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Mensagens

A mostrar mensagens de dezembro, 2022

Tudo rima

Memória da Memória , de Maria Stepánova, começa com uma citação de Lewis Carroll: « Que interesse tem um livro — pensou Alice —, se não tem figuras nem conversas? » E logo na página 15 uma nota de rodapé explica que sentar-se antes de partir de viagem é um costume antigo na Rússia . Mais do que o título, foram estas frases que atiçaram a minha curiosidade — é disso que se trata. O livro é um livro , claro, mas é também um sítio de confluência que recolhe coisas passadas sem ligações evidentes (definição básica de memória). Uma série de relatórios preliminares, pode-se dizer assim, sobre a família de Maria Stepánova, os judeus, os russos e todos nós — mas que não haja engano, o que é considerado principal já está em acção: dentro e fora das palavras, das imagens, dos objectos. Como nos obriga a fazer muitas pesquisas de reconhecimento (fotografias de Francesca Woodman, pequenos bonecos de porcelana fabricados na Alemanha desde o século XIX e mais tarde conhecidos por frozen Charlotte

Akyn​​, Darezhan Omirbayev

A câmara fixa uma fotografia pendurada na parede. A fotografia mostra um homem a segurar desesperadamente uma árvore que está prestes a cair. Podia ser Bergman, Tarkovski, mas é outra coisa. A câmara desvia-se da fotografia, baixa e revela a mão de um homem a segurar uma esferográfica. O homem está sentado em frente a uma mesa de cozinha, a escrever um poema num caderno de linhas. É aqui que o filme começa.

Belisário Praxedes

Estava à procura de edições portuguesas de Gamiani ou Deux nuits d'excès , o romance erótico atribuído a Alfred de Musset. O sítio da Biblioteca Nacional levou-me à edição da Arcádia, de 1975: Gamiani ou Duas noites de prazer . O tradutor chama-se Belisário Praxedes. Um pseudónimo, certamente. Pesquiso outros livros traduzidos por Praxedes. Surgem mais três referências, todas elas de clássicos eróticos: Os onze mil vergalhos , de Apollinaire; e Fanny Hill e A vida secreta de um estudante , ambos de John Cleland. Consulto o dicionário. Belisário significa «aquele que perdeu a riqueza» e é um adjectivo que serve para designar uma pessoa «pobre», «que tem má sorte». Praxedes vem do grego praxiádes , cujo significado está relacionado com os verbos «praticar», «agir», «fazer» e «experimentar». Um tradutor cuja pobreza não o impede de fazer e praticar. Uma existência muito baudelairiana.

Como se morre

Os relatos de Como se Morre , de Émile Zola são impressionantes pela forma como a proximidade e consumação da morte são descritos sem sentimentalismos nem uma palavra a mais. Pode-se, talvez, falar de uma escrita tendencialmente crua, limpa, realista, qualquer coisa desse género. É um trabalho exemplar que sabe ainda melhor dada a alarvice que por aí circula. Apesar de ter aderido logo ao espírito da obra, aos poucos comecei a perceber que Zola incorria noutro erro, mas já lá vamos, agora passo a palavra a V.S.T. que explica bem o caso na sua nota introdutória Zola porque sim : «Aqui temos, rapaziada, e em curtas páginas, Zola no seu melhor-do-costume — cinco-narrativas-cinco onde, com precisão de antropólogo social e numa prosa particularmente eficaz no desenho de personagens, situações e ambientes (em meia dúzia de parágrafos, eis descrito o universo das diferentes classes — da aristocracia altaneira ao proletariado miserável e ao campesinato, passando pelas burguesias gorda

Ensaio de natal

Muñoz Machado ha querido destacar las modificaciones introducidas por iniciativa del escritor y académico Javier Marías, fallecido el 11 de septiembre: hagioscopio, que es la abertura o pequeña ventana hecha en la pared de una iglesia, desde donde se puede ver el altar; otra es una adición al término traslaticio como relativo a la traducción, y una nueva acepción, sobrevenido, como adjetivo que significa impostado, artificial. As três palavras juntas podem ser o início de uma história. Ou de um ensaio. 

O Executor

Divirto-me muito a conversar com o chatGPT. Acho que o vou convidar para a consoada.

Um piano com pulgas morde a própria cauda

Vivace — Lento Maestoso — Allegro — Quasi Doppio Movimento — Poco Adagio — Vivace non Troppo — Vivace — Vivace — Vivace — Vivace — Andante — Vivace non Troppo — Allegretto — Andante Moderato — Vivace — Vivace — Allegretto Scherzando — Quasi Tempo di Marcia — Allegro — Vivace — Vivace — Vivace — Lento Maestoso.

Gralha

No sábado, na apresentação de um livro muito querido, descobrimos uma gralha. A frase que está impressa na página 14, e que escapou a três ou quatro revisões, diz o seguinte: «Um templo, cujos muros estão cobertos de emblemas, imagens e mandamentos da divindade.» E a versão correcta é: «Um tempo, cujos muros estão cobertos de emblemas, imagens e mandamentos da divindade.» Um templo e um tempo . Será realmente uma gralha?

Gandula

Traduzir deixa-nos uma série de manias. Agora, quando estou a ler uma tradução, qualquer uma, tendo a substituir, alterar a ordem e até a riscar algumas palavras que me parecem a mais.  Como acontece com os vícios, isto já alastrou para os livros escritos em português. Transformei-me numa apanha-bolas (tem qualquer coisa a ver com Godard, mas já não me lembro o quê). No Brasil diz-se gandula .

O que não se consegue perceber a cem por cento

Um dos meus parágrafos preferidos de Walden , talvez o preferido, é este, na secção “Economia”:   “Há muito tempo perdi um cão de caça, um cavalo baio e uma rola; procuro-os até hoje. Falei com muitos viajantes sobre eles, descrevendo os seus percursos habituais e os chamamentos a que respondiam. Um ou dois tinham ouvido o cão, o galope do cavalo e até visto a rola desaparecer atrás de uma nuvem, parecendo tão ansiosos por encontrá-los como se eles próprios os tivessem perdido.” ( minha tradução, para a Relógio D’Água ).   Gosto particularmente desta passagem pelo facto de resistir às explicações dos comentadores,  que a consideram o momento mais enigmático do livro. Todos os livros deviam ter passagens que os leitores, os comentadores e os tradutores não conseguem perceber a cem por cento — e que os autores não querem decifrar. Os estudiosos tentam identificar as possíveis referências do cão de caça, do cavalo baio e da rola que Thoreau menciona, especulando que devem ser pessoas, mas

Observações avulsas sobre o bonfim #51

Nas freguesias mais orientais há cada vez mais imigrantes. Cruzo-me com eles no metro e autocarros, supermercados e ruas. Não têm muito dinheiro — nota-se —; são novos e bonitos. É o Porto cosmopolita que não vem nas revistas e o resto da cidade desconhece. Talvez tragam com eles a mudança necessária.

Metáfora coerente

Li num livro — antiquado — sobre a linguagem que uma metáfora «deve poder ser desenhada». Tudo o que se faz de «válido» em literatura desde Rimbaud, tendo sido ele o iniciador, é a negação desta definição que, verdade seja dita, só se aplica aos clássicos ou à literatura de inspiração didáctica. A metáfora coerente já passou.  Dez séculos de rigor, de metáfora coerente, de linguagem esclerosada foram abolidos em poucos anos, em parte graças ao surrealismo, à moda de Rimbaud, às influências da ciência. É neste estado de linguagem deslocada que é possível traduzir pela primeira vez para francês autores até agora considerados intraduzíveis. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

Au bistrot

Esta noite sonhei com Cioran; foi a primeira vez que aconteceu. Procurava lugar na esplanada de um café ou restaurante ( bistrot ). A esplanada estava vazia, assim como as ruas. Só Cioran, ou Cioran só — talvez seja melhor assim. A esplanada tinha a forma de um triângulo escaleno, escolheu uma mesa no ângulo mais apertado, mas continuava de pé — à espera de quê? Ia falar com ele quando acordei. Poupei-me à banalidade de uma conversa espectacular dentro do sonho mas que se revela parva mal acordamos.

Natal dos bombeiros

À entrada do quartel da Constituição, os bombeiros instalaram um velho jipe decorado com luzes, fitas e pendentes de Natal. O carro é puxado por quatro renas de plástico, de tamanho quase real. Sentado no capô, um vigoroso manequim, daqueles que se vêem nas montras das lojas de moda, vestido de Pai Natal. Com a chuva, as barbas deslizaram pelo queixo e pingaram, como um trapo sujo, até ao pescoço. O vento arrancou o nariz vermelho do Rudolfo.

Metáfora coerente

O tecto do quarto onde guardo os livros ruiu. Olho para o buraco e vejo aquilo a que Cioran chama metáfora coerente . Mais um caso de tradução activa .  

Torre Bela, Roménia

Conta-me um amigo que durante a propaganda da colectivização, numa aldeia perto do Danúbio, tentou convencer um camponês da superioridade dos novos métodos e das vantagens que teria em trabalhar em horários fixos, em comum, como um funcionário, do rendimento mais elevado, etc., etc., etc. Mas o camponês, prudente, não quis dizer nem sim nem não, apenas apontou, em jeito de resposta, para um pássaro que acabara de voar sobre as suas cabeças. Não ousou falar de liberdade, mas teve a coragem de designar o seu símbolo... Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

Afinidades

Por razões de trabalho, tive de reler o Ensaio Sobre a Cegueira . Algumas intuições de Saramago são realmente notáveis. Certos aspectos da crise sanitária de 2020-2022 parecem ter sido inspirados no livro, que é de 1995: os confinamentos, a gestão da informação pelos organismos oficiais, a suspensão das liberdades, o papel das chamadas «forças da ordem». Mas quando a ficção mergulha no que é verdadeiramente essencial, quero dizer, quando nos faz descer ao mais profundo de nós mesmos para questionar o que somos, prefiro muito mais A Auto-Estrada do Sul , do Cortázar. Gostava de conseguir explicar melhor. Mas talvez não exista outra explicação senão a do gosto. Fácil e difícil de explicar.

Bicharada

25 de dezembro de 1959  Recebo um postal de natal de um poeta espanhol, com a reprodução de um rato.  Símbolo, diz ele, de tudo o que podemos «esperar» do ano de 1960. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

O evento

Tudo começou em 2017, quando Douglas Rushkoff - um professor de teoria dos media e de economia digital, e um dos 10 mais influentes intelectuais da atualidade segundo o MIT - foi convidado, com um tentador honorário equivalente a meio ano de salário, a proferir uma conferência sobre o futuro da tecnologia numa luxuosa e isolada estância. Para surpresa de DR, o público era constituído por apenas 5 grandes investidores de capital de risco, que cercaram o orador com temas fora da agenda do convite. As perguntas prendiam-se com a sua sobrevivência pessoal depois do "evento", o nome dado ao colapso da civilização por causas ambientais, nucleares, tecnológicas, pandémicas, ou pela combinação de todas elas: Qual o melhor sítio para construir um bunker, Alasca ou Nova Zelândia? Como garantir a fidelidade dos guarda-costas, depois do evento? Como impedir as multidões enlouquecidas pelo desespero de assaltarem esses redutos pós-apocalípticos? Viriato Soromenho-Marques.  Texto completo