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Sem pressa

Há um músico de rua que costuma estar, de manhã, no Miradouro da Vitória. Ouço-o da minha sala de trabalho. Não tem boa voz. Mas apurou uma técnica: alonga as canções até ao limite – versões de temas pop-rock famosos –, como se esticasse um elástico ao máximo e o conservasse assim, em absoluta contenção. Uma nota após outra, lentíssimo. Tão lento que, em vez de “cantar”, “diz” as letras. Diz, porém, como se as cantasse. A técnica musical do tipo exige uma atenção e um tempo que são o contrário do ritmo acelerado do turismo, dos vários turismos. «O tempo de sem pressa contarmos até cem.»

Parar a música

O encenador pede aos actores que, por momentos, esqueçam a poesia e se concentrem no que está efectivamente a acontecer na cena. A poesia de Shakespeare é uma espécie de música encantatória, como o canto das sereias, que dissimula os acontecimentos. Às vezes, é preciso parar a música, ou tapar os ouvidos como os marinheiros de Ulisses, e escutar a verdadeira linguagem das personagens: o sangue, a bílis, o cuspo.

O tamanho importa

Acto 5, cena 2. Laertes e Hamlet estão prestes a matar-se um ao outro. Mas antes, comparam as respectivas espadas: Laertes: Esta é pesada de mais. Deixa-me ver outra. Hamlet: Desta gosto. Têm todas o mesmo comprimento? W.H. Auden escreveu que Laertes tem ciúmes da inteligência de Hamlet .  Da inteligência e do tamanho da espada.

Atingido

Polónio esconde-se atrás da cortina para escutar a conversa entre Hamlet e a Rainha. Quando o príncipe descobre que estão a ser espiados, golpeia o pano com a espada. Polónio comenta: «Ah, fui atingido» – O, I am slain.  Imaginamos a personagem, «atingida», a dizer isto, enquanto tomba em câmara lenta. A cena, cheia de um extravagante pathos , faz rir os actores.

Impressão de realidade

Após a leitura da primeira cena, um actor levanta a hipótese de o Fantasma consistir num simples truque de prestidigitação. O «prodígio» seria, na verdade, alguém disfarçado de fantasma do velho rei. Alguém interessado em forçar Hamlet a agir e a assassinar Claudius. Quem?

O destino do Fantasma

O fantasma do velho rei da Dinamarca começa a assombrar os muros de Elsinore. Para neutralizar o espectro e dar-lhe sepultura, é preciso um sacrifício: o jovem Hamlet deve vingar-se, assassinando o novo rei. Enquanto não forem cumpridos esses ritos funerários, o espectro continuará a errar por Elsinore. No final, o sacrifício cumpre-se: o rei é morto. Mas nada se sabe sobre o destino do fantasma. Desceu definitivamente ao mundo dos mortos? Ou permanece entre os vivos, assombrando um príncipe após outro, exigindo mais um assassínio, e outro, e outro ainda? Até aos nossos dias. Pensa-se que Shakespeare representou, ele próprio, o papel do Fantasma. Era o único que verdadeiramente lhe assentava.

Chaves

Nas últimas semanas, e por razões de trabalho, tenho lido artigos, capítulos e livros sobre Hamlet . Cada estudioso tem uma chave única para a compreensão da peça. Há mais chaves na Academia para desvendar os «segredos» do texto de Shakespeare do que em todos os chaveiros do mundo juntos.

Salutar lição

Leio um «velho» artigo de Vasco Graça Moura sobre as diferentes traduções de Hamlet para português. A mais curiosa é a do rei D. Luís , publicada em 1877. Dois exemplos, entre muitos. A fala de Marcelo «Há algo de podre no reino da Dinamarca» (Feijó) é vertido por «Algum vício há na constituição da Dinamarca». Outro: Acto I, Cena III. Ofélia diz ao irmão Laertes: «Guardarei o efeito desta boa lição como/ Vigia dos afectos.» (Feijó) O rei prefere: «Em meu coração encerrarei, como um preservativo, a tua salutar lição.»

Ter ou haver

HAMLET: Ter ou haver a podridão é essa. AGRIFONTE: Isto já é demais. (Vai ao município apanha o documento e volta) Hamlet, meu amigo, teu pai, o bom pai que te deu esta história, acaba de falecer incauto. HAMLET: (Extraviado, rindo com infinita amargura) Ah, ah, ah... Meu pai deu-me o conto. E que conto! J'en pense le plus de mal possible. O ESPECTRO DO PAI: (Aparecendo) Senhores, a comida está na mesa. Saem todos. A paisagem agora vazia lembra um daqueles envergonhados particípios que faziam a delícia dos nossos ancestres. Luís Buñuel, Hamlet - Tragédia cómica, Acto terceiro, Cena II. Tradução de Mário Cesariny.