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c'est ça c'est ça

Depois da lista da Sight & Sound, o Joker (episódio 111, 25 janeiro de 2024, rtp 1).

«Tenciono libertar-me deste fascínio em breve» (IV)

Estabeleci limites de páginas por dia, mas o livro é pequeno e já cheguei ao fim. Fica um travo um bocado amargo, qualquer coisa que se aproxima da morte. Todos os textos, mesmo os que não parecem estar na ponta extrema do abismo, é aí que acabam. Proibi-me de ir buscar as fotografias que estão guardadas (escondidas?) numa caixa num desvão. Nada de mimetizar os devaneios de Guibert. Mas a memória traiu-me e lembrei-me da imagem difusa e amarelada do meu pai apanhado a andar na rua. ( Um fotograma de um filme de Pasolini? ) Deve ser inverno, ele veste uma camisola de gola alta e gabardine. Ri-se para a máquina. Muito alto e muito magro e agora também muito novo. ( Como é que uma recordação esbatida pode ser superlativa? ) Sou parecida com ele e às vezes, creio, consigo representá-lo . Os mortos nunca estão completamente mortos.

Chuva e trovões (III)

Há uma altura em que até eu acho que já estou a exagerar e todavia continuo porque faz parte do exagero não ligar ao resto. Escrevo de noite, estou cansada e passa tudo. Isto ainda é sobre o livro do Guibert, mas está um bocado para lá das questões literárias ou fotográficas ou estéticas. Apercebo-me que a energia do livro extravasa as cenas habituais da literatura; há qualquer coisa indecente em  A imagem fantasma  que nos obriga a olhar para tudo de outro modo. A fita vermelha é um texto exemplar. Não enche sequer a mancha da página, porém não pára de emitir sinais de alerta. Por um lado, Guibert é tremendamente objectivo, quase telegráfico; por outro, introduz pequenos pormenores de contraste e excesso no fim de cada frase, e depois nas últimas linhas rebenta com tudo mas ao contrário — com o contrário de uma explosão, não sei qual é a palavra para isso mas o som é de uma explosão passada ao contrário. Guibert é tão bom nestas técnicas de virar do avesso que depois de ler uns quant

A fita vermelha

Em Bruxelas, ao contrário de Paris, onde isso é proibido e só se põem à mostra grandes cartazes riscados com um «X», as fotografias pornográficas são expostas nas montras dos cinemas, à vista de todos, mesmo das crianças. Mas as partes sexuais, e a forma como elas são manipuladas, são cobertas com adesivo vermelho, numa delimitação simultaneamente cerrada (ao milímetro) e sugestiva. A fita-cola deve ter sido posta pela menina da caixa, ou pelo gerente do cinema, imagina-se, com uma indiferença apressada, irritada mas meticulosa: em certos sítios, ela ou ele teve de a passar várias vezes, e isso cria diferentes espessuras na fotografia, muitas vezes em quadriculado, como uma gradação do excesso, como, nas cartas submarinas ou vulcânicas, a indicação de zonas de incandescência, remoinhos, correntes mais violentas ou mais quentes, abismos… Faz-se esta distinção com fascínio: a fotografia censurada é mais erótica do que a fotografia nua, a fotografia pornográfica torna-se uma fotografia er

Na câmara escura (II)

Vesti a t-shirt vermelha que é quase igual à capa d’ A Imagem Fantasma , um rectângulo com um pouco menos de amarelo e brilho. Não foi de propósito, era a única que estava lavada e passada a ferro. Mas quando abri o livro no metro, percebi as manhas do inconsciente: caramba, estou com as luzes ligadas, vou destronar o cartaz do Cronenberg .  Não aconteceu nada, os turistas continuaram a segurar as malas e a mostrar panos de cozinha com galos de Barcelos.  Vou a meio, página 96. Quando estou a ler os livros que leio, às vezes penso, ah, sim, gostava de ter escrito isto, mas é muito raro e não mais do que um ou outro parágrafo porque não tenho ambições de escrita consecutiva. Com o livro do Hervé Guibert o descaramento é grave: queria ter escrito tudo, mais, queria ter a perspectiva dele, estar no seu exacto lugar, ser completamente ele.  Não sei como é que o Amândio conseguiu chegar ao fim da tradução incólume e calmo; se fosse eu, estava em maus lençóis.

Punho no estômago (I)

Num certo sentido, A Imagem Fantasma* é um livro difícil de ler, quer dizer, afecta-nos de um jeito avassalador logo a partir do primeiro texto. Pensamos que um tipo a escrever sobre fotografia vai focar-se em questões estéticas mais ou menos abstratas e isso é bom para repousar a vista e pensamentos mais intermitentes. Pois, talvez seja, mas não é o caso de Hervé Guibert; ele escreve com outra coisa mais dura para além ou antes das palavras, e expõe-se tanto que entra por nós a dentro, e já não há nada a fazer.  Por exemplo, Os Óculos de Ler o Pensamento é um parágrafo de nove linhas sobre uma invenção que encontrou na  Bibi Fricotin que o atraia e lhe metia medo ao mesmo tempo e faz uma passagem, que é um corte seco, para a fotografia — e é só. Pois sim, mas a partir daí sabemos que a fotografia é uma actividade arriscada. Nunca vi essas revistas de banda desenhada, no entanto quando era muito pequena (creio que ainda nem sabia ler) também tinha medo de uma máquina de ler os pensa

Pratos do dia

Fotografias da Linha de Sombra

Uma mulher em Veneza

Gosto tanto da fotografia escolhida para a contracapa d' Uma família em Bruxelas . Foi tirada em 1982, no Festival de Cinema de Veneza (baralhei-me com outra de Cannes, de outra pessoa), por Raymond Depardon.  Parece uma imagem convencional a preto e branco, com linhas certas e pose estudada. E ao princípio é isso, mas depois não sei explicar porquê, esqueço-me da praia e das barracas e já só vejo aquele corpo tenso, uma mão no bolso, a outra com o cigarro, os olhos desconfiados. Desconfiança de quê? Da praia? Do Festival? Do cinema? Da vida? E essa desconfiança não pára de aumentar, e já passou para mim, como se houvesse um diálogo ou uma ligação qualquer e quase que dá para sentir o mistério daquela mulher, e — deve ser esse o milagre das imagens — por um breve momento, oh, muito breve, Chantal está toda aqui .

Caminhadas

Apenas uma pequena parte das caminhadas de Carl Seelig com Robert Walser é sobre literatura. Walser nem sempre está para aí virado e Seelig não o quer melindrar. Ainda bem. Assim, os temas dominantes deste livrinho são: geografia, meteorologia, comida.  Eles andavam de comboio mas principalmente a pé, para cima e para baixo, com sol e com chuva ( debaixo do guarda-chuva, Walser sente-se como em casa — um discípulo de Satie devia compor uma canção para esta frase) e ficavam esfomeados. Apesar da guerra, quase sempre conseguiam comer e beber bem: escalopes de vitela, rostï, merengues, queijos, vinhos. Walser fumava muito.  O livro é um documentário. Belo.

Apoio à Retoma Progressiva

Podia ir à falência no stand da Snob . Em vez disso: Fiz uma aposta com Henri Lefebvre. Abri o livro à sorte. O olhar (tão contrário às técnicas publicitárias) fugiu para o canto superior esquerdo: “Em Setembro de 1967, Jacques Tati oferece o guião de Playtime aos bulldozers que deitam abaixo os cenários do filme.” Juntei as peças que faltam a Walser (os livros da BCF tem um formato porreiro para ler no metro, mais ou menos dez páginas por viagem) e a Denis Johnson. O problema é que os Bazarov (e logo esses, caramba) ficaram a zurzir-me na cabeça.