciados na padaria. Óculos embaciados na frutaria e no supermercado. Óculos muito embaciados nos transportes públicos. Óculos embaciados nos correios, na mercearia e no cinema. Um tempo baço, fosco, obscuro. Mal se vê para fora e pouco se vê para dentro. Também a imaginação anda com as lentes embaciadas.

Proveito espiritual, sim.

De acordo com o protocolo elaborado pela Federação Portuguesa de Nadadores-Salvadores, e enquanto durar o perigo de contágio da covid-19, os vigilantes das praias devem privilegiar o salvamento “sem entrar na água” ou abordar o náufrago pelas costas . Estes procedimentos parecem saídos das regras do Instituto Benjamenta — perfeitos para os gestos cortados de Jakob. Sim, este ano ele podia ser nadador-salvador.

A febre

Éramos talvez umas seis ou sete pessoas no cinema. De máscara e espalhadas pela sala. Sessão dupla de Buñuel: «Simão do deserto» e «A febre sobe em El Pao». No final, imediatamente antes da sala se iluminar, lemos em fundo negro a última frase dos créditos de «A febre...»: «Les Films Corona.»

Influenciadores do século XX

Vai-me à loja e traz-me o troco

A Bertrand propõe-me oficinas, workshops e cursos online para aprender a pensar e escrever melhor. A “oficina pensar dentro da caixa” ensina, entre outras coisas, a escrever listas de compras criativas. Custa vinte e cinco euros. Não é só no Douro que um crocodilo é uma lontra.

Portas

Em «O casamento de Maria Braun» há várias sequências em que a personagem de Hanna Schygulla revisita o que resta dos locais onde tinha vivido antes dos bombardeamentos da Segunda Guerra. Numa dessas sequências, a câmara foca-se numa porta fechada e solitária, que escapou à derrocada parcial de um prédio. Lembro-me de ter visto portas e janelas parecidas em prédios e casas em ruínas, no Porto. Há uns anos, existia um edifício em Miguel Bombarda, que tinha caído durante um Inverno mais tempestuoso. Lá estava a porta fechada e suspensa no ar. O que haverá atrás dessas portas? Se abríssemos a porta do filme de Fassbinder víamos a Rua Miguel Bombarda? E se tivéssemos saído pela porta de Miguel Bombarda, teríamos entrado no filme de Fassbinder?

Para seduzir a ralé

O melodrama tem referido tantas vezes os salteadores do século XVI, tantas têm sido as pessoas que deles falam sem os conhecerem, que passámos a ter deles um conceito mais que falso. Pode, no geral, dizer-se que estes salteadores foram a oposição contra os atrozes governos que, na Itália, se sucederam às repúblicas da Idade Média. O novo tirano era de ordinário o cidadão mais rico da defunta república e, para seduzir a ralé, enfeitava a cidade com igrejas magníficas e formosas pinturas. Assim procederam em Ravena os Polentini, em Faenza os Manfredi, em Imola os Riario, em Verona os Cane, em Bolonha os Bentivoglio, em Milão os Visconti e, finalmente, os menos belicosos e os mais hipócritas de todos, os Médicis de Florença. Stendhal, Crónicas italianas . Tradução de Manuel João Gomes.
And here we are in the Bardo, in the pause between two realities,  in a time when nobody knows what's next.

Tais são as verdades que pretendemos relatar

Instruir o homem e corrigir-lhe os costumes, tal é o único objectivo que nos propomos nesta história. Ao lê-la, poderá o leitor imbuir-se no conhecimento dos perigos que se encarniçam atrás dos que, para satisfazer os seus desejos, a nada atendem! Possam eles ficar persuadidos de que a melhor educação, saúde, talento e dons da natureza apenas servem para desencaminhar até ao momento em que forem alicerçados e apresentados com contrição, boa conduta, sabedoria e modéstia. Tais são as verdades que pretendemos relatar. Possa o leitor mostrar-se indulgente pelos pormenores monstruosos do hediondo crime que seremos forçados a descrever; mas é possível fazer detestar aos outros semelhantes aberrações até que surja alguém com a coragem de revelá-los sem o mínimo disfarce? Marquês de Sade, primeiro parágrafo de Eugénie de Franval , incluído em Os crimes do amor. Tradução de João Costa.

Época balnear 2020

Mercado das ideias

A internet constitui um mercado das ideias, e os intelectuais tendem a atuar como fornecedores dos discursos-mercadoria demandados por cada nicho desse mercado: os liberais, os conservadores, os comunistas, os ecologistas. Não é o mesmo que ocorre numa loja de roupas ou na música popular? Essa sujeição do intelectual-produtor ao leitor-consumidor é tão mais extrema que muitos dos canais que ligam um ao outro são diretamente monetizados, quando não servem de ponte para a penetração no mercado editorial ou na mídia. Uma relação assim constituída envolve, portanto, a capacidade do intelectual não só como influenciador digital, mas como agente econômico. Nesse cenário de dependência material do intelectual em relação a um público, não surpreende que muitos abdiquem da soberania sobre seu pensamento em favor de discursos estereotipados, sempre os mesmos: o leitor-consumidor anônimo é um amo intratável. Não suporta muito bem a contrariedade. Sabemos de saída o que o articulista conservador o

Da arte de escrever um romance

Já não me recordo onde o comprei. Talvez na Vandoma. «Os crimes do amor», do Marquês de Sade. Edição do Círculo de Leitores, de 1975. Tradução de João Costa. O livro abre com o texto «Ideia sobre os romances», onde Sade se propõe, entre outras coisas, responder à pergunta «Quais as regras da arte de escrever um romance?» O livro está em relativo bom estado. Não tem dedicatória nem sublinhados, excepto justamente naquele texto inicial e apenas na parte específica sobre as «regras» para escrever um romance. O leitor ou leitora que me precedeu, dono anterior do livro, sublinhou a lápis, linha após linha, e sem levantar a mão, todos os conselhos de Sade. Nada lhe escapou. Nenhuma frase, nenhuma palavra, nenhuma vírgula. Não existindo mais sublinhados ao longo das restantes 250 páginas, imagino que tenha sido alguém interessado em escrever romances. Terá valido a pena? Terão sido úteis os conselhos do «divino marquês»? De uma maneira ou de outra, o livro, os conselhos e os sublinhados aca

— Branca Flor, já dormes?

Aguento horas e horas sem dizer uma palavra. Quando era miúda, a minha avó perguntava-me, na brincadeira, se estava viva ou morta. Eu ficava ainda mais quieta e calada; depois desatávamos as duas a rir. Às vezes, para espairecer, preciso de repetir esta cena — agora desempenho os dois papéis.

Fome

Sábado a atirar pedrinhas ao rio. Disseram-nos que por vezes aparecem lontras, mas não vimos nenhuma. Em compensação, descobrimos, aqui e ali, certas árvores cujas folhas foram atacadas por um estranho predador. Um criador involuntário de milhares de pequenas obras de pura e extravagante filigrana. Não tem a ver com imaginação, mas com fome.

Os velhos e as velhas chegam nos seus carrinhos de rodas.

A PRIMEIRA VELHA: Lembro-me como se fosse hoje... O PRIMEIRO VELHO: Não, eu é que me lembro como se fosse hoje. A SEGUNDA VELHA: Vocês, vocês lembram-se de como era como agora, mas eu de como era dantes. O SEGUNDO VELHO: E eu lembro-me como se fosse hoje de como era dantes. A TERCEIRA VELHA: E eu lembro-me como se fosse ainda muito mais dantes, mesmo ao princípio... O TERCEIRO VELHO: E eu lembro-me como se fosse hoje e como se fosse outrora... Vladimir Maiakovski, O Percevejo . Tradução de Alexandre O'Neill.