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Compreendes?

Estou a contar carneiros na montra da Académica e há dois tipos a beber cerveja à porta da Mirita. Apanho a conversa a meio. Um tipo conta ao outro que foi falar com um terceiro, a propósito de qualquer assunto cujo teor não chego a perceber. «— E o que lhe disseste? — Disse assim: “Olá, boa tarde, vai para a puta que te pariu.” —... — Isto para ser educado, compreendes? — Compreendo.»

Fotografia

Saio de manhã cedo para um curto passeio antes do trabalho. Percorro a Rua de António Cândido, em direcção a Faria Guimarães. Mais ou menos a meio, ergue-se a maior magnólia do bairro. Faz parte de um jardim privado, mas a árvore já saltou o muro e parece querer lançar-se pela rua a qualquer momento. Tiro uma fotografia antes que escape.

Esta casinha

Na Travessa de S. Brás, nas traseiras do cemitério da Lapa, há uma casa com um painel de azulejos à entrada, com a seguinte inscrição: Esta casinha que é nossa foi feita p’ra nós os dois. Amigos!... Também é vossa. Descansai; segui depois. Ninguém vive ali há anos. A casa está soterrada em musgo, ervas daninhas e humidade, quase em ruínas.

Sublinhados meus

Os angustiados, os asfixiados, os exaustos, os abatidos, os sobrecarregados, os saturados, os queimados, os esgotados, os electrocutados. São eles e elas quem podem (podemos) perturbar a posição dominante do desejo hoje: o sempre-mais. Mas interromper o quê? Como esquivar-se ao imperativo do rendimento? Como escapar à figura do “maximizador”. É preciso um novo ataque à “economia libidinal” do neoliberalismo, à sua organização do desejo: um certo apagão das nossas energias desejantes. Esta “luta” não é necessariamente épica, heróica e colectiva. Não é necessário desvalorizar a deserção progressiva e os apagões pessoais. David Le Breton investigou, por exemplo, modos subtis de desacato ao imperativo do “seja você mesmo”, de estar permanentemente conectado e disponível, de estar sempre à altura. Fala do “silêncio” e do “caminhar”. Ele propõe que estes possam ser tomados como formas políticas de resistência. Como fugas activas do ruído da conexão permanente, como modos de voltar a tomar co

Obras para quê?

Vale Formoso, Antero de Quental, Largo da Lapa, Regeneração. A Utopia já reabriu, mas não há livros novos na montra. Aceno a um Herculano mascarado. Ele devolve o cumprimento. Há um vidro entre nós. Praça da República. Alguém escreveu sobre um aviso camarário de obras a frase «Obras para quê?» A interrogação, neste momento, parece ser válida para tudo: arte, literatura e construção civil. Rua do Almada, Ricardo Jorge, Largo do Mompilher. As sapatilhas estão velhas e fazem-me doer os pés. Rua da Conceição, Mártires da Liberdade. A Académica continua fechada. Praça da República, Rua da Lapa. A velha caixa de esmolas da Capela do Senhor do Olho Vivo foi assaltada. Tentaram arrancar a caixa da parede, mas as moedas não saíram do sítio. Antero de Quental, Vale Formoso. A tinta verde da porta da rua está a descascar. Há ferrugem na fechadura. Dores nas pernas e nas costas.

Ontem

Talvez tenha sido o dia mais quente do ano. Cheirava a Verão. Decidimos sair um pouco para apanhar sol e desentorpecer as pernas. Na rua, as pessoas afastavam-se umas das outras com um silêncio envergonhado, que dissimulavam atrás das máscaras. Um saco do lixo descia a Lapa aos saltos, entre duas gaivotas enlouquecidas.

Tudo a pé, naturalmente.

Certa vez, parti de Berna às duas da manhã em direcção a Thun, aonde cheguei às seis da manhã. De tarde estive no Niesen, onde devorei, regalado, um bocado de pão e uma lata de sardinhas. À noite estava de novo em Thun e à meia-noite em Berna; tudo a pé, naturalmente. Noutra ocasião, caminhei de Berna a Genebra, passei lá a noite e regressei. Um dos meus primeiros relatos de viagem foi sobre o Greifensee, publicado por Josef Viktor Widmann no Bund . Já na altura me pareceu dificílimo fazer a descrição de uma viagem. Robert Walser citado por Carl Seelig, em Caminhadas com Robert Walser . Tradução de Bernardo Ferro.