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Teletrabalho

Investi o dinheiro do passe em dois livros da Iris Murdoch. Escolhi-os pelos títulos e pelos tradutores. Sinto-me como aqueles tipos que sabem ganhar milhões na Bolsa.

Insubmissão

Estou há mais de um ano fechado em casa, em teletrabalho. Tenho pensado muito em Robert Walser. Talvez a insistência dele em caminhar, sempre que possível, quilómetros a fio, debaixo de sol ou chuva, contra o vento ou sobre a neve, fosse o seu grande acto de rebeldia. Quer dizer, a expressão da sua dignidade, liberdade, insubmissão. Mais até do que a escrita, que é outra maneira de caminhar, mas sentado. No meu caso, nem isso. O trabalho consome o melhor do meu tempo. O tempo que qualquer ser humano deveria usar para caminhar com os pés e a imaginação.

Magnólia

De vez em quando, por entre o incansável barulho da chuva a bater nos vidros, consigo distinguir o delicado farfalhar da magnólia molhada. Em baixo, melros nervosos divagam por cima das raízes. Parecem muito ocupados com um pensamento importante. Que pensamento? O que sabem os melros que nós não sabemos?

Jogo

Pausa no trabalho. Dez minutos para roer uma maçã. Espreito pela janela. Lá em baixo, as marcas do passeio formam um estranho tabuleiro de xadrez. Os peões avançam numa e noutra direcção, uns devagar, outros mais apressados. O jogo arrasta-se há uma eternidade, sem grandes variações. Ganham os do costume, perdem os de sempre.

Sinfonia de uma pequena cidade

Obras na avenida Fernão Magalhães (sul). Obras no prédio ao lado (traseiras, norte). Obras no apartamento em frente (a toda a volta). No segundo andar, o médico toca piano (escadas).

Ocorrências

Lá fora estão trinta graus. Dentro de casa estão mais dez. A água ferve nas torneiras. A louça do pequeno-almoço seca na banca em poucos minutos. A ventoinha abana a cabeça, vezes sem conta, como que para afastar ideias tristes. As portas estalam. Os móveis rangem. Ou serei eu?

Sombra

Já passaram cinco meses desde que estou em casa. Talvez mais. Perdi a conta ao tempo. A gaivota que nasceu no telhado em frente já tem o tamanho de um pato pequeno. Move-se de um lado para o outro, sobre as telhas, com a mesma destreza com que um tipo sóbrio caminha numa rua de paralelos. Tem um apetite voraz. Os pais desembaraçam-se como podem, atirando-se aos sacos do lixo. De vez em quando, passam à frente do sol e uma sombra rápida desliza pelas paredes de minha casa. É o momento mais «verdadeiro» do meu dia de teletrabalho.

Mamute

Ao fim da tarde, após nove horas ou mais de «teletrabalho», saio e dou uma volta pelo bairro. Desço a Lapa, contorno a Praça da República, sigo pela Rua do Almada, viro à direita em Ricardo Jorge e regresso por Mártires da Liberdade, e Antero de Quental. Lembro-me de ter lido que Murnau meteu 10 kg de chumbo nos sapatos de George O’Brien para obter aquela imagem meio simiesca em «Aurora». Como compreendo agora o esforço do actor! Nestes tempos pesados, maciços, desesperados, ao cabo de quarenta minutos de caminhada, não sei se sou eu que avanço se é um mamute em meu lugar.

Câmara ligada

Longas e intermináveis reuniões de teletrabalho. Horas e horas com a «câmara ligada». O meu rosto no ecrã tem uma força magnética qualquer. Não consigo desviar o olhar de mim próprio. Todos os movimentos e gestos me atraem. Mexo no cabelo com a intenção de me ver. Sorrio e passo a mão pelo rosto como num filme. Os gestos mais simples e involuntários parecem controlados, estudados, ensaiados, falsos. Estou a representar o meu papel e sou um péssimo actor. Bresson jamais me contrataria.