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A mostrar mensagens com a etiqueta Flannery O'Connor

Wild thing,

Paulo Nozolino, Pedro Costa e Rui Chafes no Centro Pompidou em 2022 parece o anúncio de um concerto. Precisavam de uma vocalista. Talvez a Flannery O’Connor — vestida de couro preto.
É daquelas coisas que saem sem explicação e ainda não tive tempo para analisar se é disparate ou intuição certeira (sou boa nas duas actividades): o episódio “A Friend in Deed!” do Columbo tem umas cenas que parecem saídas dos contos da Flannery O’Connor. Não se trata de semelhanças literárias, nada disso — é uma ligação visual, qualquer coisa ao nível dos figurantes e cenários. Quando Hugh Caldwell entra no bar para falar com Artie Jessup e quando Mark Halperin vai ao (falso) apartamento de Jessup esconder as jóias — nessas duas situações, reconheci os ambientes de algumas histórias de Flannery O’Connor. Como se Flannery fosse artista plástica e não escritora.

Uma coisa que acabara com os Gregos e os Romanos

A rapariga doutorara-se em Filosofia, e isso deixara Mrs. Hopewell completamente desorientada. Pode dizer-se “A minha filha é enfermeira”, ou “A minha filha é professora”, ou até “A minha filha é engenheira química”. Mas não se pode dizer “A minha filha é filósofa”. Isso era uma coisa que acabara com os Gregos e os Romanos. A gente sã do campo, de Flannery O’Connor.  Tradução de Clara Pinto Correia, edição Cavalo de Ferro.

Flannery O’Connor e as galinhas

Take one Quando tinha seis anos tive uma galinha que andava para trás e apareceu na Pathé News. Eu aparecia junto com a galinha. Estava ali apenas para ajudar a galinha mas foi o ponto alto da minha vida. Desde então tem sido tudo anti-clímax. Take two Quando tinha cinco anos, tive uma experiência que me marcou para toda a vida. A Pathé News enviou um fotógrafo de Nova Iorque a Savannah para tirar uma fotografia a uma das minhas galinhas. Essa galinha, uma Cochin Buff Bantam, distinguia-se porque conseguia andar para a frente e para trás. A sua fama espalhou-se pela imprensa, quando chamou a atenção da Pathé News suponho que já não havia mais nenhum sítio para onde ela pudesse ir — nem para a frente nem para trás. Pouco depois morreu, como agora parece apropriado. A partir desse dia com o homem da Pathé, comecei a colecionar galinhas. O que tinha sido apenas um interesse moderado tornou-se uma paixão, uma demanda. Preferia as que tinham um olho verde e outro laranja, ou com pesco...

Uma geração de frangos sem asas

As cartas mais divertidas são as que Flannery O’Connor escreveu à desconhecida “A”.* Logo na primeira carta (20 de julho de 1955), terceiro parágrafo: Para além de idiota, a crítica do New Yorker não estava assinada. É um daqueles casos em que é fácil ver que o sentido moral foi eliminado de certas faixas da população, do mesmo modo que eliminaram as asas de alguns frangos para produzir mais carne branca. É uma geração de frangos sem asas — era a isto, suponho, que Nietzsche se referia quando afirmou que Deus estava morto. ———————- * Não assim tão desconhecida. Chama-se Hazel Elizabeth "Betty" Hester . Felizmente ainda ninguém fez um filme sobre a sua vida.

Conheces o conto “Os Mortos” de Joyce?

É uma pena “O Hábito de Ser: Cartas de Flannery O’Connor” não estar traduzido para português. Ela também é muito boa a escrever cartas. Mais um excerto, desta vez de uma carta escrita a Ben Griffith a 6 de agosto de 1955: (...) Quando li o teu conto pensei logo em dois outros contos que acho que deves ler antes de começares a reescrever. Um é “O Lamento” de Tchékhov e o outro “Guerra” de Luigi Pirandello. (...) O teu conto, como esses dois, é essencialmente a apresentação de uma situação patética e quando apresentas uma situação patética tens de a deixar falar por si mesma. Quero dizer que deves apresentá-la e largá-la. Tens de deixar as coisas na história tomar a palavra. Como autor, não deves forçar a situação e parece-me que no teu conto tendes a fazer isso de vez em quando. (...) Deixa o velho seguir o seu caminho sem os teus comentários e deixa as coisas que ele vê criar os efeitos patéticos. Conheces o conto “Os Mortos” de Joyce? Repara como ele faz a neve funcionar  ...

Uma escritora intensivista

O acervo de Flannery O’Connor tem quatro manuscritos de “The geranium”, um manuscrito de “An exile in the east”, quatro manuscritos de “Getting home” (erradamente classificados como manuscritos de “Judgment day”) e dezassete manuscritos e fragmentos de “Judgment day”. O que Flannery O’Connor faz entre “The geranium” (1946) e “Judgment day” (1964) é mais ou menos o mesmo que Joaquim Manuel Magalhães fez em “Um toldo vermelho”. Flannery executa essa razia sem o dramatismo dos poetas. Apenas avança porque é necessário, urgente e não pode ser de outro modo. Avança com a suavidade de quem desbrava um caminho de silvas. Mas não são as silvas que deita fora.

Uma boa maionese é difícil de encontrar

Flannery O’ Connor era capaz de gostar do título deste artigo académico . Só do título (com a sua mania para truncar palavras, talvez até dissesse: A good mernaise is hard to find ) porque a maionese é pretexto para escrever também sobre a relação entre mãe e filha e disso ninguém gosta — que o digam as personagens dos contos. Bishop devia ter ido a Milledgeville. Levava um frasco de maionese caseira, faziam um churrasco e ia ser uma grande borga — com pavões incluídos na banda sonora.
Entretanto passou-me pela cabeça uma ligação (ainda mais) disparatada: Flannery O’Connor e os bonequinhos de South Park? Sem os vómitos, claro. Pesquisei no Google. Esta afirmação cautelosa prova que a literatura já foi toda esquadrinhada: There's some “South Park” in Flannery O'Connor, but she made fun of everything. CENA 1 — Do the handicapped go to hell? — The lame shall enter first! [into the kingdom of heaven] CENA 2 — Go back to hell where you came from, you old wart hog. ( Said Mary Grace to Mrs. Turpin ). — Yeah! Não vale a pena desenvolver mais, vou para a cama ler outra vez “Revelação” — a ver se tenho sonhos interessantes com porcos. Ou uma epifania do género.

Tenho a certeza de que os escreveu bêbado

(...) O que me leva ao assunto embaraçoso do que não li e não me influenciou. Espero que nunca ninguém me pergunte isso em público. Se o fizerem, tenciono parecer misteriosa e murmurar "Henry James Henry James" — que seria a mais completa mentira, mas não importa. Não fui influenciada pelos melhores. As únicas coisas boas que li quando era criança foram os mitos gregos e romanos que saquei de uma colecção de enciclopédias infantis chamada “O Livro do Conhecimento”. O resto era uma Lavagem com L maiúsculo. O período Lavagem foi seguido pelo período Edgar Allen Poe que durou anos e consistiu principalmente num volume chamado “Os Contos Humerísticos de E.A. Poe”. Eram extremamente humerísticos — um era sobre um jovem demasiado vaidoso para usar óculos, por causa disso casou-se, sem querer, com a sua avó; outro era sobre uma bela figura de homem que no seu quarto tirava os braços de madeira, as pernas de madeira, a peruca, os dentes postiços, a prótese fonatória, etc.; outro sob...

In the face of a purifying terror

“O Calafrio Permanente” (The Enduring Chill) parece o título de um conto de Edgar Allan Poe. Mas as semelhanças não se ficam por aí. O catolicismo de Flannery O’Connor é tremendo e prolonga-se para além do fim — como nas histórias de terror de Poe. O Espírito Santo que assusta Asbury no último parágrafo é tão terrível como a figura humana enorme e branca como a neve que encerra as “Aventuras de Arthur Gordon Pym”. Flannery O’Connor obriga a palavra “salvação” a fazer triplos mortais consecutivos. (...) It was then that he felt the beginning of a chill, a chill so peculiar, so light, that it was like a warm ripple across a deeper sea of cold. His breath came short. The fierce bird which through the years of his childhood and the days of his illness had been poised over his head, waiting mysteriously, appeared all at once to be in motion. Asbury blanched and the last film of illusion was torn as if by a whirlwind from his eyes. He saw that for the rest of his days, frail, racked, bu...

Milledgeville, Geórgia.

Flannery fez vários convites para que Elizabeth a visitasse na propriedade rural "a algumas milhas de Milledgeville". A poeta nunca foi.  Em uma carta posterior, enviada a Robert Giroux, ela lamenta não tê-la visitado, para depois confessar, entre parênteses: "Acho que eu tinha "medo" da Flannery!".

Agora já nem as doenças excitam a literatura

Os contos são sempre escritos com uma certa urgência, mas no caso de Flannery O’Connor o modo vai além do que é habitual. A pressão descamba logo em carácter premente: nada pode esperar nem um segundo. Cada história conserva as necessidades imediatas da adolescência e o fervor de uma ambulância. A correria vem, não tenho dúvidas, do avanço ineludível e restritivo da doença de Flannery O’Connor. É o lúpus eritematoso que a obriga a apressar-se e também, talvez, a ser tão concentrada e desmedida em tudo. As doenças funcionam muitas vezes como um estimulante da literatura. Bom, creio que isto só era válido no passado. Agora já nem as doenças excitam a literatura.

Mais actividades lúdicas

Sempre considerei a “escrita feminina” um conceito literário parvo e sem interesse. Mas agora que ando a reler — muito devagar, nunca mais do que um por dia — os contos tardios da Flannery O’Connor, resolvi reabilitá-lo por algum tempo. Uma técnica de provocação que aprendi ontem com Rufus Johnson.

Evolução no sentido intelectual

Wesley, o filho mais novo, tivera febre reumática aos sete anos e Mrs. May pensava que esse fora o factor determinante para a sua evolução no sentido intelectual. Greenleaf, de Flannery O’Connor. Tradução de Clara Pinto Correia. Cavalo de Ferro, novembro de 2006.

O chapéu

surge logo no segundo parágrafo e estende-se até ao nono. É verde e púrpura. Tem um aspecto desconchavado. Avança no conto como um som baixo e grave — que é o que costuma acontecer às peças de roupa quando desempenham papéis perturbantes na literatura. A mãe de Julian não vê nada de ridículo no chapéu. Pelo contrário, usar um chapéu assim — um pouco mais caro mas, por isso mesmo, distinto — e luvas é uma marcação social, diz aos outros que ela é alguém  (uma Chestny) e sabe quem é ( se tiveres consciência de quem és, podes ir seja onde for ). O chapéu é um estandarte da sua dignidade imaginária , sublinha Flannery O’Connor. O chapéu desdobra-se na missão. A frase que a empregada da loja usou para convencer a mãe de Julian a comprá-lo — com esse chapéu, não vai andar por aí igual às outras — aparece em duas conjugações quase seguidas. Apesar da tradução do Rogério Casanova me agradar mais do que a da Clara Pinto Correia, é preciso recorrer à expressão original — you won't meet...

Divertimento com chapéu verde e púrpura

Comecei com “Tudo o que sobe deve convergir”. Li o conto que dá nome ao livro, uma edição de 2006 da Cavalo de Ferro, traduzido por Clara Pinto Correia. Depois descobri a tradução, mais recente, de Rogério Casanova para a Relógio d’Água . No confronto das duas versões apercebi-me de uma frase muito discordante e fui procurar o original . A este ritmo, nem o lay off chega para me divertir a sério com a Flannery O’Connor. Ah, em “Tudo o que sobe deve convergir” o humor é o chapéu. (...) O chapéu era novo e custara sete dólares e meio. Ela não parava de dizer «Se calhar não devia ter gasto tanto dinheiro. Não, não devia. Vou devolvê‐lo amanhã. Nunca devia tê‐lo comprado.» Julian ergueu os olhos para o céu. «Não, claro que fez bem em comprá‐lo», disse. «Agora ponha‐o na cabeça e vamos embora.» Era um chapéu hediondo. A aba de veludo púrpura, dobrada para baixo de um dos lados, arrebitava do outro; o resto era verde e com o aspeto de uma almofada vazia. Decidiu que era menos cómic...

Bandeiras despregadas

Acabei de receber uma mensagem da ARS Norte a oferecer apoio psicológico por telefone, de segunda a sexta-feira, das 8:00 às 20:00. É um gesto simpático, mas em vez disso vou reler o que tiver cá em casa da Flannery O’Connor. Desta vez vou ter em atenção apenas o humor das situações. Desconfio que vou rir a bandeiras despregadas.

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