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Déglacer une poèle

Talvez porque pedem mais mão que cabeça, quando estou a executar tarefas domésticas repetitivas (fazer a cama, passar a ferro, cortar legumes, etc.), tenho tendência para me perder em raciocínios abstractos. Já atingi o ponto em que esses pensamentos se debruçam sobre a própria acção de pensar. Ainda hoje, enquanto preparava o jantar, tentei perceber se será possível aplicar a técnica de deglaçar uma frigideira à construção de um conceito para o tornar mais profundo e denso.  Não cheguei à resposta — nunca chego, aliás —, mas talvez seja uma questão de língua, talvez esse gesto intelectual só funcione em francês.

Non, rien de rien.

Cioran só começa a escrever em francês aos 37 anos. Há várias maneiras de explicar esta decisão, ele próprio fala bastante sobre o assunto. Mas, conforme vou lendo e traduzindo, mais me convenço que foram as variadas formulações negativas disponíveis que atraíram Cioran para a língua francesa. Mesmo para afirmar qualquer coisa, é possível atirar uma frase com uma negativa indirecta ou exclusiva. Escrever assim é como andar de costas — inequivocamente o movimento que melhor convém a um filósofo de sobrolho franzido. Em última instância, o francês oferece ainda a dupla negativa — um verdadeiro rodopio centrípeto junto ao abismo. Que mais poderia Cioran ambicionar? Ah, sim, umas gotas de sangue. A negação não sai nunca de um raciocínio, mas de um não sei quê obscuro e antigo. Os argumentos vêm depois, para a justificar e apoiar. Todo “não” surge do sangue.