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Beber à morte

Estão sentados num café fechado ao público*. Sangok diz ao realizador que os seus filmes parecem contos. Está a falar com Jaewon e também com Hong Sang-Soo. Aceito e gosto desta interpretação: a mancha de molho na blusa, por exemplo, tem a economia, o peso e a ambiguidade que existem nos melhores contos e nos fazem tremer — aquilo a que podemos chamar augúrios narrativos. Mas a analogia que me parece mais justa é menos conceptual e mais orgânica; relaciona-se com a luz e as cores fortes do filme, com os movimentos livres das personagens (cenografia e coreografia) e apreendi-a há três anos num romance de Iris Murdoch (para continuar com os pés enterrados na literatura). Assim, roubando as palavras finais de uma das personagens d’ O Sino , posso dizer que em Perante o teu rosto vi Sangok virar-se toda para a vida e para a felicidade, como uma planta robusta se vira para o sol, e assimilar tudo o que encontrava pelo caminho . Que esta energia surja nos cinco ou seis meses (o tempo de r

Sensorium

A aula sobre Hamlet é um amontoado de ideias brilhantes. Bradley deixa-se levar por uma corrente que não sabemos nunca se é um delírio intelectual ou um sentimento ou tudo ao mesmo tempo (Iris Murdoch é suficientemente generosa para nos permitir a ambiguidade como um deleite). Mas uma coisa percebemos sem sombra de dúvida: as palavras são um dispositivo sensorial poderoso; entram no nosso corpo como uma espada.

O privilégio de compreender a vulgaridade de Shakespeare

Há várias referências a Hamlet e Shakespeare n’ O Príncipe Negro , as que me interessam mais são estas quatro:  Na página 141 (edição da Relógio d’Água), Julian e Bradley encontram-se por acaso na rua e acabam por falar outra vez sobre Hamlet. Digamos que é um divertimento provocador ao ar livre; uma ocasião propícia aos simbolismos (antecede a oferta das botas roxas a Julian); aquilo que mais tarde, no relatório policial, transforma-se num momento crucial para a acção, ou seja, a desgraça. A aula, propriamente dita, começa na página 170 e já dispõe de cadeiras, mesa e livros. Aqui Bradley supera-se (só não sei se é na própria altura em que tudo acontece ou depois quando descreve a situação):  «Porque Shakespeare conseguiu, através da pura meditação sobre o tema da sua própria identidade, criar uma nova linguagem, uma retórica especial da consciência…» (…) «O ser de Hamlet é feito de palavras, tal como o de Shakespeare.»  « Palavras, palavras, palavras .»  «Há alguma obra da história d

Jejum e paixão

Pelos sintomas, não estou certa se Bradley está apaixonado por Julian ou apenas alterado por não comer nada durante tanto tempo. Este jejum espontâneo — que Iris Murdoch faz questão de realçar — aproxima-o dos místicos e das suas paixões exacerbadas.  Murdoch não dá ponto sem nó — deve ser por isso que gosto tanto dela.

Oh, estou tão contente com as botas.

Julian e Bradley já começaram a falar de Hamlet, mas não tenho coragem de interromper a leitura d’ O Príncipe Negro e passar a Shakespeare para um exercício diletante de montagem paralela; é difícil resistir à escrita sedutora de Iris Murdoch (e à tradução exemplar de José Miguel Silva). Para mais, acabei de chegar à cena das botas roxas. Se fosse eu a decidir, era as botas que punha na capa — segundo o meu critério sofisticado , só faltava isto para considerar Murdoch uma verdadeira filósofa.

Jejum intermitente

Depois d’ A Cabeça Decepada , comecei logo a ler O Príncipe Negro . Mas o excesso de Iris Murdoch pode causar danos (já tinha sido avisada), por isso pousei o livro e fui pesquisar capas , para desanuviar: além das banais, a da Warner é horrível e cómica; a da Lumen é um bocado pretensiosa (não só esta, mas todas as que têm rostos de mulheres ), pelo contrário, uma versão antiga da Penguin com a rapariga azul e o selo vermelho é perturbadora e só por isso ganha uns pontos; a chinesa e a da Vintage Classics são bonitas (a chinesa também é delicada); nenhuma tem a Post Office Tower (quando os desenhadores gráficos não lêem os livros na íntegra, passam ao lado das potencialidades freudianas).  Entretanto o carteiro trouxe o outro príncipe, Hamlet — ficam os dois juntos e em repouso mais um tempo a ver o que acontece. Street level view of the newly completed Post Office Tower, July 1965 (CM 22/195)

Um terrível objecto de fascínio

Uma Cabeça Decepada é muito divertido, no sentido mais filosófico de diversão. Há sete personagens fechadas numa teia que vão trocando de posição: ora são moscas, ora são aranhas. Discutem os valores morais e com quem vão para a cama — sempre num inglês extremamente correcto. Convergem e divergem. Bebem muito. Podia ser uma peça de teatro ou até uma ópera. Em vez de batuta, Iris Murdoch usa uma espada de samurai (fica-lhe bem). Também dá para fazer muitos sublinhados; frases que podem ser gravadas na pedra e conceitos para guardar no bolso como o da cabeça decepada e o amor sem trajecto (os dois definidos por Honor Klein — que nome formidável! — na página 198). Foi uma semana de férias maravilhosa.

Oh, demon alcohol!

Glasses aparece 25 vezes; bottle , 12; drink , 20; drank , 8; drunk , 14; wine , 12; martini , 4; whisky , 17; champagne , 6; gin , 4; brandy , 2. O teor de Uma Cabeça Decepada é, antes de mais, alcoólico.

Teletrabalho

Investi o dinheiro do passe em dois livros da Iris Murdoch. Escolhi-os pelos títulos e pelos tradutores. Sinto-me como aqueles tipos que sabem ganhar milhões na Bolsa.

And that's my weakness now!

— Deixe a janela aberta, por favor. O ar morno do início do Verão invadiu o quarto. O cheiro a ruas poeirentas, o cheiro particular do Tâmisa, um cheiro fresco a algo putrefacto e fermentado, misturava-se com um vago aroma a flores.  O último capítulo é tremendo. Passa-se no quarto de Bruno. É só ele e Diana. Falam um com o outro, pouco. Falam mais com os pensamentos e o passado. Choram (por distracção). Há uma cena de morte (mosca) e libertação (aranha). O roupão de Bruno, pendurado na porta como a chave de um enigma. Bruno está a morrer. Diana é uma mulher diferente. No fim, as notas de tradução (gentileza de Vasco Gato) parecem o genérico de um filme, quando já toda a gente saiu da sala com pressa (de quê?) e ficamos sozinhos enquanto os nomes passam na tela escura; ouve-se uma canção e não conseguimos, ou não queremos, sair da história. Do sonho. ( A realidade é demasiado difícil. )

A vida é terrível, mas muito divertida.

Acontece quando Lisa se encontra com Bruno; acho que é nessa altura que Iris Murdoch resolve agitar as coisas. Só nos apercebemos disso indirectamente e um pouco mais tarde porque na verdade não vemos o que se passa com os nossos olhos e o caso criado por Iris Murdoch é de “ver para crer”.  Danby, que presenciou esse encontro entre Lisa e Bruno, é o primeiro a ver outra Lisa e fica tão transtornado que a procura, aborda-a na rua, puxa-a para o lado (nota etimológica: seduzir vem do latim seducere que quer dizer "levar para o lado") e depois, já dentro do cemitério, diz que a ama, que viu e acredita. Mais tarde escreve numa carta: É uma coisa muito diferente dos afectos corriqueiros e insignificantes e da simples vontade de ir para a cama com alguém. Sinto neste caso uma espécie de destino . É uma paixão desse tipo: exaltada, plena, orgulhosa. Parece que Danby está a entrar para uma ordem religiosa, que compreendeu o mistério do universo. Ora bem, esse encontro de Danby com

Uma rapariga bastante literária

Lisa, a irmã mais nova de Diana, iniciou a sua vida de forma bastante diferente. Licenciou-se com distinção em Estudos Clássicos em Oxford. Foi dar aulas para uma escola de Yorkshire e entrou para o Partido Comunista. Diana, que gostava muito da irmã, perdeu o contacto com ela durante uns tempos. Lisa viria ao Sul por ocasião do casamento de Diana e conheceria Miles. Depois, desapareceu novamente e, quando voltaram a ter notícias dela, tornara-se católica e entrara para a ordem das Clarissas. “Tenho a certeza de que foi o exemplo da fundadora que a atraiu”, disse Diana a Miles. “Sempre foi uma rapariga bastante literária.” O Sonho de Bruno, de Iris Murdoch. Tradução de Vasco Gato para a Relógio d’ Água. Página 61.

Maman

Confundir Deus com uma aranha ou vice-versa — acho que já consigo fazer uma lista de personagens que passaram por isso. Mas não sei como classificar o fenómeno: êxtase religioso ou sintoma psicanalítico? Ou um e outro são a mesma coisa? 

Pais e filhos

Ler é uma forma de escapar às coisas reais sem perder o pé (digo ao pássaro ). Fugimos do que nos rodeia e ameaça para uma realidade eterna que até se pode confundir com papel de parede (apesar dos arabescos e criaturas desenhadas não pararem de mexer).  Depois d’ As Avenidas Periféricas ,  O Sonho de Bruno .  No livro de Modiano, um filho procura um pai (não é esse o punctum nevrálgico); Iris Murdoch pega num velho e põe-no à procura do filho. Bruno é um tipo que gosta de aranhas. Estou bem entregue.

Influenciadores do século XX

Como uma planta robusta se vira para o sol

Lembrava-me do sentimento de quando, há alguns anos, li “O Mar, o mar”, ou ainda mais afastado com “Henry e Cato”; quer dizer, sabia bem o que me esperava ao ler “O sino”: exaltação. E não basta escolher e seguir um dos sentidos da palavra; é um e depois afinal é outro e ficamos nessa indecisão, nunca estamos seguros e isso já faz parte da experiência, do distúrbio. Através de todo o livro parece que se ouve uma música ( de onde vem esta música? do ar ou da terra? ) e ao mesmo tempo: há uma tempestade com chuva e trovões (não estou certa dos trovões), uma morte, um desatino mental, um sino que é retirado dum lago e um sino que cai num lago, o próprio lago cheio de zonas obscuras, três sermões divergentes, simetrias feitas e desfeitas a alta velocidade, acidentes, um cão chamado Murphy, as habituais dificuldades em lidar com o amor e outras mais inconfessáveis — e é tudo tão forte que está para além do medo. Porque Iris Murdoch transforma o que é terrível numa coisa imensamente viva e

Cabras, bois e porcos

— Quer-me parecer — disse ele — que a senhora Greenfield é aquilo a que popularmente se chama uma cabra. Tenho muita pena de te dizer isto, mas é preciso que nos habituemos a chamar os bois pelos nomes. Só podem resultar sarilhos intermináveis se não o fizermos. — Tu dizes que não ouviste barulho nenhum durante a noite? — perguntou Michael. — Absolutamente nada. Mas ultimamente tenho andado tão cansado que durmo como um porco. Nem a trombeta do Juízo Final me acordaria; teriam de mandar cá abaixo um mensageiro especial. O Sino, Iris Murdoch, Relógio d’Água, julho de 2016, páginas 229 e 230

Real e perfeito

Os quadros comoveram sempre Dora. Mas hoje a comoção que sentia era de natureza diferente. Ficara maravilhada, e com uma espécie de gratidão, pelo facto de continuarem ali, e o coração enchia-se de amor pelos quadros: pela sua autoridade, pela sua maravilhosa generosidade, pelo seu esplendor. Ocorreu-lhe então que aqui estava algo de real e algo de perfeito. Onde ouvira ela dizer qualquer coisa acerca de a perfeição e a realidade coexistirem no mesmo lugar? O Sino, Iris Murdoch, Relógio d’Água, julho de 2016, página 190.

Literatura pesada

Depois de alguns desencontros, consegui trazer “O Sino”, de Iris Murdoch para casa. A última pessoa que requisitou o livro na biblioteca devolveu-o antes do prazo, creio que não o leu até ao fim. Compreendo a desistência; os romances de Iris Murdoch são tremendamente maciços. Observar a pequena comunidade laica anglicana de Imber Court ao microscópio pode revelar-se um exercicio demasiado pesado. Mas é isso que me atrai na escrita de Murdoch: a densidade, os tormentos morais das personagens — ah, como elas sofrem e como, apesar de tudo isto, talvez até por causa de tudo isto , é bom viver.