Avançar para o conteúdo principal

Mensagens

A mostrar mensagens de março, 2022

Persona non grata

Quando estou a trabalhar nas traduções de Cioran, faço muitas pesquisas para perceber melhor o que ele quer dizer e para tentar encontrar formulações vulgares que estejam de acordo com os seus pensamentos. Isso implica muito mais do que consultar dicionários. Muitas vezes vou dar a sites religiosos ou místicos. Gostava de saber como é que a Google interpreta estas movimentações, quer dizer, o que é que acham que me podem vender.

Notas de tradução

Num dos livros mais bem traduzidos que conheço, refiro-me a  As Variedades da Experiência Religiosa de [William] James, encontrei apenas uma coisa duvidosa: “os abismos do cepticismo” ... Devia ser da dúvida , pois em francês o cepticismo contém uma nuance de diletantismo e de ligeireza que exclui qualquer associação com “abismo”. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

Decoração de Interiores

Por causa da gata — miúda e irrequieta —, tivemos de tirar da sala tudo que lhe serve de brinquedo e colocar umas caixas de cartão a impedir o acesso a fios eléctricos. Parece que vamos fazer obras em casa ou estamos de saída. Nunca este espaço refletiu tão bem o nosso tempo e o nosso interior.

Objectos herméticos

O filme estava mal indexado, comecei a vê-lo na cena em que um tipo sai da mala do carro americano de Alain Delon. Achei o início tão selvagem e audaz que nem dei pela falta do genérico. Só quando me chamaram a atenção é que percebi que faltavam mais de trinta minutos com informações cruciais sobre personagens e objectivos (tralha narrativa?). O filme completo também é bom (abre com uma citação falsa sobre Buda, segue os princípios austeros do cinematógrafo, etc, etc.), mas prefiro a versão diminuída — tenho um fraquinho por objectos herméticos.

Ultrapassagem

Ontem à noite vi A Ultrapassagem , de Dino Risi, na televisão. É um filme notável sobre um diabo e um jovem Fausto a voarem num descapotável, pelas estradas de Itália, a 120 km/h. Alguma moral a reter nesta história? Nenhuma. O diabo e o jovem, Vittorio Gassman e Jean-Louis Trintignant, assumem os seus papéis sem subterfúgios nem equívocos. Conhecem-se desde o princípio dos tempos. Um produz magias, o outro paga para ver.

Ruínas

O dentista desvitalizou o dente que me doía há semanas. Arrancou-lhe o nervo pela raiz. Ficou esta ruína útil no meio dos molares. Vão-se acumulando assim as ruínas no meu corpo. Uma após outra. Lenta, silenciosa arqueologia.

Modelos

Ao sair de casa, resolvi imitar o Alain Delon: apertei o cinto da gabardine bege e repeti aquele jeito que ele faz aos ombros. Não somos parecidos, nem sequer tenho um carro americano, mas sou tão calada como ele nos filmes do Melville. Já é qualquer coisa.

Fork

This strange thing must have crept  Right out of hell.  It resembles a bird’s foot  Worn around the cannibal’s neck.  As you hold it in your hand,  As you stab with it into a piece of meat, It is possible to imagine the rest of the bird:  Its head which like your fist  Is large, bald, beakless, and blind.  Charles Simic, Selected Early Poems (George Braziller Inc., 1999)

Tinha paixão

Morreu o Jorge Silva Melo. Não há biblioteca em Portugal, pequena, grande, pública ou privada, que não tenha pelo menos um livro escrito, traduzido, editado ou prefaciado por ele. E são todos importantes. Depois, há ainda o teatro e o cinema, que no seu caso também começam e acabam nos livros. Tinha setenta e três anos. E tinha paixão.

A imagem pode não corresponder

Na embalagem de ervilhas congeladas, no canto inferior direito, uma frase em letras pequenas: «A imagem pode não corresponder exactamente ao produto, sendo meramente demonstrativa.» Quantos programas televisivos não deviam ser acompanhados por uma frase semelhante? Qual a diferença entre certos noticiários da televisão e o rótulo publicitário de uma embalagem de ervilhas congeladas? Na verdade, há uma diferença no conteúdo: as ervilhas tiram a fome.

Facebook permite temporariamente posts violentos contra tropas russas ou que peçam morte de Putin.

A Meta [empresa do facebook] vai permitir, ainda que temporariamente, que os utilizadores do Facebook e do Instagram de alguns países clamem por violência contra soldados russos. Esta informação consta de uma série de e-mails a que a agência Reuters teve acesso nesta quinta-feira e que falam de uma mudança temporária na política de discurso de ódio das plataformas. A empresa de redes sociais também vai autorizar a divulgação de publicações que peçam a morte dos presidentes russo, Vladimir Putin, ou bielorrusso, Alexander Lukashenko, em países como a Rússia, Ucrânia e Polónia, de acordo com um conjunto de e-mails internos enviados para os moderadores de conteúdos. (...) Foi dito ainda que os apelos à violência contra os militares russos são permitidos quando a publicação se refere claramente à invasão da Ucrânia. Estas mudanças temporárias nas políticas da empresa aplicam-se na Arménia, Azerbaijão, Estónia, Geórgia, Hungria, Letónia, Lituânia, Polónia, Roménia, Rússia, Eslováquia e Ucrâ

Saída

A história não é circular, obviamente. Mas parece. Estamos convencidos de que avançamos, mas na verdade andamos às voltas. Exactamente como os personagens de La Mort en ce Jardin , de Buñuel. Por mais esforço que façamos para encontrar uma saída, voltamos sempre ao mesmo sítio. Outra imagem: leões às voltas numa jaula.

Certezas

Um rinoceronte a tecer observações sobre uma escultura de Brancusi. A ideia é de Cortázar e surge num certo livro a propósito de outra coisa. É exactamente assim que me sinto. Um paquiderme desesperado a tentar formar alguma ideia mais ou menos firme sobre estes dias sombrios. Gostava de ter as mesmas certezas dos comentadores das televisões. As mesmas opiniões sólidas, sem margem para dúvidas, dos cronistas de jornal. Não, não gostava. Ter certezas é muito pior.

Petróleo

Na televisão, uma mulher em fuga cai junto à berma de uma estrada. A mulher cai uma vez, cai duas vezes, cai três vezes. Um tipo está sentado no estúdio a comentar. Diz qualquer coisa sobre petróleo. A realização repete a imagem em loop . A mulher cai quatro vezes, cinco vezes, seis vezes. O tipo continua a dizer qualquer coisa sobre petróleo. A mulher cai sete, oito, nove, dez vezes. O tipo fala sobre petróleo. A mulher cai onze vezes, doze vezes, treze, catorze, quinze vezes. Petróleo. Dezasseis, dezassete, dezoito. O tipo fala de petróleo.

Anoitece

Leio nos jornais que cidadãos europeus negros, africanos, de origem asiática e do médio oriente que tentam fugir aos tanques de Putin são barrados na fronteira por soldados ucranianos: primeiro passam os brancos. Do outro lado da fronteira, na Polónia, os mesmos refugiados são alvo de ataques xenófobos e racistas por parte de nacionalistas polacos: «segundo a polícia polaca, os agressores, vestidos de preto, agrediram grupos de refugiados não brancos, nomeadamente estudantes que tinham acabado de chegar à estação de comboios de Przemyśl.» Em Portugal, cidadãos russos são alvo de ameaças e actos de descriminação, que «chegam em forma de telefonemas, mensagens de texto ou comentários nas redes sociais». Nas televisões, os repórteres que acompanham a vaga de refugiados não se cansam de repetir que os ucranianos são «pessoas como nós», usam as mesmas roupas, os mesmos telemóveis, os mesmos carros. Não são afegãos, sírios, iraquianos ou sudaneses a fugirem em botes pelo Mediterrâneo. São «i

Civilização

«Comecei a olhar para o chão em vez de olhar para o céu. Comecei a olhar para o que as pessoas deitam fora em vez de para aquilo que os arquitectos constroem.»

Palavras de ordem

Uma sequência de Noite Incerta , de Payal Kapadia: os estudantes do Instituto de Cinema e Televisão da Índia manifestam-se contra o novo director da escola, nomeado pelo governo nacionalista hindu; nos protestos, gritam-se palavras de ordem como «Eisenstein, Pudovkin, vamos ganhar».