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Um modesto

Noutro dia no autocarro encontrei um jovem escritor de vanguarda (!), que me critica por não ser revolucionário, por não querer inventar nada, em suma, por não trazer nada de novo. — "Mas eu não quero mudar nada de nada", disse-lhe. Não entendeu nada das minhas palavras. Tomou-me por um modesto. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972.  Nota: Em 63 palavras, Cioran utiliza cinco vezes "rien" o que dá uma taxa de quase 9% (confirma-se: nada modesto nas orações negativas). Reduzi o texto em português para 51 palavras, mantive cinco vezes "nada" e aproximei-me dos 10%. Não sei em que teoria da tradução isto se pode enquadrar, mas gosto de ajudar Cioran a provar o seu ponto. 

Era apenas um recado

Traduzir deixa em nós restos doutra maneira de falar. Parece que alguém desconhecido decide as palavras e até o ritmo da frase, pelo menos durante um certo tempo. Sem querer, dou por mim a disparar palavras negativas de rajada : não, nunca, ninguém, nada, nem — todas na mesma linha, quase encostadas. Ultrapasso a  dupla negativa  e era apenas um recado.

Non, rien de rien.

Cioran só começa a escrever em francês aos 37 anos. Há várias maneiras de explicar esta decisão, ele próprio fala bastante sobre o assunto. Mas, conforme vou lendo e traduzindo, mais me convenço que foram as variadas formulações negativas disponíveis que atraíram Cioran para a língua francesa. Mesmo para afirmar qualquer coisa, é possível atirar uma frase com uma negativa indirecta ou exclusiva. Escrever assim é como andar de costas — inequivocamente o movimento que melhor convém a um filósofo de sobrolho franzido. Em última instância, o francês oferece ainda a dupla negativa — um verdadeiro rodopio centrípeto junto ao abismo. Que mais poderia Cioran ambicionar? Ah, sim, umas gotas de sangue. A negação não sai nunca de um raciocínio, mas de um não sei quê obscuro e antigo. Os argumentos vêm depois, para a justificar e apoiar. Todo “não” surge do sangue.