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Andar em círculos

Fomos ao Trindade rever Underground , de Kusturica. Na minha memória, era o último filme do realizador que ainda valia a pena ter em conta. Meia desilusão. O último terço do filme já anuncia o Kusturica grotesco, reaccionário, ubuesco, no pior dos sentidos. Tinha bons motivos para ter esquecido essa parte. Há, no entanto, uma cena que quero reter: a cadeira de rodas com os corpos dos velhos amantes em chamas, às voltas, sem parar, em torno de um crucifixo com o Cristo tombado. Pouco importa o que está imediatamente antes e o que vem depois. Quero fixar apenas essa cena. Lembra-me a carrinha a rodar em círculos, sem ninguém ao volante, de Os Anões Também Começaram Pequenos , de Herzog. Ou os carros na rotunda em Playtime , de Tati. Mas uma cadeira de rodas em chamas à volta de um crucifixo mutilado é outra coisa. É a imagem do relógio do mundo, movido a ódio, cegueira e violência.

Um turista mexeu

Notícia no jornal: «O relógio da Torre dos Clérigos, no Porto, está atrasado 40 minutos desde segunda-feira, após um turista ter mexido num dos seus veios mecânicos.»  De repente, um turista trapalhão lança toda a cidade num salto mirabolante pelo abismo do tempo. Um pequeno gesto involuntário e o Porto passa a ser o único lugar do mundo que avança segundo uma escala temporal diferente. 40 minutos, 40 horas, quem sabe 40 anos fora do tempo. Ou simplesmente — outra hipótese — o turista não resistiu ao apelo erótico do veio mecânico do relógio dos Clérigos e tocou-lhe. Com a ponta dos dedos, com a mão toda, talvez.

Fruta da época

Estamos em Fevereiro e nas frutarias ainda há dióspiros. Frescos, doces, suculentos. Acabados de colher. Parece que os calendários continuam em vigor, mas por simples hábito. Nos velhos diospireiros, obedientes ao tempo ancestral da natureza, alguém enxertou o tempo acelerado dos negócios. A «fruta da época» foi substituída pela «época sem fim da fruta». Volto, uma vez mais, ao pesadelo do velho Isak Borg: relógios sem ponteiros.

Relógios

Dir-se-ia que o domingo não passou de um sonho. Sem horas, sem minutos. Um sonho de paredes brancas e relógios sem ponteiros, como no pesadelo que anuncia ao Prof. Isak Borg a sua própria morte.

Hora certa

Na fila do supermercado, reparo num homem que tem um relógio tatuado no pulso. Creio que não me engano: os ponteiros marcam as doze horas certas. Meio-dia ou meia-noite? Uma hora marcada para sempre na pele. A hora de um encontro marcado ou apenas desejado? Com quê? Com quem?