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Selfie XXI

Devia ter 3 ou 4 anos. Vivíamos com os avós maternos. No Natal, o meu avô deu-me cinquenta escudos; ao meu irmão deu cem. Achei a diferença injusta e devolvi-lhe o dinheiro. Foi o meu primeiro acto político.

Selfie XX

Já tenho uma fotografia oficial. É burocrática e até um bocado abstracta. Serve até morrer. Copiei o método de Thomas Pynchon. Também é para isso que a literatura e os escritores servem, para nos ajudar a lidar com os desafios sociais.

Selfie XIX

Às vezes tenho a ilusão tão nítida que sou iraniana, japonesa, turca, romena, argentina, russa, paquistanesa, ucraniana, angolana, finlandesa, coreana, brasileira, nepalesa,…

Selfie XVI

Vim a pé desde a estação da Senhora da Hora até Matosinhos Sul. São 3,7 km, mas precisava de andar muito mais. Andar* é a minha forma de ser transcendente. * Ou traduzir Cioran, mas traduzir Cioran equivale a uma caminhada de vinte, trinta, cinquenta ou mais quilómetros.

Selfie XV (coentros e rabanetes)

Os últimos tempos têm sido muito proveitosos para o meu curriculum de vão de escada .  Depois de ter sido trocada por uma musicóloga mais encartada para um distinto evento cultural, consegui introduzir a palavra «rabanete» nas conversas eruditas da Antena 2. (Claro que estas façanhas só foram possíveis graças à intervenção de altos patronos.) Por este andar ainda acabo por atingir o meu grande objectivo: entrar num filme de Rivette! Um musical é que era, já tenho o avental posto...

Selfie XIV

Os protocolos oficiais aborrecem-me, mas gosto de criar pequenos protocolos pessoais que passam despercebidos. Por isso e apesar de não estar frio, vou levar o meu cachecol vermelho para a sessão de Kommunisten . É um gesto mais ou menos entre o cepticismo de Godard e John Wayne num filme do Ford. Cada um segue os modelos que pode.

Selfie XII

Pareço as testemunhas de Jeová da rua a tentar convencer os fiéis a irem à sessão Da Nuvem à Resistência . Até já lhes passo papeizinhos com a palavra do senhor para a mão. 

Selfie X

Quando começo a escrever sobre filmes, pareço polícia ou detective. Desconfio de tudo (eu incluída, pois claro); tento desvendar um crime ou, pelo menos, o mistério.

Selfie VIII

Consulta de rotina. A médica pergunta como me sinto. Respondo com frases banais, omito o diagnóstico mais justo: preciso de ver um filme de Rivette. (Não, isso não chega, preciso de estar dentro de um filme de Rivette.)

Selfie VII

Eu a corrigir as traduções de Cioran (uma e outra vez).

Aquela que duvida (selfie V)

Entre outras coisas, não estar nas redes sociais e ter um telemóvel de vinte euros descreve-me como uma pessoa antiquada — o que não é completamente errado. Aos poucos, essa falha comunicacional começa também a qualificar-me como pessoa suspeita — talvez também não seja completamente errado, mas prefiro a palavra “duvidosa”.

Selfie II

Quando renovei o cartão de cidadão, a fotografia (que já era má) transformou-se num borrão negro — assusto-me sempre que a vejo. Pelo contrário, a fotografia da carta de condução é muito divertida, pareço alguém (distante) que já fez parte de uma banda (punk progressista?) e agora come cenouras. Nunca pensei que o sistema burocrático do estado pudesse alcançar revelações deste tipo.