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Vinha do supermercado com um saco de compras quando começou a chover intensamente. Do outro lado da avenida, umas pessoas correram para se abrigarem debaixo da pala do edifício junto à bomba de gasolina. Atravessei, mas quando lá cheguei tinham desaparecido. O vento era tão forte que virou o meu guarda-chuva ao contrário e já estava com as botas e as calças todas molhadas quando alguém abriu a porta e me chamou: — Entre, abrigue-se aqui.  Entrei. No pequeno átrio do edifício estavam seis pessoas (três mulheres e três homens) de roupas escuras, os cabelos molhados, a olhar para a chuva através dos vidros embaciados; de vez em quando diziam alguma coisa. E eu pensei: — Caramba, isto parece mesmo o princípio de um filme.

Nada mais interessa

Vejo as imagens da enxurrada que varreu a Baixa do Porto por causa das chuvas fortes. Num dos vídeos, há um homem que é arrastado pela água, na Rua Mouzinho da Silveira. A imagem foi captada por alguém com um telemóvel. O homem parece um bocado de plástico a flutuar na corrente. A pessoa que está com o telemóvel, a poucos metros, continua a filmar. Não larga a câmara, não mexe um músculo para ajudar o homem. Continua a filmar, simplesmente. Nada mais interessa.

Amanhã

Chuva, chuva, chuva sem fim. As paredes pingam, cursos de água atravessam o chão da cozinha, a roupa jamais secará. Amanhã, ao acordarmos após sonhos agitados, vamos ver-nos na nossa cama, metamorfoseados em monstruosos anfíbios.

Chuva

Uma semana inteira de chuva miudinha, pesada e muda. Os dias parecem não ter fim. As nuvens cobrem as casas como mãos enormes, lentas, ameaçadoras. A cidade parece mergulhada no fundo de um abismo, com a vida, a verdadeira vida, a correr muito acima.

Tudo se esclarecia — vale e serra

Chove muito, a água corre nas ruas como um riacho. Mas não está frio. Nem há vento. As pessoas estão mais caladas e mais bonitas — têm sono. As mulheres trazem molhos de crisântemos nos braços para o dia dos mortos. Sem saber, a cidade prepara-se para receber Vitalina Varela.

Coisas fora de moda

"Quarteto no outono” e “A doce pomba morreu” estão guardados em depósito . Faz sentido, sentido pymiano quero eu dizer. Como não tinha tempo para perceber se, mesmo assim, os posso trazer para casa, requisitei “Uma rapariga no inverno". É sobre uma bibliotecária. Sinto-me no centro de um conluio — não tarda começa a nevar.