Dois euros, meio quilo, na frutaria da minha rua. Na verdade, o preço é 1,99 euros, meio quilo. O cêntimo de diferença é o intervalo onde está a ficção. O desvio literário, o clinâmen. A diferença entre o meio quilo e o quilo já é outra coisa — pura e dura economia.
Na aldeia onde nasceu, o meu pai tem ainda três cerejeiras. Agora que está velho, cabe-me a mim colher as cerejas. Encosto a escada ao tronco, subo e instalo-me entre os ramos. A cerejeira não me reconhece. Arranha-me os braços como um gato enfurecido.
Chegaram as cerejas. Na frutaria da minha rua, havia ontem três ou quatro caixas. O preço ainda é proibitivo, mas é o mais próximo que se pode desejar de um verdadeiro regresso à normalidade.
A funcionária do laboratório de análises clínicas comenta, para me acalmar, que tenho «boas veias para a colheita». Num instante, e com agrária eficiência, a funcionária colhe dois frasquinhos de rubra cereja.