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흰개미

A Térmita é a livraria mais cinematográfica que conheço. Não é só uma questão de livros, aquele sítio mantém intacto o passar do tempo — basta olhar para os tectos, para as paredes, para os caixilhos das portas a descascar. Entra-se por um corredor escuro e lá dentro o espaço tem uma forma estreita e alongada que lhe dá uma atmosfera de coisa proibida (uma espécie de Budapeste para intelectuais solitários, diz a caixa de luz e o holofote vermelho sobre a porta ou as manchas de humidade). E por causa das ligações ao Candelabro, há uma pequena cozinha bem visível onde às vezes se trabalha e uma garrafeira escondida.  Tudo pode acontecer ali; principalmente um filme de Hong Sang-Soo.

Lá em Cima dá trabalho a analisar e isso tem a ver, creio, com o método que Hong Sang-soo usa desta vez.  O filme parece um daqueles discos em vinil que tem mais do que uma estria num lado : o que se ouve depende do sítio onde pousamos a agulha.

Ainda a propósito dos filmes mais recentes de Hong Sang-soo

Nos filmes mais recentes de Hong Sang-soo, Lá em Cima e A Romancista e o seu Filme , há várias sequências em que os maços de tabaco foram substituídos por cigarros electrónicos. E quase no final de A Romancista… , a personagem principal tem de fumar às escondidas, em segundo plano, e de costas para a câmara, porque a cena passa-se num local «livre de fumo». Outra personagem comenta algo até aqui impensável num filme de Hong Sang-soo: «Ela fuma muito.» Claro que nenhuma das situações representa uma concessão do realizador ao «ar dos tempos». O que acontece é o contrário. O cigarro electrónico é um objecto obviamente postiço nestes filmes. E a personagem que «fuma muito», que se afasta e vira as costas ao centro da cena, é uma justa alegoria da obra de Hong Sang-soo.

Uma cena de «A romancista e o seu filme»

Kim Junhee e Kilsoo estão a comer num restaurante sentadas junto a uma janela. Passa uma miúda na rua e fica a olhar, intrigada, vai embora, regressa. Kilsoo sai para conversar com ela. Kim Junhee aproveita  para tirar um bocado de comida da tigela de Kilsoo.  Se gosto tanto desta cena é porque acho que nada daquilo estava previsto: a miúda passou por ali por acaso e foi atraída pelas mulheres e pela câmara; Kim Min-he decidiu ir falar com ela e contar-lhe o que estavam a fazer para a convencer a sair do centro do enquadramento; e Lee Hye-yeong não resistiu a provar o bibimbap da Kim Min-he sem ela ver.  Este encadeado de acções não foi escrito por Hong Sang-soo. As três implicadas agiram por conta própria. Não foi preciso insuflar nada para tudo ter, não um significado, mas uma presença real . O cinema de Hong Sang-soo é cada vez mais isto, ah,  o vento nas árvores .

Mesa de São João

Sem saber, herdei da minha avó um jeito especial para cozinhar. Hoje resolvi homenagear a aldeia de Moreanes (e a Adriana) ao almoço: costeletas de borrego com favas e hortelã para acompanhar vinho da casta baga. Agora vinha mesmo a calhar mais um filme do Hong Sang-soo no Trindade.  Como não há, vou ter de o imaginar.

Uma outra beleza

Sangok conta ao realizador que pensou matar-se quando tinha 17 anos e só não o fez porque viu clara e inesperadamente a beleza dos rostos das pessoas na praça junto à estação de Seul. — É uma definição perfeita de epifania. No decorrer do filme há uma interpretação discreta dessa revelação quando a mulher que tira a fotografia reconhece Sangok e fica admirada com a sua beleza intacta. Também ela é tocada directamente no coração por qualquer coisa. A cena entre a miúda e a amiga da mãe que a acolhe na Alemanha em  Apresentação — em termos narrativos, muito diferente de Perante o teu rosto   — é semelhante. Descobrir a beleza dos rostos dos outros, e assim atingir um pouco a essência da vida, é um grande feito. Mas, para que tal aconteça, é necessário engendrar um novo conceito de beleza não subjugado às convenções vigentes e aborrecidas. É preciso pôr em prática uma pequena revolução (também no sentido: marcha circular de um corpo celeste no espaço, em torno de um outro ). Para nossa

Beber à morte

Estão sentados num café fechado ao público*. Sangok diz ao realizador que os seus filmes parecem contos. Está a falar com Jaewon e também com Hong Sang-Soo. Aceito e gosto desta interpretação: a mancha de molho na blusa, por exemplo, tem a economia, o peso e a ambiguidade que existem nos melhores contos e nos fazem tremer — aquilo a que podemos chamar augúrios narrativos. Mas a analogia que me parece mais justa é menos conceptual e mais orgânica; relaciona-se com a luz e as cores fortes do filme, com os movimentos livres das personagens (cenografia e coreografia) e apreendi-a há três anos num romance de Iris Murdoch (para continuar com os pés enterrados na literatura). Assim, roubando as palavras finais de uma das personagens d’ O Sino , posso dizer que em Perante o teu rosto vi Sangok virar-se toda para a vida e para a felicidade, como uma planta robusta se vira para o sol, e assimilar tudo o que encontrava pelo caminho . Que esta energia surja nos cinco ou seis meses (o tempo de r

Uma vida sem narrativa

Os filmes de Hong Song-soo são, muitas vezes, sequências de fragmentos desgarrados no tempo e com poucas explicações — e está bem assim, não precisamos de nos preocupar com o desenvolvimento da história; o que for, será.  Em  Apresentação este método é tão intenso que parece que estamos a ver um exercício de filmagem ou até mesmo restos, filme perdido. A representação excessiva do velho actor com alguns fotogramas desfocados; os enquadramentos dos actores quase sempre de perfil ou mostrando os pés e as pernas, as calças curtas; os abraços tímidos mas prolongados; o rapaz a entrar na água fria — tudo isso ajuda a reforçar essa ideia de improvisos desajeitados, material que seria deitado ao lixo da mesa de montagem. Mas a justificação maior acontece do lado de fora; creio que é por esse carácter de película sem interesse nem significado se assemelhar tanto à nossa vida que aderimos tão profundamente aos filmes de Hong Song-soo. A precariedade na tela é uma interpretação da nossa precari

Parece um conto

Por circunstâncias cinéfilas, admito, mas diversas, fui apanhada a ver Perante o teu rosto com duas pequenas garrafas de saké na carteira. Se fosse soju (neste caso, e apenas como excepção, também servia licor chinês), passava logo ao nível de especialista avançada em Hong Sang-soo. Saké, creio, só permite equivalência a iniciante. É onde estou sempre.

Condições climatéricas

Comprei outra vez o Tripass por causa do Hong Sang-soo. Há dois dias, quando fui ver Apresentação , estava a cair morrinha. Hoje faz um calor de verão que me parece favorável às cores de Perante o teu rosto . Na verdade até podia nevar; todas as condições climatéricas — se nos apercebermos delas, se as interiorizarmos — combinam bem com estes filmes. À parte a questão do tempo, não sei explicar o que me atrai tanto em Hong Sang-soo, ainda não pensei bem nisso e se calhar nem quero, não vá o pensamento estragar o enlevo. Gostava de passar um mês a ver todos os filmes dele, um por dia — mais ou menos o equivalente a férias (ou tratamento?) numa estância de verão abandonada (fora da época alta e fora do turismo). Ah.

Mesa

Há um protocolo nos filmes de Hong Sang-soo: os personagens devem passar longas sequências à mesa, entre comida, muita bebida e pausas para cigarros. É assim em todos os filmes. A mesa é o lugar das histórias que valem a pena ser contadas. Dessas e talvez mais ainda das que preferimos calar. É o lugar da verdade, quer dizer, o ponto geodésico entre a realidade e a ficção. Enquanto escrevo isto, recebo a mensagem de um amigo: «Estive a ver o Resende a dizer poemas. Vou escrever sobre isso. Nem sei dizer o que sinto ao vê-lo no Facebook e no Youtube. Não é saudade, é mais uma coisa do tipo puta que pariu a vida e quem lá ande . Bom, vou dormir.» O Manuel Resende foi o personagem mais completo de Hong Sang-soo. Não, é ao contrário. O Manuel Resende inventou o Hong Sang-soo.

Virar a página

O Presidente da República dirigiu-se ontem ao país para desejar um bom ano. «Este 2022 tem de ser o ano de virar a página», disse. E ainda: das eleições de 30 de Janeiro, deve sair um governo «que possa refazer esperanças ou confianças perdidas ou enfraquecidas, e garantir previsibilidade para as pessoas e os seus projectos de vida». Ocorreu-me, a propósito, a primeira cena do filme de Hong Sang-soo, Dia e Noite . O pintor coreano («pintor de nuvens») acaba de aterrar em Paris onde espera reordenar a vida e, à saída do aeroporto, é abordado por um estranho personagem que lhe atira, em jeito de aviso: «Tenha cuidado, tenha muito cuidado por cá.» São as suas únicas palavras. Sem mais explicações. Depois desaparece.

Obras-primas

Félix Pérez escreve sobre os filmes de Hong Sang-soo: Filme após filme, Hong Sang-soo oferece-nos um assombro após outro. É difícil chamar-lhes obras-primas, não porque não o sejam ou porque sejam menores do que outras consideradas como tal, mas porque essa terminologia, de certa maneira, adultera-as, ofende-as: não pretendem ser obras-primas, não gritam por atenção, não exigem que se reconheça a sua importância. Podíamos usar as mesmas palavras para descrever os livros de Robert Walser.

Isto é um elogio

A mulher que fugiu é um bocado diferente dos outros filmes que vi de Hong Sang-soo: parece mais música ambiente, ou melhor musique d'ameublement,  conforme Satie a definiu .  Paradoxalmente, funciona quando estamos em silêncio numa sala escura — e os efeitos prolongam-se muito para além da sessão. — Gostaste do filme?  — Sim, é calmo. 

Cinefilia

Arroz de pato do Manuel Alves, salada, dois copos de Syrah do Tiago Cabaço, uma tangerina, café.  Acho que estou pronta para o filme do Hong Sang-soo.  Daqui até ao Trindade são dois quilómetros e meio.  Vou pelo sol.

O ano seguinte

A notícia mais auspiciosa sobre 2021 é a estreia de alguns filmes de Hong Sang-Soo .  Com sorte, vai ser um ano em que não se passa quase nada .

Apanhar a fresca

31 de Dezembro

Último dia do ano. Ocorrem-me duas imagens de Gangbyeon hotel . A primeira é a da queimadura na mão esquerda da personagem feminina, Ah-reum. E a segunda é a da enorme planta ornamental no bar do hotel que, nas palavras do velho poeta, Yeong-hwan, precisa de ser regada.

A vida é e não é decepcionante

Não se passa quase nada em “O dia seguinte” de Hong Sang Soo. Em termos de respiração é o equivalente a alguém que adormeceu a contar carneiros e sonha ainda com os carneiros passando um a um sobre um prado acinzentado. Não há perturbações de cores nem tramas complicadas, a própria câmara coloca-se num bom sítio e aí fica, curiosa mas bastante quieta — um pouco como um observador casual numa esplanada. O esquema tem qualquer coisa de teatral e mal escrevo isto penso também em Ingmar Bergman perito em palcos e crises conjugais — neste filme, porém, tudo é diferente. Por um lado, o tempo ( não é uma coisa real ). À ironia do título (o dia a seguir a quê?), Hong Sang Soo junta uma montagem à margem da linearidade e intenções das personagens. Graças a esta estratégia e também a uma redução dos espaços de filmagens, a vida de Bongwan surge muito condensada, como num laboratório. Quanto à história. Há um homem e três mulheres: a mulher com quem é casado, a amante que trabalhava com ele