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Borges (o último dos delicados)

Carta para Fernando Savater Paris, 10 de dezembro de 1976 Querido amigo, Em novembro, quando passou por Paris, pediu-me para colaborar num volume de homenagem a Borges. A minha primeira reação foi negativa; a segunda… também. Para quê venerá-lo quando as próprias universidades já o fazem? A má sorte de ser conhecido abateu-se sobre ele. Merecia melhor. Merecia permanecer na sombra, no imperceptível, manter-se tão esquivo e tão impopular como uma nuance. Era aí que se sentia em casa. A consagração é a pior das punições — para um escritor em geral, e muito especialmente para um escritor do seu género. A partir do momento em que todos o citam, já não o podemos citar ou, se o fazemos, temos a impressão de estar a engrossar a legião dos seus «admiradores», dos seus inimigos. Na verdade, aqueles que querem a todo o custo prestar-lhe justiça, mais não fazem do que precipitar a sua queda. E fico por aqui, porque se continuasse neste tom acabaria por me compadecer do seu destino

Singurătate şi destin

Durante muito tempo houve sobre a mesa de Cioran um caderno sempre fechado.  Após a sua morte, ao juntar os seus manuscritos para os confiar à Biblioteca Doucet, encontrei trinta e quatro cadernos idênticos. Só diferiam nas capas marcadas com um número e uma data. Iniciados em 26 de Junho de 1957, pararam em 1972.  Durante quinze anos, Cioran manteve no seu escritório, à mão, um desses cadernos, que parecia ser sempre o mesmo e que nunca abri. Neles encontramos entradas geralmente breves («Tenho o fragmento no sangue»), e a maior parte das vezes sem data. Apenas os acontecimentos considerados importantes estão datados, quer dizer, os passeios no campo e as noites de insónia — o que dá:  «Domingo, 3 de Abril. Caminhei todo o dia pelos arredores de Dourdan...»  «10 de Abril. Segui pelo canal Ourcq.» «24 de Novembro. Noite medonha.»  «4 de Maio. Noite atroz.»   Apesar do carácter repetitivo e monótono, guardei todas as passagens pois essas antífonas estão datadas.  Os cadernos de Cioran n

Avançar para um maior grau de insegurança

Não me cabe a mim, querido amigo, emitir um juízo sobre um livro do qual sou objecto. Saiba, porém, que a sua tentativa de captar desde o interior a minha maneira de ver as coisas iluminou-me sobre numerosos detalhes, sobre numerosas ilusões surgidas do arrebatamento ou da negação e, deste modo, tornou-me um pouco mais exterior, um pouco mais estranho a mim mesmo, o que devia ser a ambição de quem se compromete nesta aventura de espectador que é o conhecimento de si mesmo. Tem razão ao deixar de lado as «influências». Sofri muitas porque, não tendo praticado nenhum ofício, pude, ao longo dos anos, ler um número considerável de autores. Quais citar? Todos aqueles — e são uma legião — que, de Theognis a Beckett, formularam as suas reservas à legitimidade da existência.  Não foram, no entanto, as leituras que me formaram, mas os acidentes e os encontros. Tudo o que descrevi é fruto de circunstâncias, de acasos, de conversas, de ruminações nocturnas, de crises de desânimo mais ou menos quo

Um refugiado em casa

Nada do que li de Cioran me esclareceu tanto sobre a complexa e delicada trama do seu espírito como aquela visita, há mais de 20 anos, na companhia de Fernando Savater. Fomos vê-lo às suas águas-furtadas no Bairro Latino — uma chambre de bonne de um ascetismo semelhante ao de Dreyer, pintada de branco até ao chão e com uma salamandra de ferro no meio, certa tarde de fevereiro ou março, já não me lembro, com um frio de rachar. A salamandra, que parecia uma divindade primitiva e malévola naquele refúgio evidentemente santo, estava apagada. Nessa altura, Savater andava a traduzir Cioran para aquela editora Taurus dirigida por alguém que ainda não tinha conseguido enobrecer o sangue, e ninguém conhecia o romeno. Recordo que naqueles anos não muito distantes de 70 houve uma greve de lixeiros em Paris e a cidade estava coberta de lixo. As ratazanas roçavam as pernas dos transeuntes e um fumo excrementício emanava das montanhas de matéria decomposta. Todos os dias, enquanto durou a greve, Be

Arranhar a ferida

Fernando Savater:  Qual foi a sua formação filosófica, quais são os filósofos que mais o interessaram? Emil Cioran:  Bem, na minha juventude li muito Lev Chestov, que era então muito conhecido na Roménia. Mas quem me interessou mais, quem mais amei — é essa a palavra —, foi Georg Simmel. Sei que Simmel é bastante conhecido em Espanha, graças ao interesse que Ortega lhe dedicou, enquanto é completamente ignorado em França. Simmel era um escritor maravilhoso, um filósofo ensaísta magnífico. Era amigo íntimo de Lukács e Bloch, que influenciou e que mais tarde o renegaram, o que acho absolutamente desonesto. Hoje, Simmel foi completamente esquecido na Alemanha e até silenciado mas, no seu tempo, era admirado por figuras como Thomas Mann e Rilke. Simmel também era um pensador fragmentário. O melhor do seu trabalho são os fragmentos. Também fui muito influenciado por pensadores alemães daquilo que se chama a "filosofia da vida" como Dilthey etc. Claro, também li muito Kie

Os sapatos de Pascal

Já não sei como é que começou esta mania de associar a filosofia a sapatos e botas, mas a verdade é que volta e meia lá avanço mais uma casa neste jogo particular. Desta vez, descobri isto no livro “A caballo entre milenios” , de Fernando Savater: El encanto de Cioran reside en que expresa los vapores del spleen romántico con una prosa disciplinada en el potro de tortura de los moralistas clássicos: como apuntaba con agudeza Adam Gopnik en un artículo aparecido hace pocos días en el New Yorker, “efectúa los paseos de Baudelaire con los sapatos de Pascal”. — É uma descrição formidável.

Le mauvais démiurge — variações

(…) Decidi começar pelo início, que é um princípio tão bom como outro qualquer, e elegi como vítima da primeira tradução da minha vida Précis de décomposition , o livro com que Cioran iniciou a sua carreira de escritor em França. Os títulos de Cioran sempre me deram dores de cabeça e nesse caso resolvi traduzi-lo como Breviario de podredumbre  (Breviário de Podridão): assim evitava o som excessivamente intestinal de descomposición  em castelhano e, em troca, aproveitava a blasfémia insolentemente eclesiástica de breviario ...  Depois, encorajado pelo surpreendente eco público dessa primeira tradução (que culminou quando um empregado do bar da faculdade de filosofia me perguntou se pensava traduzir outro livro de Cioran, anedota que encantou o autor), dediquei-me ao que tinha sido o meu primeiro contacto com a sua obra: Le mauvais demiurgue . Mauvais ? Após dar muitas voltas, optei por convertê-lo em aciago  (aziago). Cioran, que lê e compreende muito bem espanhol, não ficou lá muit

Agora somos todos fragmentistas

Emil Cioran: Acho que a filosofia já não é mais possível senão como fragmento . Sob a forma de uma explosão. Agora já não é possível desatar a escrever capítulo após capítulo, sob a forma de um tratado. Nesse sentido, Nietzsche foi eminentemente libertador. Foi ele quem sabotou o estilo da filosofia académica, quem atentou contra a ideia de sistema. Ele foi libertador, porque depois dele podemos dizer qualquer coisa... Agora somos todos fragmentistas, mesmo quando escrevemos livros aparentemente coordenados. O que liga bem com o nosso estilo de civilização. Fernando Savater: Isso também está de acordo com a nossa probidade. Nietzsche dizia que na ambição sistemática, há uma falta de probidade... Emil Cioran: A propósito de probidade, deixe-me ainda dizer uma coisa. Quando alguém se lança num ensaio de quarenta páginas sobre o que quer que seja, parte de certas afirmações prévias e fica prisioneiro delas. Uma certa ideia de probidade obriga-o a respeitá-las até ao fim, a não
Fernando Savater: Você não abandonou apenas a sua pátria, mas também, e isso é o mais importante, a sua língua. Emil Cioran: É o maior acidente que pode acontecer a um escritor, o mais dramático. As catástrofes históricas não são nada à beira disto. Escrevi em romeno até 1947. Nesse ano vivia numa casinha perto de Dieppe e traduzia Mallarmé para romeno. De repente disse para mim mesmo: “Que absurdo! De que serve traduzir Mallarmé para uma língua que ninguém conhece?” Foi então que renunciei à minha língua. Comecei a escrever em francês, e isso foi muito difícil porque, por temperamento, a língua francesa não me convém: preciso de uma língua selvagem , uma língua de bêbado. O francês foi para mim como um colete-de-forças. Escrever noutra língua é uma experiência aterradora. Refletimos sobre as palavras, sobre a escrita. Quando escrevia em romeno, fazia-o sem me dar conta, simplesmente escrevia. Nessa altura as palavras não eram independentes de mim. Quando comecei a escrever em fra