Vinha do supermercado com um saco de compras quando começou a chover intensamente. Do outro lado da avenida, umas pessoas correram para se abrigarem debaixo da pala do edifício junto à bomba de gasolina. Atravessei, mas quando lá cheguei tinham desaparecido. O vento era tão forte que virou o meu guarda-chuva ao contrário e já estava com as botas e as calças todas molhadas quando alguém abriu a porta e me chamou: — Entre, abrigue-se aqui. Entrei. No pequeno átrio do edifício estavam seis pessoas (três mulheres e três homens) de roupas escuras, os cabelos molhados, a olhar para a chuva através dos vidros embaciados; de vez em quando diziam alguma coisa. E eu pensei: — Caramba, isto parece mesmo o princípio de um filme.
Vejo as imagens da enxurrada que varreu a Baixa do Porto por causa das chuvas fortes. Num dos vídeos, há um homem que é arrastado pela água, na Rua Mouzinho da Silveira. A imagem foi captada por alguém com um telemóvel. O homem parece um bocado de plástico a flutuar na corrente. A pessoa que está com o telemóvel, a poucos metros, continua a filmar. Não larga a câmara, não mexe um músculo para ajudar o homem. Continua a filmar, simplesmente. Nada mais interessa.
Ontem choveu o dia todo. No entanto, leio no jornal que o impacto na seca é reduzido ou nulo. Mesmo não sabendo nada sobre o assunto, acho perfeitamente lógico. Uma frase manca também não salva uma página em branco.
Chuva, chuva, chuva sem fim. As paredes pingam, cursos de água atravessam o chão da cozinha, a roupa jamais secará. Amanhã, ao acordarmos após sonhos agitados, vamos ver-nos na nossa cama, metamorfoseados em monstruosos anfíbios.
O ar está carregado de humidade. A cidade é um navio afundado num mar parado. Abro a janela como se abrisse uma escotilha debaixo de água. O fumo do tabaco transforma-se numa coisa sólida. Algas brancas a flutuar no ar.
SRA. ALVING: Não podes fazer alguma coisa? OSVALD: Com este tempo cinzento? Sem um raio de sol durante o dia todo? (Anda pela sala.) Ah, isto de não conseguir trabalhar...! Henrik Ibsen, Espectros . Tradução de Susana Janic.
Esta manhã, quando saí de casa, já não chovia. O céu estava limpo. Mas, de vez em quando, ainda caíam dos telhados aquelas gotas solitárias, frias, inesperadas, que passam entre os cabelos e gelam o crânio. Mais terríveis do que um aguaceiro. Para nos lembrar que o Inverno é longo e difícil.
Uma semana inteira de chuva miudinha, pesada e muda. Os dias parecem não ter fim. As nuvens cobrem as casas como mãos enormes, lentas, ameaçadoras. A cidade parece mergulhada no fundo de um abismo, com a vida, a verdadeira vida, a correr muito acima.
Chove muito, a água corre nas ruas como um riacho. Mas não está frio. Nem há vento. As pessoas estão mais caladas e mais bonitas — têm sono. As mulheres trazem molhos de crisântemos nos braços para o dia dos mortos. Sem saber, a cidade prepara-se para receber Vitalina Varela.
"Quarteto no outono” e “A doce pomba morreu” estão guardados em depósito . Faz sentido, sentido pymiano quero eu dizer. Como não tinha tempo para perceber se, mesmo assim, os posso trazer para casa, requisitei “Uma rapariga no inverno". É sobre uma bibliotecária. Sinto-me no centro de um conluio — não tarda começa a nevar.