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«Tenciono libertar-me deste fascínio em breve» (IV)

Estabeleci limites de páginas por dia, mas o livro é pequeno e já cheguei ao fim. Fica um travo um bocado amargo, qualquer coisa que se aproxima da morte. Todos os textos, mesmo os que não parecem estar na ponta extrema do abismo, é aí que acabam. Proibi-me de ir buscar as fotografias que estão guardadas (escondidas?) numa caixa num desvão. Nada de mimetizar os devaneios de Guibert. Mas a memória traiu-me e lembrei-me da imagem difusa e amarelada do meu pai apanhado a andar na rua. ( Um fotograma de um filme de Pasolini? ) Deve ser inverno, ele veste uma camisola de gola alta e gabardine. Ri-se para a máquina. Muito alto e muito magro e agora também muito novo. ( Como é que uma recordação esbatida pode ser superlativa? ) Sou parecida com ele e às vezes, creio, consigo representá-lo . Os mortos nunca estão completamente mortos.

Chuva e trovões (III)

Há uma altura em que até eu acho que já estou a exagerar e todavia continuo porque faz parte do exagero não ligar ao resto. Escrevo de noite, estou cansada e passa tudo. Isto ainda é sobre o livro do Guibert, mas está um bocado para lá das questões literárias ou fotográficas ou estéticas. Apercebo-me que a energia do livro extravasa as cenas habituais da literatura; há qualquer coisa indecente em  A imagem fantasma  que nos obriga a olhar para tudo de outro modo. A fita vermelha é um texto exemplar. Não enche sequer a mancha da página, porém não pára de emitir sinais de alerta. Por um lado, Guibert é tremendamente objectivo, quase telegráfico; por outro, introduz pequenos pormenores de contraste e excesso no fim de cada frase, e depois nas últimas linhas rebenta com tudo mas ao contrário — com o contrário de uma explosão, não sei qual é a palavra para isso mas o som é de uma explosão passada ao contrário. Guibert é tão bom nestas técnicas de virar do avesso que depois de ler uns quant

A fita vermelha

Em Bruxelas, ao contrário de Paris, onde isso é proibido e só se põem à mostra grandes cartazes riscados com um «X», as fotografias pornográficas são expostas nas montras dos cinemas, à vista de todos, mesmo das crianças. Mas as partes sexuais, e a forma como elas são manipuladas, são cobertas com adesivo vermelho, numa delimitação simultaneamente cerrada (ao milímetro) e sugestiva. A fita-cola deve ter sido posta pela menina da caixa, ou pelo gerente do cinema, imagina-se, com uma indiferença apressada, irritada mas meticulosa: em certos sítios, ela ou ele teve de a passar várias vezes, e isso cria diferentes espessuras na fotografia, muitas vezes em quadriculado, como uma gradação do excesso, como, nas cartas submarinas ou vulcânicas, a indicação de zonas de incandescência, remoinhos, correntes mais violentas ou mais quentes, abismos… Faz-se esta distinção com fascínio: a fotografia censurada é mais erótica do que a fotografia nua, a fotografia pornográfica torna-se uma fotografia er

Na câmara escura (II)

Vesti a t-shirt vermelha que é quase igual à capa d’ A Imagem Fantasma , um rectângulo com um pouco menos de amarelo e brilho. Não foi de propósito, era a única que estava lavada e passada a ferro. Mas quando abri o livro no metro, percebi as manhas do inconsciente: caramba, estou com as luzes ligadas, vou destronar o cartaz do Cronenberg .  Não aconteceu nada, os turistas continuaram a segurar as malas e a mostrar panos de cozinha com galos de Barcelos.  Vou a meio, página 96. Quando estou a ler os livros que leio, às vezes penso, ah, sim, gostava de ter escrito isto, mas é muito raro e não mais do que um ou outro parágrafo porque não tenho ambições de escrita consecutiva. Com o livro do Hervé Guibert o descaramento é grave: queria ter escrito tudo, mais, queria ter a perspectiva dele, estar no seu exacto lugar, ser completamente ele.  Não sei como é que o Amândio conseguiu chegar ao fim da tradução incólume e calmo; se fosse eu, estava em maus lençóis.