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"Proletários” do jornalismo

Mas sob esta forma de violência [a invasão da privacidade pelos meios de comunicação], há outra que é invisível. Refiro-me à violência exercida sobre os jornalistas, os repórteres que ficam com um microfone na mão, durante horas, à espera de um acontecimento que, mesmo que aconteça, não é acontecimento nenhum, à espera de que um gesto ou uma palavra insignificantes se transformem em notícia igualmente insignificante. Estes “proletários” do jornalismo têm com certeza consciência da sua condição profissional e do trabalho sujo ou pelo menos inócuo a que estão obrigados. Por isso, devemos pensar que abominam esse trabalho e que o sentem como uma corveia ou mesmo como uma coisa indigna. Os que assim não pensam nem sentem, os que se atropelam sem reserva à porta da casa do ministro, quando este tenta entrar com a mulher e as crianças, são desprovidos da faculdade mais indispensável à sua profissão: o espírito crítico. Em contraste com esta forçada proletarização (que é uma característica fu

Moscas

O jornal que leio, o Público , parece ter adoptado o estilo do Correio da Manhã . Títulos com trocadilhos manhosos, comentadores excitados, politólogos tocados pelo escândalo. Lembram as moscas meio enlouquecidas no fim do Verão, que picam por tudo e por nada, porque sentem que vão desaparecer em breve.

«Não tenho palavras»

Desde o dia 7 de Outubro, há um estribilho vindo de longe que atravessou trevas e sofrimentos para desaguar mais uma vez no discurso de muitos colunistas regulares ou esporádicos da imprensa: “Não tenho palavras”. Seríamos levados a pensar que se trata da confissão derradeira de um naufrágio linguístico do pensamento, ou do desespero que antecede o sucumbir, como acontece na ópera de Schönberg Moses und Aron, quando Moisés pronuncia a sua última réplica, que fez correr rios de tinta: “O Wort, du Wort, das mir fehlt!” (“Oh palavra, tu palavra, que me faltas”). Mas não, até agora não vi ninguém sucumbir depois de gritar publicamente o seu desespero linguístico; pelo contrário, essa afirmação antecede ou culmina quase sempre uma animada tagarelice. António Guerreiro, jornal  Público , 20 de Outubro de 2023.

As leis do mercado

Dois ou três bancos faliram nos Estados Unidos e um grande banco na Suiça está prestes a cair. As primeiras páginas dos jornais pintam-se com os títulos do costume: «crise bancária», «risco sistémico», «quedas históricas nas bolsas». Regressam em força os comentadores de economia e o seu olímpico despudor: «toda a gente sabia que ia acontecer», «todos os economistas e comentadores previram isto», «a culpa obviamente é do regulador», «a falta é dos bancos centrais», «a responsabilidade é dos estados». Adivinham-se facilmente os próximos comentários dos mesmos sábios: «O Estado tem de intervir», «o Estado tem de apoiar os bancos», «o Estado tem de pagar». Ah, a beleza do mercado.

Serviço público

Mais de metade dos comentadores portugueses… Que digo? Muito, mas muito mais de metade dos comentadores portugueses acusam o primeiro-ministro de mentir nas contas do «programa de apoio às famílias». Estão revoltadíssimos com as mentiras do primeiro-ministro. Mas no domínio do chamado «combate político», mentir não é mentir, trata-se apenas de estimular a imaginação. E a imaginação é tudo. Gera notícias, alimenta os telejornais e os debates televisivos, sacode as paixões nos tascos e nas redes sociais, e, acima de tudo, permite aos comentadores soltarem as suas ventosas opiniões.

Ninguém sabe

O comentador, vestido de cinzento, repete várias vezes num tom grave, sábio e definitivo: «Ninguém sabe quando e como esta guerra vai terminar.» Oh, e alguém sabe como é que os delicados ombros do comentador vestido de cinzento suportam o peso de tão laborioso pensamento? E até quando, até quando, meu deus, conseguirão eles suportar?

A imagem pode não corresponder

Na embalagem de ervilhas congeladas, no canto inferior direito, uma frase em letras pequenas: «A imagem pode não corresponder exactamente ao produto, sendo meramente demonstrativa.» Quantos programas televisivos não deviam ser acompanhados por uma frase semelhante? Qual a diferença entre certos noticiários da televisão e o rótulo publicitário de uma embalagem de ervilhas congeladas? Na verdade, há uma diferença no conteúdo: as ervilhas tiram a fome.

Os nossos especialistas

Abra-se um jornal, ligue-se a rádio, veja-se a televisão. Impressiona o repentino número de especialistas portugueses em história e cultura russas. No meio de todo este frenesim de conhecimento, fica-se com a certeza de que os nossos bulímicos especialistas sabem coisas sobre os russos que os próprios russos ignoram.

Cem anos depois

No noticiário da rádio, ouço um tipo a comentar as últimas informações sobre a possível transferência do treinador do Benfica para o Flamengo, do Brasil. O tipo não se cansa de repetir que «tudo isto é surreal». «É uma história surrealista!» «É surreal!» «É surreal!»  Como é que se chegou aqui? Como é que uma palavra de fogo se transformou numa coisa desprovida de peso e significado, usada apenas para embrulhar conversa fiada, frases balofas, peixe podre?

Bibelôs

Afinal, o governo não estava cansado nem desgastado . Afinal, o governo estava cheio de tesão e com vontade de ir a eleições. Nos ressequidos estúdios televisivos, os comentadores explodem de euforia. Da miséria de factos passamos para o luxo de acontecimentos. Há petróleo a correr novamente nas redacções dos jornais. Os comentadores babam-se agora com a decadência da oposição, com a queda e putrefacção de uma certa direita, com a ascensão rápida de outra. Repete-se mil vezes que a democracia está em crise. O fim sem remédio do regime parece pertencer à ordem das evidências. E tudo, esquerda, direita, democracia, eleições, estado, povo, trabalho, direito, liberdade, a nossa vida, tudo, tudo é reduzido à dimensão de bibelôs de plástico com que os comentadores decoram a indigência do seu pensamento.

Cansaço

Por estes dias, o comentário político nos jornais está dominado por duas palavras: «cansaço» e «desgaste». «O cansaço do governo» e «o desgaste do governo». Alguns comentadores mais impacientes acrescentam ao cansaço e ao desgaste, «uma certa arrogância do governo». E insistem nisto até à náusea, na esperança de que o comentário, mil vezes repetido, se transforme em verdade. O cansaço e o desgaste, no entanto, são obviamente dos comentadores. Falta novidade, falta drama, falta sangue. Os comentadores estão cansados de esperar que o governo se desfaça por dentro e impluda de vez. Como sempre, não lhes ocorre melhor ideia.