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Uma casa em ruínas

Hamlet percorre a peça de Shakespeare como o visitante de uma grande casa em ruínas. Concentra-se, às vezes, num velho quadro. Outras, distrai-se com um pormenor, um livro empoeirado, uma faca. Perde-se entre corredores e quartos. Esquece irremediavelmente o caminho da saída .

A coisa de que falais

Hamlet começa de noite. O fantasma do rei aparece, exigindo vingança. A aparição repete-se, uma e outra vez. «A coisa de que falais apareceu outra vez esta noite?» Sim, nas rádios, nos jornais, nas televisões, em toda a parte. Todas as noites, a toda a hora, onde quer que exista um ecrã, a «coisa» aparece, impelindo-nos à vingança e à guerra «pelo céu e pela terra» . A História é teimosa, não dá tréguas.

É só um intervalo entre guerras

«O resto é silêncio», diz Hamlet antes de morrer. São as suas últimas palavras. Mas o que resta não é silêncio, mas o barulho mudo da próxima guerra a aproximar-se. «Como muitas vezes antes da tempestade vemos/ Um silêncio nos céus, e a terra em baixo/ Tão muda como a morte./ Logo o trovão terrível rasga a região.»

A política do medo

À medida que o mundo se desconcerta e a extrema-direita se instala no poder ou se aproxima dele, o tempo parece empurrar-nos rapidamente para as grandes tragédias. Nos últimos dias, um pouco por toda a Baixa, dezenas de cartazes do Dia Internacional das Mulheres apareceram riscados e apagados com tinta preta. «Tem cuidado, Ofélia, tem cuidado/ E mantém-te na retaguarda do teu afecto,/ Abrigada dos projécteis e afrontas do desejo», diz Laertes à irmã. Ou melhor, Laertes ordena. Ele é um homem, viril e experimentado; Ofélia é apenas uma mulher, pura e inocente. E o macho conclui: «Toma por isso cuidado; a melhor política é o medo.» Os velhos textos não nos salvam, mas mostram o mundo sem paninhos quentes. Estamos avisados.

A Ratoeira

Um balão vermelho com a forma de um coração, talvez oferecido no dia dos namorados, prendeu-se nos cabos de telefone, na Praça da República. Quando o vento sopra, parece um bicho desesperado a tentar escapar de uma armadilha. «Como se chama a peça?», pergunta o Rei. «A Ratoeira – que tropológico!», responde Hamlet .

Sem pressa

Há um músico de rua que costuma estar, de manhã, no Miradouro da Vitória. Ouço-o da minha sala de trabalho. Não tem boa voz. Mas apurou uma técnica: alonga as canções até ao limite – versões de temas pop-rock famosos –, como se esticasse um elástico ao máximo e o conservasse assim, em absoluta contenção. Uma nota após outra, lentíssimo. Tão lento que, em vez de “cantar”, “diz” as letras. Diz, porém, como se as cantasse. A técnica musical do tipo exige uma atenção e um tempo que são o contrário do ritmo acelerado do turismo, dos vários turismos. «O tempo de sem pressa contarmos até cem.»

Parar a música

O encenador pede aos actores que, por momentos, esqueçam a poesia e se concentrem no que está efectivamente a acontecer na cena. A poesia de Shakespeare é uma espécie de música encantatória, como o canto das sereias, que dissimula os acontecimentos. Às vezes, é preciso parar a música, ou tapar os ouvidos como os marinheiros de Ulisses, e escutar a verdadeira linguagem das personagens: o sangue, a bílis, o cuspo.

O tamanho importa

Acto 5, cena 2. Laertes e Hamlet estão prestes a matar-se um ao outro. Mas antes, comparam as respectivas espadas: Laertes: Esta é pesada de mais. Deixa-me ver outra. Hamlet: Desta gosto. Têm todas o mesmo comprimento? W.H. Auden escreveu que Laertes tem ciúmes da inteligência de Hamlet .  Da inteligência e do tamanho da espada.

Atingido

Polónio esconde-se atrás da cortina para escutar a conversa entre Hamlet e a Rainha. Quando o príncipe descobre que estão a ser espiados, golpeia o pano com a espada. Polónio comenta: «Ah, fui atingido» – O, I am slain.  Imaginamos a personagem, «atingida», a dizer isto, enquanto tomba em câmara lenta. A cena, cheia de um extravagante pathos , faz rir os actores.

Impressão de realidade

Após a leitura da primeira cena, um actor levanta a hipótese de o Fantasma consistir num simples truque de prestidigitação. O «prodígio» seria, na verdade, alguém disfarçado de fantasma do velho rei. Alguém interessado em forçar Hamlet a agir e a assassinar Claudius. Quem?