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Algumas coisas rápidas sobre «Nesta Grande Época»

Karl Kraus usa as citações como as personagens shakespereanas dos westerns de John Ford. Não são um ornamento que se traz à lapela, mas uma força universal e histórica que irrompe das entranhas.  ¶ António Sousa Ribeiro consegue segurar todo o ritmo que existe no original alemão e oferece-nos um texto em português que sobe e desce como uma montanha russa e faz-nos rir e também nos envergonha porque tanto daquilo passa-se ainda hoje e tão perto, raisparta!  ¶ Por sorte,  Os Últimos Dias da Humanidade também está disponível na Biblioteca Almeida Garrett. Junto com os Aforismos  (que está em casa) formam uma rica trindade. — A vida corre mal; a vida corre-me bem!  ¶ Tudo o que Kraus escreve é tão tronante (a coisa mais viva da cidade) que fico sempre com receio (ou será vontade?) que os seguranças me ponham fora da carruagem por causar distúrbios ao bom funcionamento do Metro. ¶ Se falasse português, Karl Kraus escrevia um artigo n’ O Archote a desancar na Tânia Laranjo.  ¶ Apetece-

Peregrinos

Entrou em Pedro Hispano e saiu na Câmara de Matosinhos, já a conheço de vista. Contou a uma amiga que a patroa da senhora que saiu no Parque de Real foi a Fátima a pé e ela só tem de cozinhar para os dois doutores . Depois de um silêncio, acrescentou: Também sou peregrina. Somos todos . ( São velhas, dizem muitos lugares comuns, é uma forma de assegurarem uma pertença, creio, mas no meio, sai-lhes uma frase que nunca ouviram, que é mesmo delas. Às vezes até se admiram com a força e o brilho e repetem o aforismo com satisfação .)

As montras das salsicharias

Na primeira nota, para explicar que se trata de um texto autobiográfico, o tradutor refere que Lichtenberg era corcunda. Isso acontece na página 9. Porém, conforme vou lendo os aforismos , a corcunda do autor vai diminuindo. Quando chegar ao fim, aposto que desaparecerá por completo — como nos contos infantis. ••••••• Podia passar o dia a publicar estas ferroadas de Lichtenberg, a pretexto disto e daquilo, com dedicatórias ou sem motivo nenhum, por puro divertimento, por exemplo: Um selvagem canadiano a quem se mostraram todas as maravilhas de Paris foi, em seguida, interrogado sobre aquilo de que mais gostara. As montras das salsicharias, respondeu ele.

Ajuda a viver

Pierre Assouline: Foi a leitura do Cioran que o acalmou?  Jean-Luc Godard: Ela corresponde à minha queda para o aforismo, a síntese, os provérbios. Este gosto talvez me venha das fórmulas científicas. O aforismo resume qualquer coisa mas permite outros desenvolvimentos. Como um nó: pode ser feito em vários sentidos, não impede que quando é feito, o sapato fique preso. Não é um pensamento, mas um traço do pensamento. E Cioran, leio-o sempre em todos os sentidos. É muito bem escrito. Com ele, o espírito transforma a matéria. Cioran dá-me uma matéria que alimenta o espírito.  PA: Mas o que o atrai tanto nos aforismos? JLG: O seu lado de átrio de estação central. Entramos, saímos, voltamos. Se encontrarmos um bom pensamento, podemos permanecer nele muito tempo. Depois levamo-lo connosco. Não é preciso ler tudo. Pessoa, de quem também gosto muito, é demasiado negro enquanto Cioran ajuda a viver. É uma forma de pensamento diferente do pensamento com começo, meio e fim. Não conta uma hist

Aforismos há muitos

Agudeza , de acordo com Baltasar Gracián, é uma boa definição; ampla, com óptimas vistas. Brian Dillon aproveita o lance e escreve:  o aforismo é antes de mais algo afiado ou aguçado, aplicado com violência — mas esta violência não pode ser definitiva, tem de ser repetida uma e outra vez . Entretanto lembrei-me d’ O Vespão de Peruca e ocorreu-me ferroada . De acordo com o dicionário: picada com ferrão, mas também censura picante ou sátira. Tem qualquer coisa de wit —  podia ser usada em exclusivo pelos ingleses, como um chapéu de Ascot. Ainda tenho outra proposta, mas esta é demasiado jocosa, quase uma greguería. Apanhei-a por causa do que Cioran escreveu sobre a importância da comida em França. Aqui fica em jeito de homenagem ao filósofo, à língua e a outras delicadezas francesas:  amuse-bouche ou, melhor ainda, amuse-gueule . Um aperitivo oferecido que se come de uma só dentada. (Claro que transformar um entretém de boca numa tomada de posição filosófica não é para qualquer um

Figos secos

O meu irmão trouxe-me alguns figos. Não os comi logo. Espalhei-os num tabuleiro e pu-los ao sol, atrás do vidro da cozinha. Três ou quatro apodreceram sem remédio. Mas os restantes têm boas hipóteses de ficar secos, engelhados e torcidos. Os únicos aforismos de que sou capaz.

Telepatia

Fiz uma busca em quatro línguas, mas não consegui encontrar nenhuma ligação entre os aforismos de Cioran e a palavra telepatia. É pena, parece-me que tudo na palavra — até o seu ar vagamente de pacotilha — ajusta-se bem aos pensamentos de Cioran. Há alguns anos escrevi isto: Corpo e sombra só se conhecem telepaticamente . Se calhar serve para colmatar a falha — uma tradução apócrifa, uma nota de rodapé encontrada fora do sítio, calçar os sapatos dos outros, qualquer coisa desse tipo.

Erros sucessivos

Quando escrevi “talvez os seus aforismas não surjam de um pensamento analítico sustentado” , enganei-me. Só me apercebi da gralha mais tarde. Corrigi. Aforisma  utiliza-se em medicina e designa “hematoma resultante da ruptura de um vaso sanguíneo”. As palavras têm um sentido clandestino e autónomo que vê tudo com mais clareza. Corrigir é um erro maior.

A balança bem calibrada de Steiner

Pode parecer um bocado acintoso entalar George Steiner no meio de textos sobre Cioran. Não foi de propósito, calhou assim. Também não me apeteceu disfarçar até porque, se parar para verificar os  raciocínios, ainda acabo a concordar com o que Steiner escreveu sobre Cioran (por exemplo, procurar aqui “Short Shrift”). Steiner tem uma balança bem calibrada para as letras , sei disso. E sim, talvez haja nos lamentos de Cioran uma facilidade ominosa. Talvez os seus aforismos não surjam de um pensamento analítico sustentado. Talvez a sua tristeza seja preguiçosa, repetitiva e demasiado declamada. Talvez Cioran seja um moralista teatral sem argumentos de ferro, sem roupas, sem reino. Mas não é por isso que gosto menos dele — das suas palavras de meteco ou dos seus pensamentos esbotenados. Também as nossas inclinações intelectuais saem muitas vezes de um não sei quê obscuro e antigo . É  como o cheiro das laranjas, é preciso aguentar.

Aquilo a que chamamos pensamento instantâneo

Compreenda, escrever aforismos é muito simples: vamos a jantares, uma senhora diz um disparate, isso inspira uma reflexão, regressamos a casa e escrevemo-la. É mais ou menos assim o mecanismo, não é? Ou então à noite temos uma inspiração, um princípio de fórmula, às três horas da madrugada escrevemos essa fórmula. E finalmente isso torna-se um livro. Não é sério. Não se pode ser professor universitário com aforismos. Isso não é possível. Mas, numa civilização em desagregação, este género de coisas está muito bem. É evidente, não se deve nunca ler um livro de aforismos de uma ponta à outra. Porque temos a impressão de caos e de uma falta de seriedade total. É preciso lê-lo unicamente ao anoitecer antes de nos deitarmos. Ou num momento de tristeza, de desgosto. Ler Chamfort de uma ponta à outra não faz sentido, pois os seus aforismos são generalidades instantâneas. É pensamento descontínuo. Você tem um pensamento que parece explicar tudo, aquilo a que chamamos pensamento instantâneo. É

Humano, demasiado humano.

Cioran já andava pelos setenta anos quando se apaixonou por uma jovem professora de filosofia. Friedgard Thoma escreveu-lhe uma carta elogiosa comparando-o a Büchner e Walser. Depois enviou-lhe uma fotografia. Começaram a trocar correspondência. Encontrei  aqui  parte da história e este excerto:  “Consigo gostaria de falar sobre Lenz na cama. Lástima que não viva sozinha e aqui perto. A alegria de a ter conhecido é uma prova e também um golpe. Gostaria de terminar com um aforismo irónico, mas não posso." Não me interessa saber mais sobre o devaneio amoroso. Cioran entrou na filosofia pelo curral. Um afilhado de Dionísio que praticou a sátira e a ironia como poucos. Usou-as para defesa e ataque; em relação às coisas grandes, às coisas pequenas e a si mesmo. Custa-me vê-lo velho, incapaz de escrever um aforismo irónico quando mais precisava. Demasiado preso a si, sem qualquer ponto de fuga, sem riso, sem alívio. Como todos nós. Como Minetti com os atilhos das ceroulas desapertados