Devia ter 3 ou 4 anos. Vivíamos com os avós maternos. No Natal, o meu avô deu-me cinquenta escudos; ao meu irmão deu cem. Achei a diferença injusta e devolvi-lhe o dinheiro. Foi o meu primeiro acto político.
Já tenho uma fotografia oficial. É burocrática e até um bocado abstracta. Serve até morrer. Copiei o método de Thomas Pynchon. Também é para isso que a literatura e os escritores servem, para nos ajudar a lidar com os desafios sociais.
Às vezes tenho a ilusão tão nítida que sou iraniana, japonesa, turca, romena, argentina, russa, paquistanesa, ucraniana, angolana, finlandesa, coreana, brasileira, nepalesa,…
Se a PSP ou a GNR de Santarém abrirem uma vaga para redactora de acidentes , concorro para o lugar. Tenho alguma prática na descrição técnica de desastres.
Vim a pé desde a estação da Senhora da Hora até Matosinhos Sul. São 3,7 km, mas precisava de andar muito mais. Andar* é a minha forma de ser transcendente. * Ou traduzir Cioran, mas traduzir Cioran equivale a uma caminhada de vinte, trinta, cinquenta ou mais quilómetros.
Os últimos tempos têm sido muito proveitosos para o meu curriculum de vão de escada . Depois de ter sido trocada por uma musicóloga mais encartada para um distinto evento cultural, consegui introduzir a palavra «rabanete» nas conversas eruditas da Antena 2. (Claro que estas façanhas só foram possíveis graças à intervenção de altos patronos.) Por este andar ainda acabo por atingir o meu grande objectivo: entrar num filme de Rivette! Um musical é que era, já tenho o avental posto...
Os protocolos oficiais aborrecem-me, mas gosto de criar pequenos protocolos pessoais que passam despercebidos. Por isso e apesar de não estar frio, vou levar o meu cachecol vermelho para a sessão de Kommunisten . É um gesto mais ou menos entre o cepticismo de Godard e John Wayne num filme do Ford. Cada um segue os modelos que pode.
Pareço as testemunhas de Jeová da rua a tentar convencer os fiéis a irem à sessão Da Nuvem à Resistência . Até já lhes passo papeizinhos com a palavra do senhor para a mão.
Quando começo a escrever sobre filmes, pareço polícia ou detective. Desconfio de tudo (eu incluída, pois claro); tento desvendar um crime ou, pelo menos, o mistério.
Consulta de rotina. A médica pergunta como me sinto. Respondo com frases banais, omito o diagnóstico mais justo: preciso de ver um filme de Rivette. (Não, isso não chega, preciso de estar dentro de um filme de Rivette.)
Entre outras coisas, não estar nas redes sociais e ter um telemóvel de vinte euros descreve-me como uma pessoa antiquada — o que não é completamente errado. Aos poucos, essa falha comunicacional começa também a qualificar-me como pessoa suspeita — talvez também não seja completamente errado, mas prefiro a palavra “duvidosa”.