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A mostrar mensagens de setembro, 2023

Adaptação de uma história japonesa

Uma paixão em surdina assemelha-se a um crime perfeito. Abandona-se o corpo de delito num sítio longe de tudo e espera-se que as raposas o devorem.  

Algumas coisas rápidas sobre «Nesta Grande Época»

Karl Kraus usa as citações como as personagens shakespereanas dos westerns de John Ford. Não são um ornamento que se traz à lapela, mas uma força universal e histórica que irrompe das entranhas.  ¶ António Sousa Ribeiro consegue segurar todo o ritmo que existe no original alemão e oferece-nos um texto em português que sobe e desce como uma montanha russa e faz-nos rir e também nos envergonha porque tanto daquilo passa-se ainda hoje e tão perto, raisparta!  ¶ Por sorte,  Os Últimos Dias da Humanidade também está disponível na Biblioteca Almeida Garrett. Junto com os Aforismos  (que está em casa) formam uma rica trindade. — A vida corre mal; a vida corre-me bem!  ¶ Tudo o que Kraus escreve é tão tronante (a coisa mais viva da cidade) que fico sempre com receio (ou será vontade?) que os seguranças me ponham fora da carruagem por causar distúrbios ao bom funcionamento do Metro. ¶ Se falasse português, Karl Kraus escrevia um artigo n’ O Archote a desancar na Tânia Laranjo.  ¶ Apetece-

Observações avulsas sobre matosinhos sul #58

Os três metrosideros que crescem no areal de Matosinhos (um encostado ao muro e os outros dois a cerca de cinquenta metros do início da praia, junto às esplanadas Lais de Guia e Titan) são dos melhores exemplos de sobrevivência que conheço.  É o que o futuro nos reserva: aprender a viver no deserto.

All these are dangerous

Na minha vida, os filmes de Pedro Costa estão ligados a acidentes. On suicide  é tão tremendo que até tenho medo do que possa acontecer. In such a country and at such a time There should be no melancholy evenings. Even high bridges over the rivers And the hours between the night and morning And the long long wintertime. All these are dangerous. For in view of all the misery People just throw their unbearable lives away.

Obsessões e caprichos

Vou agarrar-me a estes cadernos pois são o único contacto que mantenho com a «escrita». Há meses que não escrevo mais nada.  Este exercício diário até é bom, permite-me aproximar-me das palavras, e despejar aqui as obsessões, ao mesmo tempo que os caprichos: o essencial e o inessencial ficarão registados por igual. E tanto melhor assim. Pois nada é mais ressequido e fútil do que a busca exclusiva da «ideia». O insignificante deve ter direito de cidadania, até porque é por ele que acedemos ao essencial. A anedota está na origem de toda a experiência capital. É por isso que é mais cativante do que qualquer ideia. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 (dezembro de 1968)

Maio de 1971

Prefiro um assassino gentil a um santo sem maneiras.  Gostava de ser canibal, menos pelo prazer de devorar esse imbecil do X, do que para o poder vomitar logo a seguir.  Exclamações . Que belo título!  Fui feito para vociferar ou para fazer chacota?  Para as duas coisas, para uma síntese irrealizável. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

Os pássaros do Marquês

Um bando de publicitários decidiu pendurar nas árvores do Marquês um sistema de som que reproduz, sem descanso, o canto gravado de vários pássaros. Apesar do barulho do trânsito, o monstruoso chilreio ouve-se em toda a praça e nas ruas mais próximas. As aves de carne e osso, tomadas de pavor, voaram para longe. Nem os pardais ficaram. Espécie esquisita de gentrificação.

Einstellung

Einstellung  também significa disposição moral. (...) O que é necessário, creio, é uma ideia. Uma ideia que não seja uma intenção simbólica nem psicológica. Uma ideia moral, logo política. Tenho andado a pensar no que escrevi ontem porque não basta dizer que é preciso um outro tipo de acção para homenagear os filmes de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub. Lembrei-me do verso de Hölderlin e percebi que, por exemplo, os pobres também têm direito a olhar o rio é igual a um dia talvez a terra volte a brilhar verde para nós — é o mesmo desejo, a mesma reivindicação.  Então, naquele terreno abandonado do antigo bairro de São Vicente de Paulo devia ser construído um jardim — era uma resposta justa ao trabalho de Huillet e Straub. Um jardim de laranjas doces. E depois projectavam-se um ou dois filmes as vezes que fossem necessárias até ficar clara a relação entre as imagens no écran e as laranjas, entre a vida dos antigos e as nossas — uma dialéctica das sensações. Podem objectar que isto n

Da nuvem à resistência

A projecção dos filmes de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub integral e por ordem cronológica é um acontecimento notável.  No entanto, passada a primeira euforia fico a pensar se não seria necessário um gesto mais incisivo para os homenagear. Uma mulher que percebe o que são as bruxas:  Quando damos de comer aos gatos em Roma, compreendemos o que se passava com as bruxas; muitas vezes tinha a impressão que era a minha pele que estava em jogo. Aí, dei-me conta que havia mulheres que, porque observavam as estrelas à noite, porque apanhavam ervas de noite, porque os gatos as seguiam... foram queimadas. É isto as bruxas! E que explica: O que nos interessa, são as pessoas que dizem os textos de Pavese, o que elas fazem na vida, a maneira como dizem os textos, os problemas que têm com aquilo que dizem, e por isso, bruscamente, aquilo que eles dizem já não é de Pavese mas sim do sujeito que o diz e que, no começo, nem sabia quem era Pavese. O único interesse do texto ou daquilo a que chamas

Lá em Cima dá trabalho a analisar e isso tem a ver, creio, com o método que Hong Sang-soo usa desta vez.  O filme parece um daqueles discos em vinil que tem mais do que uma estria num lado : o que se ouve depende do sítio onde pousamos a agulha.

Sinopses de filmes

No programa do Festival Beast: Três melhores amigas, que juram ser virgens, lutam com rapazes locais. Quando as coisas ficam difíceis, eles são salvos por uma rapariga em desenvolvimento. *** Um retrato íntimo de uma jovem mulher à procura de um objetivo num mundo de incerteza económica, social e ambiental. *** O gerente local do Palácio da Cultura, Desporto e Entretenimento fica frustrado por um telefonema de sua esposa. Enquanto isso, as crianças reúnem-se no salão do palácio para uma sessão de artes marciais, mas dois meninos escapam. *** Uma jovem está a fim de enfrentar o evento de vida mais difícil que se pode imaginar - será ela capaz de aceitar isso, ou continuará a evitar enfrentá-lo e continuar a sua vida despreocupada. *** X transita entre a realidade e a fantasia. Ele tenta resolver o desgosto como se fosse um quebra-cabeça. Ele está escondido há tanto tempo que não reconhece o seu próprio reflexo quando olha para ele. Ele acorda com um som. Programa completo.

Ainda a propósito dos filmes mais recentes de Hong Sang-soo

Nos filmes mais recentes de Hong Sang-soo, Lá em Cima e A Romancista e o seu Filme , há várias sequências em que os maços de tabaco foram substituídos por cigarros electrónicos. E quase no final de A Romancista… , a personagem principal tem de fumar às escondidas, em segundo plano, e de costas para a câmara, porque a cena passa-se num local «livre de fumo». Outra personagem comenta algo até aqui impensável num filme de Hong Sang-soo: «Ela fuma muito.» Claro que nenhuma das situações representa uma concessão do realizador ao «ar dos tempos». O que acontece é o contrário. O cigarro electrónico é um objecto obviamente postiço nestes filmes. E a personagem que «fuma muito», que se afasta e vira as costas ao centro da cena, é uma justa alegoria da obra de Hong Sang-soo.

Uma cena de «A romancista e o seu filme»

Kim Junhee e Kilsoo estão a comer num restaurante sentadas junto a uma janela. Passa uma miúda na rua e fica a olhar, intrigada, vai embora, regressa. Kilsoo sai para conversar com ela. Kim Junhee aproveita  para tirar um bocado de comida da tigela de Kilsoo.  Se gosto tanto desta cena é porque acho que nada daquilo estava previsto: a miúda passou por ali por acaso e foi atraída pelas mulheres e pela câmara; Kim Min-he decidiu ir falar com ela e contar-lhe o que estavam a fazer para a convencer a sair do centro do enquadramento; e Lee Hye-yeong não resistiu a provar o bibimbap da Kim Min-he sem ela ver.  Este encadeado de acções não foi escrito por Hong Sang-soo. As três implicadas agiram por conta própria. Não foi preciso insuflar nada para tudo ter, não um significado, mas uma presença real . O cinema de Hong Sang-soo é cada vez mais isto, ah,  o vento nas árvores .

A estátua de Camilo na Cordoaria

Não conheço ninguém que goste da estátua de Camilo na Cordoaria. Em três dias, porém, transformou-se num símbolo de resistência contra o snobismo parolo dos «ilustres» da cidade . Agora, sim, aquela coisa de bronze tem um significado. A estátua mal amada já não sai da Cordoaria. E espero que nunca saia.

Azeite e laranjas

Ir às compras exige cada vez mais dinheiro e capacidade de fazer contas; entramos nas lojas como quem entra na Bolsa de Valores. Comprar azeite vai passar a ser um acto solene, desconfio. E as amadas laranjas, oh, creio que qualquer dia ainda vou ter de as comprar no mercado negro.

Uma espada talvez

Há no Cemitério da Lapa um grande anjo que se vê da Rua Antero de Quental. Eleva-se acima do muro alto, pousado no telhado de um mausoléu e com o braço direito erguido para o céu. Na verdade, o anjo segurava qualquer coisa que entretanto desapareceu. Talvez um estandarte, uma luz, uma espada talvez. O anjo parece estar sempre amuado, a cismar naquilo.
Luísa Costa Gomes confessou que a peça de Kleist desencadeou nela “qualquer coisa” que não é “capaz de explicar”. Em que consistia, ou como se manifestou? “Achei que deveria ser eu a traduzir, a fazer a dramaturgia, a encenar e — se não me tivessem segurado – teria provavelmente feito o papel do Príncipe.”  Isto é mais ou menos a definição de síndroma. Síndroma de Homburgo.

Falso raccord

Passei d' A Imagem Fantasma para O Príncipe de Homburgo . O raccord não é totalmente falso e a ligação a uma personagem tão estouvada é capaz de agradar a Guibert. (Esqueçamos Gérard Philipe.)

«Tenciono libertar-me deste fascínio em breve» (IV)

Estabeleci limites de páginas por dia, mas o livro é pequeno e já cheguei ao fim. Fica um travo um bocado amargo, qualquer coisa que se aproxima da morte. Todos os textos, mesmo os que não parecem estar na ponta extrema do abismo, é aí que acabam. Proibi-me de ir buscar as fotografias que estão guardadas (escondidas?) numa caixa num desvão. Nada de mimetizar os devaneios de Guibert. Mas a memória traiu-me e lembrei-me da imagem difusa e amarelada do meu pai apanhado a andar na rua. ( Um fotograma de um filme de Pasolini? ) Deve ser inverno, ele veste uma camisola de gola alta e gabardine. Ri-se para a máquina. Muito alto e muito magro e agora também muito novo. ( Como é que uma recordação esbatida pode ser superlativa? ) Sou parecida com ele e às vezes, creio, consigo representá-lo . Os mortos nunca estão completamente mortos.

Chuva e trovões (III)

Há uma altura em que até eu acho que já estou a exagerar e todavia continuo porque faz parte do exagero não ligar ao resto. Escrevo de noite, estou cansada e passa tudo. Isto ainda é sobre o livro do Guibert, mas está um bocado para lá das questões literárias ou fotográficas ou estéticas. Apercebo-me que a energia do livro extravasa as cenas habituais da literatura; há qualquer coisa indecente em  A imagem fantasma  que nos obriga a olhar para tudo de outro modo. A fita vermelha é um texto exemplar. Não enche sequer a mancha da página, porém não pára de emitir sinais de alerta. Por um lado, Guibert é tremendamente objectivo, quase telegráfico; por outro, introduz pequenos pormenores de contraste e excesso no fim de cada frase, e depois nas últimas linhas rebenta com tudo mas ao contrário — com o contrário de uma explosão, não sei qual é a palavra para isso mas o som é de uma explosão passada ao contrário. Guibert é tão bom nestas técnicas de virar do avesso que depois de ler uns quant

A fita vermelha

Em Bruxelas, ao contrário de Paris, onde isso é proibido e só se põem à mostra grandes cartazes riscados com um «X», as fotografias pornográficas são expostas nas montras dos cinemas, à vista de todos, mesmo das crianças. Mas as partes sexuais, e a forma como elas são manipuladas, são cobertas com adesivo vermelho, numa delimitação simultaneamente cerrada (ao milímetro) e sugestiva. A fita-cola deve ter sido posta pela menina da caixa, ou pelo gerente do cinema, imagina-se, com uma indiferença apressada, irritada mas meticulosa: em certos sítios, ela ou ele teve de a passar várias vezes, e isso cria diferentes espessuras na fotografia, muitas vezes em quadriculado, como uma gradação do excesso, como, nas cartas submarinas ou vulcânicas, a indicação de zonas de incandescência, remoinhos, correntes mais violentas ou mais quentes, abismos… Faz-se esta distinção com fascínio: a fotografia censurada é mais erótica do que a fotografia nua, a fotografia pornográfica torna-se uma fotografia er

Na câmara escura (II)

Vesti a t-shirt vermelha que é quase igual à capa d’ A Imagem Fantasma , um rectângulo com um pouco menos de amarelo e brilho. Não foi de propósito, era a única que estava lavada e passada a ferro. Mas quando abri o livro no metro, percebi as manhas do inconsciente: caramba, estou com as luzes ligadas, vou destronar o cartaz do Cronenberg .  Não aconteceu nada, os turistas continuaram a segurar as malas e a mostrar panos de cozinha com galos de Barcelos.  Vou a meio, página 96. Quando estou a ler os livros que leio, às vezes penso, ah, sim, gostava de ter escrito isto, mas é muito raro e não mais do que um ou outro parágrafo porque não tenho ambições de escrita consecutiva. Com o livro do Hervé Guibert o descaramento é grave: queria ter escrito tudo, mais, queria ter a perspectiva dele, estar no seu exacto lugar, ser completamente ele.  Não sei como é que o Amândio conseguiu chegar ao fim da tradução incólume e calmo; se fosse eu, estava em maus lençóis.

Vai no batalha

É evidente que estou aqui a título de penetra. Preparei uma aula sobre o que gosto (ou gostava?) mais de fazer: rever filmes. Falo um pouco de Bresson e Godard para dar consistência, mas a ideia é explorar as malandrices e perícia de Hitchcock em três filmes: Janela Indiscreta , Os Pássaros e o maravilhoso Perigo na Noite .  Não parece, mas é — há-de ser — uma sessão para desanuviar (mais não seja porque não percebo nada de questões teóricas de cinema). E desviar, também, se conseguir.  Segui o método de Hitchcock e tenho tudo tão delineado que podia contratar alguém para ir dar a aula com menos irregularidades — uma loira bem penteada, de tailleur cinzento e olhar perdido é que era. O curso é barato, mas aviso já que a admissão é difícil que se farta (muito pior do que o exame de condução); convém ir à prova cheio de cinefilia.

Universo falhado

É a última anotação dos Cadernos . Não tem data, pode ser novembro ou dezembro de 1972. Nota-se que Cioran está cada vez mais ferido, pressente-se o declínio. A partir daí, é preciso atravessar um túnel escuro. «Sem a ideia de um universo falhado, o espectáculo da injustiça sob todos os regimes levaria até mesmo um indiferente à camisa-de-forças.»

Punho no estômago (I)

Num certo sentido, A Imagem Fantasma* é um livro difícil de ler, quer dizer, afecta-nos de um jeito avassalador logo a partir do primeiro texto. Pensamos que um tipo a escrever sobre fotografia vai focar-se em questões estéticas mais ou menos abstratas e isso é bom para repousar a vista e pensamentos mais intermitentes. Pois, talvez seja, mas não é o caso de Hervé Guibert; ele escreve com outra coisa mais dura para além ou antes das palavras, e expõe-se tanto que entra por nós a dentro, e já não há nada a fazer.  Por exemplo, Os Óculos de Ler o Pensamento é um parágrafo de nove linhas sobre uma invenção que encontrou na  Bibi Fricotin que o atraia e lhe metia medo ao mesmo tempo e faz uma passagem, que é um corte seco, para a fotografia — e é só. Pois sim, mas a partir daí sabemos que a fotografia é uma actividade arriscada. Nunca vi essas revistas de banda desenhada, no entanto quando era muito pequena (creio que ainda nem sabia ler) também tinha medo de uma máquina de ler os pensa

Orações e lágrimas

Como se tentasse fugir à morte que o perseguia, Sancho abandonava a sua capital, Coimbra, e, residindo alguns dias entre os monges de Alcobaça, daí pedia aos vassalos e burgueses, não homens de armas para as batalhas, não ouro para se enriquecer, mas orações e lágrimas. Alexandre Herculano, História de Portugal , Vol. II, p. 116.

An alternative Porto

Texto num mupi publicitário, no centro do Porto: Neonia Coming soon An alternative Porto inside the real one. Não há melhor ilustração do «Porto real» destes tempos: uma coisa «alternativa» dentro de outra mais «alternativa» ainda. Uma fachada de plástico com néons a esconder o vazio. Simples simulacro publicitário. Apenas isso.

Mais exacto, mais coerente e mais humano

O melhor texto que conheço sobre O Cozinheiro, o Ladrão, a sua Mulher e o Amante Dela , foi escrito por Agustina Bessa-Luís. A propósito do ladrão e da cena final de canibalismo — e este é o ponto central do texto —, Agustina escreve: O ladrão é o homem, predador, fazedor de lixo, imundo nas palavras e nos actos. E o tirano absoluto, a quem o holocausto é oferecido para que ele prove o seu canibalismo. Só que em vez de se mostrar repugnado com o repasto humano, ele devia precipitar-se sobre o cadáver do livreiro e devorá-lo, cedendo à tentação de um bom acepipe. Isso era mais exacto, mais coerente e mais humano. Greenaway, porém, recua e torna o tirano impressionável. O estômago revolta-se ao provar o primeiro bocado do judeu letrado, que lhe reduzira a mulher e o privara de algum bocado da sua cozinha. Não é crível que se revoltasse, mas que comesse e chorasse por mais. Não é possível que ficasse intimidado, mas só suspenso de ganância e apetite desalmado, perante um bom prato com ceb

Traições e vinganças literárias

Fiquei tão chateada com o Claudio Magris que arrumei o Danúbio por uns tempos (e logo agora que tenho um exemplar mesmo meu para sublinhar, anotar, estragar) e decidi em conformidade: em vez de me apaixonar pelo Magris, vou apaixonar-me pelo cão dele (parece que se chama Jackson) — é mais fácil chegar a consenso sobre ossos.  Nota: o Rui e a Tamina (foram eles que me ofereceram o livro) sabem do assunto e aconselharam-me a desenhar insultos obscenos na páginas em que Magris diz mal de Cioran. Vamos nisso!

Uma vida sem achaques

Nas páginas 482 e 483 de Danúbio , Magris zurze em Cioran de uma forma tão violenta que tive de ler três vezes os parágrafos para conseguir registar a informação. É das coisas mais tristes que há, começar a gostar de um escritor que desanca assim em alguém que admiramos. Parece uma traição, mas contra a qual nem sequer me posso enfurecer porque não é directa, quer dizer, só existe se me meter entre os dois, fora isso é um ataque vulgar. Magris fala de Cioran como um tipo que forjou uns pensamentos de escapatória, uma negação absoluta que não passa de um expediente cómodo para resolver todos os problemas no conforto da sua mansarda em Paris. Soa tudo tão vil e afastado da minha perspectiva que não consigo nem perceber nem, muito menos, aceitar. E o que é mais estranho é que nas páginas dedicadas à Panónia, aos bogomilos, ao que é ser magiar, reconheci tantas coisas que leio nas pequenas anotações de Cioran.   Entretanto, talvez para me poupar a penosos exercícios intelectuais, o corpo

As lágrimas são mais salgadas

A grande literatura húngara não é a que celebra o esplendor de uma Hungria heróica, mas a que denuncia a miséria e as sombras do destino húngaro. O próprio Petőfi, cantor da pátria e do Deus dos magiares, fustiga o egoísmo inerte dos nobres e a indolência da nação. Endre Ady canta a «tétrica terra magiar», define-se como «tristemente magiar» e proclama que «os Messias magiares são mil vezes Messias», porque no seu país as lágrimas são mais salgadas e eles morrem sem nada ter redimido. Quem nasce na Hungria paga um tributo à vida, porque a Hungria — diz-nos outro poema — é um fétido lago da morte; os Húngaros desgastando-se são «os bufões do mundo» e o poeta carrega dentro de si, dorido, a planície melancólica. A literatura magiar é uma vasta antologia dessas feridas, desta sensação de abandono que induz os Húngaros a sentirem-se como diz uma poesia de Attila József, «sentados na borda do universo». László Németh, o chefe de fila dos escritores popularizantes, falou de uma condição de «

Observações avulsas sobre o bonfim #56

Ontem reabriu o Café Saudade. Na segunda-feira foi a frutaria que fica em frente e nem sequer tem nome na montra. Juntamente com a paragem C24A1 dos STCP, formam uma espécie de trindade identificária da zona (um enclave na marca Porto. ) Não é fácil definir as características deste lugar mas talvez se possa dizer, sem grandes preocupações, que é cosmopolita, não tanto pelos turistas, mas pelos imigrantes, pela diversidade de faixas etárias (muitos velhos e crianças), géneros sexuais e mentais, etc.; de certa forma corresponde a uma primeira página do Correio da Manhã ao vivo (na frutaria parece que andam todos — empregados e clientes — com uma navalha no bolso); e demonstra que o povo nunca deixou de existir, apenas já não pensa nas expectativas. Um outro tipo de Bartleby.