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A mostrar mensagens de dezembro, 2017

Cipreste

Na primeira cena de Vai e Vem , João Vuvu, o personagem de João César Monteiro, lança um fígado aos pombos. Que espécie de vai e vem há entre esta cena, a primeira do seu último filme, e o mito de Prometeu? Que fogo João César Monteiro roubou aos deuses? No derradeiro plano, esse famoso, comovente e genial último plano , o olho de César Monteiro ocupa toda a tela, olhando-nos de frente. Nesse olho, reflecte-se uma árvore, o amplo cipreste do jardim do Príncipe Real , em Lisboa. A árvore dos mortos que dá sombra aos vivos. O vai e vem entre o mundo dos espectros, “das quimeras”, nas palavras de João Vuvu, e o nosso mundo. É nesse exacto lugar, entre os dois mundos, que se situa toda a arte. O plano dura mais de cinco minutos, o tempo do motete Qui habitat in adjutorio altissimi , de Josquin Des Prés, que se ouve em fundo e cujo texto consiste nos oito primeiros versos do Salmo 90. 1. Tu que habitas sob a protecção do Altíssimo, que moras à sombra do Omnipotente, 2. diz ao Senhor: S

Exercício

Imaginar Chaplin e Keaton, ou Chaplin e Lloyd, a interpretarem, com todos os truques do vaudeville, este conto de Daniil Kharms , o mais chaplinesco dos grandes escritores. PÚCHKIN E GÓGOL GÓGOL cai dos bastidores para o palco, onde fica sossegadamente deitado. PÚCHKIN entra em cena, tropeça em GÓGOL e cai. PÚCHKIN Que raio é ist...! Será possível: parece o Gógol! GÓGOL (levantando-se) Que azar o meu! Já uma pessoa não pode ter sossego.  (Dá dois passos em frente, tropeça em Púchkin e cai.)  Esta é boa: parece-me que tropecei no Púchkin! PÚCHKIN (levantando-se)  Não há um minuto de sossego! (Dá dois passos, tropeça em Gógol e cai.) Mas que raio! Parece-me que voltei a tropeçar no Gógol! GÓGOL (levantando-se) É só incómodos, sempre e em todo o lado! (Dá dois passos em frente, tropeça em Púchkin e cai.) Mas que azar o meu! Outra vez o Púchkin! PÚCHKIN (levantando-se) Isto é uma vadiagem, é o que é! Uma vadiagem! (Dá dois passos em frente, tropeça em Gógol e cai.)  Raios me partam! Out

Manuel Resende

Às vezes ocorrem-me lembranças que não sei se sonhei ou se foi alguém que mas contou. Certas histórias sobre o Manuel Resende, por exemplo. Creio que foi o Osvaldo Silvestre que me disse que o Resende aprendeu alemão a traduzir O Capital , de Karl Marx, uma palavra após outra, com a ajuda de um dicionário. Mais tarde, traduziu o melhor Freud que li em português. E Brecht, Schnitzler, Kafka. Também já não sei se ouvi ou li, ou talvez tenha sonhado, que o título do primeiro livro do Manuel António Pina, Ainda não é o fim nem o princípio do mundo calma é apenas um pouco tarde , publicado em edição de autor, em 1974, foi-lhe soprado pelo Manuel Resende. Foram colegas de redacção no Jornal de Notícias , companheiros de tertúlia no Piolho e amigos até ao fim. De resto, ainda são amigos e sei que falam todos os dias. Porque os mortos deitaram o corpo dentro de nós. [Resende, 2004] Li o Manuel Resende muito antes de o conhecer pessoalmente. Comecei pela tradução de A Caça ao Snark , do Ca

Um espelho em movimento

A experiência é relativamente simples de descrever. Um personagem vestido de marinheiro deambula à noite por uma cidade - neste caso, o Porto -, carregando às costas uma espécie de máquina de projecção. A máquina projecta um misterioso filme branco, que ondeia e se dissipa no escuro, a partir das costas do personagem. A experiência de Tiago Madaleno , fixada e dada a ver através de um conjunto de slides, como numa espécie de filme em stop motion , parece remeter para O Homem da Máquina de Filmar , de Dziga Vertov. Mas o que Tiago Madaleno faz nesta obra, Passos , é como que a ideia de Vertov invertida por um espelho. O que começa em Vertov, termina em Madaleno. Se Vertov capta a realidade pelo olho da câmara (kino-glaz) , Madaleno muda a realidade pelo olho do projector. Se Vertov filma um dia em Moscovo, Madaleno projecta a luz de um filme na noite do Porto. Se Vertov posiciona o personagem - Mikhail Kaufman - atrás da máquina de filmar, Madaleno coloca o seu personagem - ele próp