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A mostrar mensagens com a etiqueta Franz Kafka

A culpa

Os homens estão convencidos de que foram expulsos desse lugar [o paraíso] por terem comido o fruto da Árvore do Conhecimento do bem e do mal. Mas é uma ilusão. Não é essa a culpa dos homens. A culpa dos homens está no facto de ainda não terem comido da Árvore da Vida. A expulsão do paraíso foi um pretexto para o impedir. Vivemos no pecado não porque fomos expulsos do paraíso, mas porque essa expulsão nos tornou incapazes de realizar um gesto: comer da Árvore da Vida. Roberto Calasso, K . Tradução de José J. C. Serra.

Igreja

Roberto Calasso cita em K. um comentário de Musil sobre O Desaparecido. Musil diz que o romance de Kafka é regido por «aquele sentimento das orações fervorosas das crianças e tem algo do escrúpulo irrequieto dos trabalhos para casa bem feitos.» O comentário também serve como uma luva às Redacções de Fritz Kocher , de Walser.  Karl Rossmann, Fritz Kocher, Franz Kafka.  Roberto Calasso, Robert Musil, Robert Walser.  E todos os santos e santas da nossa sagrada igreja.

Lentes de aumento

Adorno é o único exegeta que parece fortemente impressionado pela figura da professora Gisa, personagem secundária que só aparece numa cena de O Castelo , quando recupera a posse da sua sala de aula na escola onde K. e Frieda se alojaram com os ajudantes. Kafka descreve Gisa como «uma rapariga alta e bonita, apenas um tanto altiva». Nada mais. Adorno descreve-a da seguinte maneira: «Gisa, a professora loura, é talvez a única rapariga bonita, cruel e amante dos animais que é por ele [Kafka] descrita como incólume, como se a sua dureza escarnecesse do turbilhão kafkiano; pertence à raça pré-adâmica das jovens de Hitler, que odeiam os judeus muito antes de eles existirem.» Roberto Calasso, K. Tradução de José J. C. Serra.

O eleito e o condenado

O Processo e O Castelo têm um pressuposto idêntico: o de que a eleição e a condenação quase não se distinguem. Este quase é o motivo por que se trata de dois romances e não de um. O eleito e o condenado são os escolhidos, aqueles que são isolados de entre muitos, de entre todos. Deste isolamento resulta a angústia que os domina, independendentemente das suas sortes. Roberto Calasso, K. Tradução de José J. C. Serra.
 

Longe da capital, longe da lei.

Sem mais nem menos, a menina da bilheteira decidiu fazer-me o desconto jovem. À primeira vista, foi um capricho anti-burocrático que se transformou logo em gag cómico. Depois percebi que não teve nada a ver com a idade. Ela deu-me o bilhete justo para ver Trás-os-Montes . Com aquele bilhete entrei na sala como se fosse em cima do cavalo Pensamento.

Existe esperança? Sim, existe. Mas não para nós.

Gaza, 29 de Novembro de 2023. AP Photo/ Mohammed Hajjar⁠. (Via DER TERRORIST)

O teatro natural de Oklahoma

Este hipódromo é ao mesmo tempo um teatro e isto constitui um enigma. Mas o lugar enigmático e a figura clara e transparente de Karl Rossman encontram-se estreitamente ligados. Transparente, puro, talvez frouxo de carácter, é-o com efeito Karl Rossman, e é-o no sentido em que Franz Rosenzweig, no seu livro Stern der Erlosung , diz que na China o homem interior se acha «privado de carácter, o conceito de sábio, tal como desde Confúcio tem sido classicamente encarnado, apaga todas as possíveis particularidades de carácter. O que distingue o homem chinês é algo diferente do carácter: uma pureza de sentimentos elementar». Por mais que isso possa explicar-se teoricamente — a pureza de sentimentos talvez seja um equilíbrio excepcionalmente refinado do comportamento mímico —, a verdade é que o teatro natural de Oklahoma nos encaminha para o teatro chinês, que é um teatro de mímica. Uma das funções mais importantes deste teatro natural consiste em transformar o acontecer em gesto. É possível

Auto-vigilância

A nova burocracia assume a forma não de uma função específica e delimitada, realizada por certos trabalhadores, mas invade todas as áreas de trabalho, cujo resultado é - conforme profetizado por Kafka -os trabalhadores tornarem-se nos seus próprios auditores, obrigados a avaliar o seu próprio desempenho. (...) A inspecção, quero eu dizer, corresponde precisamente à descrição que Foucault faz da natureza virtual da vigilância em Vigiar e Punir . É aí que Foucault observa de forma célebre que não é preciso que o local de vigilância esteja efectivamente ocupado. O efeito de não se saber se vamos ser observados ou não produz uma introjecção do dispositivo de vigilância. Agimos constantemente como se estivéssemos sempre prestes a ser observados. Mark Fisher, Realismo Capitalista - Não haverá alternativa?  Tradução de Vasco Gato.

Diário

Entre 26 de Agosto de 1911 e 26 de Setembro do mesmo ano, Kafka não regista qualquer entrada no seu diário. Há períodos ainda mais longos de «silêncio»: entre 19 de Setembro de 1917 e 6 de Julho de 1919, por exemplo. O que terá acontecido durante esses longos meses em branco? Quando não escrevia, quem era Kafka? Interessa saber?

Pequena palestra sobre Kafka sobre Hölderlin

«Não consigo manter os meus sonhos direitos.» Com essa queixa Kafka quis dizer,  mantê-los numa linha recta do princípio ao fim . Os seus sonhos estavam inclinados a voltar a si mesmos; por exemplo, o sonho de Hölderlin. Kafka sonhou que Hölderlin começou a arder. «Finalmente conseguiste pegar fogo». Kafka começou a apagar o fogo com um casaco velho. Agora começa o desvio. «Afinal era eu quem estava a arder.» Aqui o desvio colide consigo mesmo. «E fui eu quem bateu no fogo com um casaco.» Finalmente, o desvio desfaz-se num desespero racional mas também neurótico. «Porém bater não ajudou e apenas confirmou o meu medo antigo de que essas coisas não possam extinguir um incêndio.» Eu eu mesmo acho os palíndromos sombrios — avançam como se quisessem desvendar alguma sabedoria; então, ali estávamos nós, escondidos de novo no fundo da caverna. E não era Kafka quem sonhava em nadar pela Europa com Hölderlin rio a rio? Lá vão eles, mas logo a razão instala-se. «Eu sei nadar como os outros, só q

Odradeks

Vento e chuva. Por toda a parte, há guarda-chuvas desfeitos e abandonados pelo chão. Lembram odradeks perdidos. Tristes odradeks que se afastaram demasiado de casa e que, exaustos e ensopados, desistiram de achar o caminho de volta.

Silogismo truncado

Ontem foi avistado um abutre numa estação de metro em Matosinhos . Lembrei-me logo do bom humor de Kafka . Se calhar não é só falta de jeito, se calhar a literatura actual é um bocado murcha apenas porque a realidade é demasiado exuberante.

Feliz Aniversário

Em Feliz Aniversário , de Harold Pinter, há um tipo que faz anos e cuja festa de aniversário se transforma numa espécie de paráfrase do Processo , de Kafka. Stanley, assim se chama o aniversariante, acaba preso por dois personagens (Goldberg e McCann) após um estranho interrogatório, que lembra a investigação policial a Josef K. Não é claro o «crime» de que é acusado. Também não é evidente que tipo de «autoridade» o acusa. No limite, Stanley é culpado de existir e, portanto, de fazer anos. O seu aniversário é o crime supremo. STANLEY - Lamento muito, mas esta noite não estou com disposição para festas. MCCANN - Não? Que maçada!... STANLEY - Vou sair e festejar a data tranquilamente. MCCANN - Não faça isso… (Pausa) . STANLEY - Se não se importasse de me deixar passar... MCCANN - Mas já está tudo pronto. Os convidados estão a chegar. STANLEY - Convidados? Quais convidados? MCCANN - Eu, por exemplo. Tive a honra de receber um convite. (MCCANN começa a assobiar «The Mountains Morn

no fim de contas, e no mais profundo,

“Reflexões sobre Bach ou sobre Kafka são sinais indicadores dessa pertença. De onde as conversas elevadas dos começos de um amor. Ele disse que gostava de Kafka. Então, a idiota fica extasiada. Ela crê que é por ele ser intelectualmente bem. Na realidade, é porque ele está socialmente bem. Falar de Kafka, de Proust, de Bach, é a mesma coisa que as boas maneiras à mesa, que partir o pão com a mão e não com a faca, que comer com a boca fechada. Honestidade, lealdade, generosidade, amor da natureza são também sinais de pertença social. Os privilegiados têm massa: porque não seriam eles honestos ou generosos? São protegidos desde o berço até à morte, a sociedade é suave com eles: porque haveriam de ser dissimulados ou mentirosos? Quanto ao amor pela natureza, ele não abunda nos bairros da lata. Para isso é preciso ter rendimentos. E a distinção, o que é senão as maneiras e o vocabulário em uso na classe dos poderosos? Se eu digo fulano e a sua dama, sou vulgar. Esta expressão, distinta há

Leituras em lugares públicos (de acesso restrito)

A/C Alexandre : Na reportagem sobre o Estabelecimento Prisional de Tires, transmitida pela RTP1 na quinta-feira à noite, vi Rosa Grilo empunhar “O Processo” (nº 91 da Colecção Mil Folhas, do jornal Público) frente à câmara da televisão. Pensei que ela procurava na literatura respostas para o seu problema, pensei que a seguir ir atacar “O Crime e Castigo” (nº 55 da mesma colecção). Pensei no último plano do carteirista. Mas pensei tudo errado. Rosa Grilo explicou que o livro de Franz Kafka foi uma sugestão de um inspector que a interrogou. Neste caso, o louvor e admiração vão direitinhos para a Polícia Judiciária.