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Uma jarra de amarílis vermelhas

António Guerreiro, no Público de hoje.

«Não tenho palavras»

Desde o dia 7 de Outubro, há um estribilho vindo de longe que atravessou trevas e sofrimentos para desaguar mais uma vez no discurso de muitos colunistas regulares ou esporádicos da imprensa: “Não tenho palavras”. Seríamos levados a pensar que se trata da confissão derradeira de um naufrágio linguístico do pensamento, ou do desespero que antecede o sucumbir, como acontece na ópera de Schönberg Moses und Aron, quando Moisés pronuncia a sua última réplica, que fez correr rios de tinta: “O Wort, du Wort, das mir fehlt!” (“Oh palavra, tu palavra, que me faltas”). Mas não, até agora não vi ninguém sucumbir depois de gritar publicamente o seu desespero linguístico; pelo contrário, essa afirmação antecede ou culmina quase sempre uma animada tagarelice. António Guerreiro, jornal  Público , 20 de Outubro de 2023.

Acção paralela

«O activismo conhece a lógica e o tempo da revolta, mas sabe que passou o tempo da revolução. Por vezes, esses movimentos assemelham-se mais a jam sessions do que a manifestações que guardam a memória das grandes palavras de ordem que se julgavam perfomativas.» É preciso ler muito, pensar muito, fazer ligações esquisitas e mais não sei o quê, para escrever estas crónicas. Admiro tudo isso, mas o que mais gosto no António Guerreiro é a capacidade para perceber o ritmo do nosso tempo. Estes textos breves — e tão solitários — têm qualquer coisa de transe xamânico.

Não desejo isto a ninguém, nem mesmo ao pior inimigo

(...)  A leitura de um livro é, hoje, para muita gente, um acto anacrónico, anti-democrático, sem qualquer força de atracção para quem se habituou a tudo o que é interactivo. Num livro recente, Pouvoirs de la lecture. De Platon au livre électronique , o filósofo e musicólogo francês Peter Szendy, professor numa universidade norte-americana, começa por se referir a esse imperativo da leitura e conta como se sentiu espantado por uma série de decisões judiciais que prescreviam a leitura como pena a cumprir pelo réu. A primeira história que ele conta, leu-a no Courrier international em Julho de 2009 e tinha como título Pior do que a prisão, a leitura . Tratava-se aí da condenação de um cidadão turco, condenado por um tribunal do seu país a quinze dias de prisão, uma pena comutada em obrigação de ler uma hora e meia por dia, sob vigilância policial, durante alguns meses. Quando um jornal local perguntou ao indivíduo sentenciado como é que ele sentiu a sua entrada, pela primeira vez, na bibl

O tempo presente e o tempo passado estão ambos talvez presentes no tempo futuro

Num certo sentido, os mortos são criaturas dóceis. Posso afirmar — com leviandade mas sem oposição — que Cioran escreveu estas notas depois de ter lido a crónica de hoje do Guerreiro:  «Tenho uma percepção tão directa dos desastres que o futuro nos reserva, que me pergunto onde ainda encontro força para enfrentar o presente. (...) Se pudéssemos ver o nosso futuro, enlouqueceríamos de imediato.  (...) Por mais desiludidos que sejamos, um dia havemos de parecer necessariamente ingénuos, pois o futuro excederá em muito as nossas visões mais sombrias. (...) O meu tempo não é o tempo da acção: agir é viver no presente e no futuro imediato. Mas eu só vivo no passado longínquo e num futuro ainda mais longínquo.  Diz-se (diz a ciência) que a Grã-Bretanha ficará completamente submersa e coberta de água daqui a quinhentos mil anos. Se fosse inglês, bastaria esse facto por si só para me paralisar e para justificar a minha recusa à acção.»

Sonatina para uma camisa branca

O livro de recitações desta semana é muito divertido. Desde o início, mas principalmente as duas ultimas frases: (…) comparecer com as suas camisas, sempre muito chique, onde quer que há descamisados em perigo. Ele está sempre embarcado, mas só embarca em iates.

Mais adiante!

É nas últimas sequências do filme de Aleksandr Sokurov que Fausto  revela toda a amplitude do seu incontrolável desejo de superação. Nada é suficiente, nada o satisfaz, «fervilha nele a febre da distância» (Goethe, v. 303). MEFISTÓFELES (Mauricius): Fizemos um pacto. Eu fiz tudo o que prometi, mas tu… FAUSTO: Não é suficiente para mim. Valho mais do que isso. MEFISTÓFELES: Que mais queres? Outro sol? Outro homúnculo? Dois, talvez? FAUSTO: Não é suficiente para mim! A ambição de Fausto não conhece limites. O Diabo é apenas um instrumento — como, de resto, também Margarida — da cega avidez deste «pequeno deus do mundo». Na verdade, Fausto assassina o Diabo, lapidando-o: o símbolo máximo do pecado morre sob as pedras lançadas pelo maior dos pecadores. A sequência anterior ao assassínio de Mefistófeles, junta os dois personagens diante de um géiser. É o momento crucial do filme. O ponto onde o velho mundo e a modernidade se separam irremediavelmente. Onde acaba o mistério e começ