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A mostrar mensagens com a etiqueta Pandemia

Isolamento obrigatório

Sexta-feira. Passaram sete dias desde os primeiros sintomas. Hoje termina o meu período de isolamento. Dois anos de teletrabalho, dois confinamentos gerais e sete dias de isolamento profilático. Estou exausto. Os nervos doentes. O pó sobre a mesa é uma afronta mortal que o mundo me faz. A mancha de humidade na casa de banho é um insulto . A fenda minúscula no tecto do quarto um capricho truculento que a natureza usa para me atormentar. Tento romper o isolamento com livros, sacudir o ar envenenado de casa com revistas atrasadas. Depois do trabalho, leio, leio, leio. Mas não consigo reter uma palavra. Não compreendo nada. Neblina, fumo. Está tudo em ponto morto. Preciso de caminhar. Preciso urgentemente de me servir dos pés para andar. A minha seita é a dos fanáticos de Walser, não a dos fiéis de Proust.

Mais um Godot

Em vários momentos do Manual de Leitura * dedicado à nova encenação de À Espera de Godot , de Gábor Tompa, se sugere que a pandemia lançou uma nova luz sobre as peças de Samuel Beckett. É como se a insegurança e a solidão dos confinamentos nos tivessem empurrado para dentro de uma peça viva de Beckett. Percebo e concordo. Mas a verdade é que as peças de Beckett, e em especial  Godot , vão mais longe e mais fundo, muito para além de uma catástrofe circunstancial. Funcionam da mesma maneira que os grandes textos religiosos, as peças dos gregos ou de Shakespeare: são o nosso espelho de quarto. Mostram-nos como somos, antes de nos vestirmos, lavarmos, pentearmos. Reflectem a nossa catástrofe permanente. O que Beckett traz para o palco é, mais uma vez, o reconhecimento de que o riso é um meio de salvação. A vida são dois dias, como em Godot , e rir do nosso destino absurdo é a maneira de o suportar, de adiar mais um pouco a morte. * Não me canso de admirar estes maravilhosos manuais do Teat

Nortada

O Governo decretou a «libertação total do país», a partir de 1 de Agosto. Os jornais falam em «caminho da libertação», «plano de libertação», «libertação da sociedade e da economia». Com um pouco de imaginação, até conseguimos ouvir os ventos da Normandia a soprar nas praias da Foz.

Sala de espera

Segunda dose da vacina. Enquanto aguardo a minha vez, ocorre-me que a sala de espera é uma metáfora possível destes quinze ou dezasseis meses (já perdi a conta) de pandemia. O nosso pequeno mundo — a casa, as ruas, a cidade — converteu-se numa sala de espera. Mas temos estado verdadeiramente à espera de quê? O que há do outro lado da porta? Queremos mesmo saber?

Quase meio da semana

Repetição, repetição, eterna repetição dos dias. A corrente mansa dos mortos, infectados, vacinados, internados e em cuidados intensivos. Um rio quase sem ondas, sem profundidade, feito de gotas de água todas iguais. Quem poderá desvendar o seu segredo? Haverá um segredo?

Hábito

Ao fim de um ano, passado o primeiro terror, instalou-se uma nova calma. Uma calma que tem menos que ver com esperança e mais com impotência. Pouco a pouco, a cidade retoma a vida, com ou sem restrições. As pessoas formigam pelas ruas e praças, ocupando-se de mil e uma insignificâncias. A vida não depende dos números, mas do hábito.

Devir-negro do mundo

O que há de novo neste momento é o que Achille Mbembe chamou de devir-negro do mundo , isto é, quando a condição da população negra se torna padrão de vida e se generaliza por toda a sociedade. Não à toa as polícias estão encontrando tanta dificuldade em desfazer aglomerações, afinal, não se chega em toda festa da maneira que se chega num baile funk, batendo, esculachando, prendendo e até matando, como nos lembra o massacre de Paraisópolis no já longínquo 2019. Aline Passos.

Páginas em branco

Um pouco por toda a cidade, multiplicam-se os suportes publicitários vazios. Altos tronos sem os seus tristes soberanos. Despidos da tralha publicitária, sem o brilho e a glória das novidades e promoções, lembram telas de cinema ou enormes páginas em branco. Agora, sim, vale a pena olhar para eles.

Avisos

Mais um longo e cinzento dia de Janeiro. A chuva parece mais ameaçadora do que nunca. Não é só a chuva e os contínuos avisos meteorológicos. Há mais qualquer coisa. Se acreditasse em Deus, talvez pensasse que era chegado o momento em que as forças sobrenaturais irrompem nítida e cruelmente pela realidade dentro. Como se existisse uma ligação misteriosa entre o estado do tempo e as notícias terríveis dos últimos dias. Lembra a atmosfera que Joseph Roth recria na Marcha de Radetzky . As sombras que antecedem a Primeira Guerra.

História alternativa

O momento presente é tão problemático para a ficção contemporânea como para a ficção científica, se não mais. Um romance pode demorar anos a ser escrito e um autor que trabalhe num romance que decorra no presente tem de assumir que o mundo não sofrerá alterações drásticas durante esses anos. Romances que estejam a ser escritos neste momento correm o risco de parecerem datados quando forem publicados, que é uma coisa com a qual os seus autores provavelmente não estão familiarizados. Creio que tanto os escritores como os leitores deveriam considerar isto como um lembrete de que a ficção não precisa de se situar na realidade actual para ser relevante para as nossas vidas. (...) Há imensa ficção científica que decorre no passado e muitas vezes coincide com o género denominado "história alternativa", que explora outras trajectórias que a história poderia ter tomado. Isto relaciona-se com o que afirmei acima: uma série de romances contemporâneos tornaram-se agora ficção de históri