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Costuras

Ontem li «Costuras», de Olga Tokarczuk (tradução de Teresa Fernandes Swiatkiewicz, edição da Cavalo de Ferro), entre o Campo 24 de Agosto e Matosinhos Sul, de manhã bem cedo. A viagem de metro é mais longa do que o conto (dez páginas e oito linhas), passei o resto do percurso a olhar pela janela para tentar alhear-me da história e enfrentar um dia de trabalho banal. Continuava, porém, a ver as costuras das meias, a cor acastanhada da tinta das esferográficas, a forma dos selos. Aqueles objectos tomaram a vez dos pensamentos, alastravam pela cabeça criando uma tremenda inquietação material. Conseguia, não compreender (nunca ninguém consegue), mas pressentir o desassossego de B.  No regresso, ao fim da tarde, voltei a ler o conto e tirei as dúvidas: é dos tais, dos que nos encostam à parede, dos que não nos largam mais.  A tradução inglesa (de Jennifer Croft) pode ser lida aqui .

Até que elas adormeçam

[Matthew] Guthrie descrevendo os velhos costumes da Rússia, diz: «Observa-se também nas casas dos grandes, mulheres encarregadas de contar contos, Skaski … A sua ocupação consiste em entreter suas amas até que elas adormeçam, com contos semelhantes às Mil e Uma Noites árabes, antiquíssimo costume entre os orientais.» Teófilo Braga, Contos Tradicionais do Povo Português , Vol. II.

Beber à morte

Estão sentados num café fechado ao público*. Sangok diz ao realizador que os seus filmes parecem contos. Está a falar com Jaewon e também com Hong Sang-Soo. Aceito e gosto desta interpretação: a mancha de molho na blusa, por exemplo, tem a economia, o peso e a ambiguidade que existem nos melhores contos e nos fazem tremer — aquilo a que podemos chamar augúrios narrativos. Mas a analogia que me parece mais justa é menos conceptual e mais orgânica; relaciona-se com a luz e as cores fortes do filme, com os movimentos livres das personagens (cenografia e coreografia) e apreendi-a há três anos num romance de Iris Murdoch (para continuar com os pés enterrados na literatura). Assim, roubando as palavras finais de uma das personagens d’ O Sino , posso dizer que em Perante o teu rosto vi Sangok virar-se toda para a vida e para a felicidade, como uma planta robusta se vira para o sol, e assimilar tudo o que encontrava pelo caminho . Que esta energia surja nos cinco ou seis meses (o tempo de r

Conheces o conto “Os Mortos” de Joyce?

É uma pena “O Hábito de Ser: Cartas de Flannery O’Connor” não estar traduzido para português. Ela também é muito boa a escrever cartas. Mais um excerto, desta vez de uma carta escrita a Ben Griffith a 6 de agosto de 1955: (...) Quando li o teu conto pensei logo em dois outros contos que acho que deves ler antes de começares a reescrever. Um é “O Lamento” de Tchékhov e o outro “Guerra” de Luigi Pirandello. (...) O teu conto, como esses dois, é essencialmente a apresentação de uma situação patética e quando apresentas uma situação patética tens de a deixar falar por si mesma. Quero dizer que deves apresentá-la e largá-la. Tens de deixar as coisas na história tomar a palavra. Como autor, não deves forçar a situação e parece-me que no teu conto tendes a fazer isso de vez em quando. (...) Deixa o velho seguir o seu caminho sem os teus comentários e deixa as coisas que ele vê criar os efeitos patéticos. Conheces o conto “Os Mortos” de Joyce? Repara como ele faz a neve funcionar  na h

Agora já nem as doenças excitam a literatura

Os contos são sempre escritos com uma certa urgência, mas no caso de Flannery O’Connor o modo vai além do que é habitual. A pressão descamba logo em carácter premente: nada pode esperar nem um segundo. Cada história conserva as necessidades imediatas da adolescência e o fervor de uma ambulância. A correria vem, não tenho dúvidas, do avanço ineludível e restritivo da doença de Flannery O’Connor. É o lúpus eritematoso que a obriga a apressar-se e também, talvez, a ser tão concentrada e desmedida em tudo. As doenças funcionam muitas vezes como um estimulante da literatura. Bom, creio que isto só era válido no passado. Agora já nem as doenças excitam a literatura.

Uma ervilha debaixo do colchão

Há uns anos tentei explicar, pelo menos a mim mesma, porque gosto tanto de contos. Tem a ver com a duração, a intensidade contida e, acima de tudo, a forma de quebrar . Continua a ser assim, não mudo uma palavra. No entanto, ao reler o segundo conto de “Demasiada felicidade”, apercebi-me de outra coisa tão evidente que se torna invisível: como nas histórias infantis, Alice Munro coloca uma ervilha debaixo do nosso colchão logo no início. Quer dizer, a narrativa cresce em direcções opostas. Vamos conhecendo as personagens e as suas circunstâncias triviais; ao mesmo tempo, um pressentimento divergente insinua-se como uma sombra e agarra-nos sem descanso. Não é a tensão característica das novelas policiais — é pior, a ferida fica por resolver.

Realidade aumentada

A primeira vez que lavei os ouvidos e entrei num café logo a seguir, ouvi um barulho intenso de talheres, vidro, vapor, o som seco do manípulo da máquina de café — é mais ou menos isso que sinto quando leio os contos de George Saunders.