Avançar para o conteúdo principal

Mensagens

A mostrar mensagens de maio, 2023
Sonatas para Violino de Bach.  Temos de nos emancipar, não só na música, mas também na filosofia, e em tudo, da orquestra . Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 
Apesar de não saber nada do filme, desconfio que o sítio apropriado para ver As Filhas do Fogo é o teatro de marionetas de Awaji, do livro de Tanizaki.

Porque imaginam o gozo

Para proteger o Estado, tudo se justifica. Também é verdade que à maior parte das qualidades sádicas, que todos possuímos, é dada rédea solta na peça [One for the Road] . O público sentiu medo - mas era medo de quê? Medo não apenas de estar na posição da vítima, mas também um medo nascido do reconhecimento deles próprios no interrogador. Porque imaginam o gozo que é ter o poder absoluto. Harold Pinter numa conversa com Nicholas Hern, Fevereiro de 1985. Tradução de João Saboga.

Uma mulher em Veneza

Gosto tanto da fotografia escolhida para a contracapa d' Uma família em Bruxelas . Foi tirada em 1982, no Festival de Cinema de Veneza (baralhei-me com outra de Cannes, de outra pessoa), por Raymond Depardon.  Parece uma imagem convencional a preto e branco, com linhas certas e pose estudada. E ao princípio é isso, mas depois não sei explicar porquê, esqueço-me da praia e das barracas e já só vejo aquele corpo tenso, uma mão no bolso, a outra com o cigarro, os olhos desconfiados. Desconfiança de quê? Da praia? Do Festival? Do cinema? Da vida? E essa desconfiança não pára de aumentar, e já passou para mim, como se houvesse um diálogo ou uma ligação qualquer e quase que dá para sentir o mistério daquela mulher, e — deve ser esse o milagre das imagens — por um breve momento, oh, muito breve, Chantal está toda aqui .

A coisa está em marcha

Um homem no Marquês, à porta de um café. Setenta e muitos. A bengala encostada à parede. Com uma moeda, risca uma raspadinha. «Oh, meu Deus! Oh, meu Deus!» Risca uma vez, risca outra. «Oh, meu Deus!» A coisa está em marcha. A moeda risca, risca, risca uma e outra vez ainda. Nada. Larga a raspadinha no lixo. Tira um maço de tabaco do bolso e acende um cigarro. Pega na bengala. Desce a Constituição, fumando.

Da futilidade

A leitura das Máximas  de La Rochefoucauld (da maravilhosa colecção Clássicos de Bolso da Editorial Estampa) não combina com o metro, mas combina com o colar de pérolas da minha mãe.

Cada bicho com seu gosto

Já não lia Junichirō Tanizaki há bastante tempo, não sei se foi por isso que me entusiasmei tanto com Alguns preferem Urtigas . Mesmo assim ainda consigo apontar três causas mais ou menos racionais: é o livro de ficção de Tanizaki mais perto do ensaio Elogio da Sombra com tudo o que isso implica de atracção imediata; apesar da dimensão o arrumar nas novelas (ou até, por distracção, nos romances), usa a estrutura dos contos — poucas personagens, pouco enredo, um final magnificamente sincopado; faz lembrar um filme de Antonioni, um filme que Antonioni tivesse feito no Japão, um filme perdido.

Espinhos e peçonha (aprender com as plantas)

(…) É por certo graças a ele que existem plantas maiorquinas de hábito compacto dotadas de espinhos aguçados (como o Astragalus balearicus ), que são obviamente desencorajadores do mais voraz dos apetites. Outro modo de uma planta evitar converter-se em refeição é ser peçonhenta ou de sabor desagradável. Tudo indica ser essa a estratégia usada pelo hipericão-das-Baleares: não sendo nada espinhento, não há outro motivo plausível para as cabras recusarem alimentar-se da sua tenra folhagem. Ou talvez as folhas deste arbusto não sejam assim tão tenras: são pequenas, têm um aspecto rígido e crispado, e apresentam margens pontuadas por verrugas proeminentes — verrugas essas recheadas com uma resina que não é certamente um néctar dos deuses. Idênticas verrugas com idêntico recheio distribuem-se de alto a baixo nos ramos e raminhos da planta. O aviso é claro e todas as cabras o respeitam: nenhuma se dispõe a trincar o Hypericum balearicum , que vai fazendo a sua tranquila vida de sempre em Mai

Porque lêem o Evangelho, porque rezam?

Leio no jornal o relato de novos crimes cometidos pelas autoridades gregas contra refugiados que tentam atravessar o Mediterrâneo em direcção à Europa. Agora, além de impedirem as embarcações de chegarem a terra, também levam refugiados de terra para o alto-mar, expondo-os ao risco iminente de naufrágio e morte. O The New York Times relata o caso, documentado em vídeo , de um grupo de refugiados com várias crianças e um bebé levado de Lesbos pelas autoridades gregas e abandonado no mar Egeu. Na novela A minha vida , Tchékhov escreve: Em que é que estes homens estúpidos, cruéis, preguiçosos, desonestos, são melhores do que os mujiques bêbados e supersticiosos, ou do que os animais, eles que também se transtornam assim que qualquer acontecimento vem quebrar a monotonia da sua vida, limitada pelos seus instintos? Lembro-me de cães torturados até à morte, ou que enlouqueceram, de pardais depenados vivos por garotos e lançados depois à água, e de toda uma longa, longa vida de lentos e mud

Japonesices

No sábado trouxe da biblioteca  Alguns preferem Urtigas , de Junichirō Tanizaki. Ontem fui ao Campo Alegre ver Mulheres da Noite , de Kinuyo Tanaka. Hoje, creio, só me resta apanhar uma bebedeira de saqué.

Errata

A imprensa devastará o que a sífilis deixou. As causas dos amolecimentos cerebrais do futuro já não poderão ser determinadas com segurança. (Karl Kraus, na tradução de Lumir Nahodil) Primeira errata: onde se lê «imprensa», deve ler-se «televisão». Onde se lê «sífilis», deve ler-se «imprensa». Segunda errata: onde se lê «televisão», deve ler-se «redes sociais». Onde se lê «imprensa», deve ler-se «televisão».

O Cervejal

Foi para aí nos anos oitenta: um tipo que trabalhava para a companhia de teatro TEAR, uma espécie de contínuo, referia-se à peça de Tchékov como «O Cervejal». Não era um trocadilho, pensava mesmo que era assim que o texto se chamava. Sem querer, e por pura afinidade ( tendência dos corpos para se unirem ), tinha inventado uma palavra. Se estivesse para aí virado (quer dizer, se fosse o Valério de «Leôncio e Lena » ) até podia criar um conceito. E que conceito!

A biblioteca de Samuel Beckett

« Elle [la bibliothèque de Samuel Beckett] est toujours telle qu'elle était au moment de sa mort, dans son appartement du Boulevard Saint-Jacques à Paris.»  

Maio de 68

O que acho bonito é que durante os acontecimentos de Maio, os estudantes não recorreram a Gide, nem a Valéry, nem a Claudel, mas a Artaud , que era pouco conhecido e certamente desprezado por essas três estrelas. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 (junho 1968)

Um vento forte

Na estação de metro dos Aliados, está uma exposição de cartazes sobre o campo de refugiados de Moria, o lugar onde colocaram o inferno, em Lesbos. Durante a noite levantou-se um vento forte e uma parte dos cartazes descolou e caiu. Arrastam-se agora, sob a indiferença geral, pelo pavimento da estação.

Aquilo que ainda sobra

Cioran passa o tempo a ler. Tento seguir as referências que surgem nos Cadernos mas, como não tenho a vida dele, não o consigo acompanhar. Noutro dia vi Tonio Kröger na Biblioteca e lembrei-me desta anotação: «Tudo o que sou, o pouco que valho, devo à extrema timidez da minha adolescência. O meu lado Tonio Kröger .»  O livro é muito trabalhado, quase que se ouve a cabeça de Thomas Mann a escolher as palavras, a balançá-las — tudo isso. Apesar de alicerces extremamente sólidos, é divertido. Por exemplo tem dois punctums muito estimulantes: a flor campestre na lapela do pai de Tonio ou o cigano num carro verde que só vemos dentro da cabeça de Tonio, talvez por ele próprio ser escritor; a cena com o polícia que o toma por um ladrão em fuga para a Dinamarca e que começa com tons de Kafka e acaba como uma comédia portuguesa dos anos 30 ou 40 com a palavra provas a fazer ricochete também é muito cómica; ou até mesmo a conversa instrutiva no atelier de Lisaveta Ivanovna — bom, era aqui

Vida de gato

Cioran nunca fala disso, nem nos Cadernos.  Fala das doenças, da falta de dinheiro, mas creio que nunca se apercebeu que a vida que levava era a que mais lhe convinha: uma verdadeira vida de gato.  Acho que só Simone Boué sabia que ele tinha essa sorte.

O tempo das cerejas

Dois euros, meio quilo, na frutaria da minha rua. Na verdade, o preço é 1,99 euros, meio quilo. O cêntimo de diferença é o intervalo onde está a ficção. O desvio literário, o clinâmen. A diferença entre o meio quilo e o quilo já é outra coisa — pura e dura economia.
Não há riso no Cristianismo.  Só poderia aderir a uma religião em que o Criador se risse da Criação — um Deus trocista.  Seria tudo muito mais fácil se aceitássemos um Deus trocista. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 (junho 1968)

O mercado a funcionar

Na rua do Almada, mesmo em frente à Mala Voadora, há uma pequena da loja de tralhas e eletrodomésticos. Na montra, quase encostados ao vidro, vi os seguintes objectos: um disco de fogão que cabe num A5, uma cafeteira para um café e até o que me pareceu ser uma máquina de café de cápsulas de bolso. Comecei por pensar que se destinavam a pessoas que vivem sozinhas, mas depois percebi que não era nada disso, estes objectos minúsculos são para as pessoas que vivem em espaços reduzidos, em quartos ou camas amontoadas em lojas ou garagens. A normalização começa assim, quando o mercado se adapta. E o mercado até gosta desta ideia de ocuparmos vivos o pequeno espaço que vamos ocupar mortos. E pagarmos muito por isso. Rende mais.

Saint Omer, de Alice Diop

Laurence Coly é uma infanticida confessa. Abandonou a filha de quinze meses uma noite, numa praia do norte de França, durante a maré alta, para que o mar a engolisse. O pequeno corpo sem vida deu à costa pouco tempo depois, sendo descoberto por um pescador. Quando o julgamento começa, a juíza pergunta a Laurence por que razão matou a filha. Ela diz que não sabe e que espera que o julgamento a ajude a encontrar uma resposta. Nesse exacto momento, o filme entra em absoluto estado de graça. Sai da treva e entra na luz, sai da luz e cai num abismo. O princípio e o fim unem-se no mesmo ponto: o coração do mistério. O filme é sobre essa esperança, alimentada por um medo que vem do fundo dos tempos, de um dia encontrarmos uma resposta, compreendermos qualquer coisa.

A pulseira de prata, o universo espacial e as assinaturas do sobrinho e de Aurora Pinto

Leio num jornal que a «livraria» Lello inaugura hoje uma exposição dedicada a Saint-Exupéry, «que vai mostrar, pela primeira vez em Portugal, a pulseira de prata do autor de O principezinho ». A «livraria» pretende ainda assinalar o dia do octogésimo aniversário da publicação do livro com o lançamento de uma «edição impressa em prateado, com páginas azuis escuras, numa alusão ao universo espacial». Os exemplares deste livro, lê-se ainda na mesma notícia, «serão assinados pelo sobrinho do autor e por Aurora Pinto, da livraria».

Equivalências

Um livro sobre Helen Keller, muda e cega, conta, entre outras coisas, como a sua preceptora lhe explicava o branco e o negro com a ajuda de um piano: no mais alto do teclado, era o branco; o negro ocultava-se nos sons mais profundos... Para que a obra de Tchékhov, para que o homem Tchékhov atinjam a consciência de um público não-russo ser-me-á necessário encontrar uma equivalência semelhante à dos sons-cores. Elsa Triolet, A vida de Anton Tchékhov . Tradução de Alfredo Brás.

Una salida al campo

A influência de Rohmer em Têm de vir vê-la é visível e, acho que o posso dizer, assumida: homens e mulheres a conversarem sobre isto e aquilo, a cidade e o campo, os gestos vulgares do dia a dia, e até o livro de um filósofo; tudo isso confere o parentesco.  Mas, talvez porque não falam em francês, as personagens de Jonás Trueba são mais soltas, o que dizem é mais inconsequente ou fica a pairar.  Só no fim, quando Elena (maravilhosa Itsaso Arana) se afasta e se agacha para fazer chichi entre as ervas e desata a rir  — uma das cenas mais bonitas que vi nos últimos tempos no cinema —, percebi de onde vem esta doçura que se espalha pelo filme como um som ou uma dança. Ah!

Peregrinos

Entrou em Pedro Hispano e saiu na Câmara de Matosinhos, já a conheço de vista. Contou a uma amiga que a patroa da senhora que saiu no Parque de Real foi a Fátima a pé e ela só tem de cozinhar para os dois doutores . Depois de um silêncio, acrescentou: Também sou peregrina. Somos todos . ( São velhas, dizem muitos lugares comuns, é uma forma de assegurarem uma pertença, creio, mas no meio, sai-lhes uma frase que nunca ouviram, que é mesmo delas. Às vezes até se admiram com a força e o brilho e repetem o aforismo com satisfação .)

Beckett

Alguns encontros  Para decifrar esse homem distinto que é Beckett, temos de insistir na locução «manter-se à parte», divisa tácita de cada um dos seus momentos, no que implica de solidão e obstinação subterrânea, na essência de um ser afastado, que persegue um trabalho implacável e sem fim. No budismo, diz-se que aquele que tende para a iluminação deve ser tão encarniçado como «o rato que rói um caixão». Todo o escritor verdadeiro desenvolve um esforço semelhante. É um destruidor que acrescenta à existência, que a enriquece ao miná-la.  «O tempo que passamos na terra não é suficientemente longo para o usarmos noutra coisa a não ser em nós mesmos.» Esta afirmação de um poeta aplica-se a quem recusa o extrínseco, o acidental, o outro . Beckett ou a arte inigualável de ser quem é. Com isso, nenhum orgulho aparente, nenhum estigma inerente à consciência de ser único: se a palavra amenidade não existisse, teríamos que a inventar para ele. Coisa difícil de acreditar, até monstruosa: ele n

Horário nobre, nação valente & outras coisas rocambolescas

Se a vontade de comer um gelado foi influenciada por João César Monteiro (dica de Pedro Mexia?), só espero uma coisa da comunicação de logo à noite.

Disponibilidade para a solidão

Os discursos de António Costa são mal amanhados e quando ele se irrita (e irrita-se muitas vezes) engasga-se nas palavras e as frases parecem refletir pensamentos encavalitados e isso é mau — principalmente para os comentadores que apreciam a fineza oratória. No entanto, no discurso de ontem, creio que já perto do fim, Costa falou em «disponibilidade para a solidão» — talvez estivesse a pensar no Príncipe de Salina, talvez não, mas foi a melhor parte do discurso.

Violência histórica II

In 1953, Tanaka boldly turned to directing her own features in an industry deprived of female filmmakers and amid outcries from her mentors (particularly Mizoguchi). Nevertheless, she fulfilled her ambition with the help of the young studio Shintoho and her faithful friends Ozu and Naruse, as well as the groundbreaking gay filmmaker Keisuke Kinoshita, who penned the screenplay for her directorial debut, Love Letter, which went on to receive critical acclaim at the 1954 Cannes Film Festival.

Liberal Radical Autêntico

Já são conhecidos os resultados das eleições presidenciais no Paraguai. O candidato derrotado, Efraín Alegre, é o líder do Partido Liberal Radical Autêntico. Leio isto no jornal e ocorre-me de imediato a imagem de Nanni Moretti, de roupão e touca, em Palombella Rossa , a gritar como um louco: «Le parole sono importanti! Le parole sono importanti!»

Violência histórica I

Fiquei completamente espantada com a violência contida nos filmes de Kinuyo Tanaka. Tem a ver com as propriedades do melodrama, claro — mas não é só isso. A força que oprime as personagens não vem apenas do argumento, mas de uma outra história mais longínqua e perigosa.