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A coisa de que falais

Hamlet começa de noite. O fantasma do rei aparece, exigindo vingança. A aparição repete-se, uma e outra vez. «A coisa de que falais apareceu outra vez esta noite?» Sim, nas rádios, nos jornais, nas televisões, em toda a parte. Todas as noites, a toda a hora, onde quer que exista um ecrã, a «coisa» aparece, impelindo-nos à vingança e à guerra «pelo céu e pela terra» . A História é teimosa, não dá tréguas.

É só um intervalo entre guerras

«O resto é silêncio», diz Hamlet antes de morrer. São as suas últimas palavras. Mas o que resta não é silêncio, mas o barulho mudo da próxima guerra a aproximar-se. «Como muitas vezes antes da tempestade vemos/ Um silêncio nos céus, e a terra em baixo/ Tão muda como a morte./ Logo o trovão terrível rasga a região.»

Círculos

Uma amiga diz-me que as imagens que a televisão mostra de Gaza lhe lembram Alemanha, Ano Zero . Andamos às voltas e regressamos sempre ao ponto de partida. Como o gato de que Meyrink fala no Golem : «Tinha uma ferida no cérebro e andava em círculos, titubeando.»

Horror

Guerra, assassínio, ódio, genocídio, extrema-direita. Parece tudo tão óbvio, tão ostensivo, como um murro no estômago. A repetição de um filme de horror já visto. E, no entanto, não consigo evitar a permanente sensação de que os jornais usam uma língua que não conheço, uma escrita feita de hieróglifos impossíveis de decifrar. A terrível sensação de que falta sempre uma peça ao conjunto. Qualquer coisa que só irei compreender no último momento, quando o tempo se tiver esgotado. Aquilo que Karl Kraus viu desde o princípio e que eu não consigo ver. Ou que — e este é o drama — prefiro não ver.

Oráculo

O tempo arrefeceu e fui desenterrar do armário um casaco mais quente. Do fundo dos bolsos, saltaram duas máscaras dos anos da pandemia. Como os velhos adereços do oráculo numa tragédia.  A peste não vai acabar. E a guerra, como papagueiam os comentadores mais excitados, é «eterna».

Violência, tortura, morte e efeitos especiais

Faz hoje um ano que os militares russos invadiram a Ucrânia. Para assinalar a data, a Antena 1 (estação pública de rádio) criou um separador com uma espécie de «música épica», meio pop, meio Wagner de fancaria, acompanhada por uma voz grave a debitar umas banalidades excitantes sobre a guerra. Uma coisa tão séria e informativa como o trailer de um filme de super-heróis de Hollywood.

Barba e cabelo

Leio no jornal que o novo comandante militar russo na Ucrânia, Valeri Guerasimov, elegeu como uma das prioridades a higiene e a apresentação física dos soldados que combatem no terreno, incluindo o tamanho da barba e do cabelo. A sensação é a de que estamos a assistir a uma representação dos Últimos Dias da Humanidade , de Karl Kraus. Uma nova «leitura» ou «actualização», como se diz no teatro. E não é preciso «actualizar» demasiado.

Deplorável atentado do estado russo contra a iniciativa privada

Leio no jornal que a tomada da cidade ucraniana de Soledar foi reivindicada pelo administrador do grupo de segurança privada Wagner. A declaração surgiu depois de um comunicado em que o Ministério da Defesa russo anunciava a tomada da cidade pelo exército regular. Em resposta, «o líder do Wagner, Ievgeni Prigojin, denunciou as tentativas de “roubar a vitória” à sua empresa por parte do aparelho militar russo» .

Urnas com cinzas são mais fáceis de transportar

Mas, em toda a Grécia, os que partiram com os Átridas deixaram em suas casas um luto que oprime a alma e mil preocupações que assolam o coração. Sabe-se quais os que partiram; agora, em vez de homens, são urnas e cinzas que regressam a cada casa. Ares, o que transforma os vivos em mortos e é fiel da balança nas batalhas, envia de Ilion aos parentes o pó das fogueiras, o que lhes arranca lágrimas amargas, fazendo deles, em vez de homens, cinzas que enchem as urnas fáceis de transportar. (...) Terríveis são os propósitos do povo animado pelo ressentimento, e sempre a maldição popular pagou a quem lhe deve. Sinto-me angustiado pelo medo de assistir a alguma trama tenebrosa, pois aqueles que fazem correr sangue nunca escapam aos olhares dos deuses. Um dia virá, no curso das vicissitudes que consomem a nossa vida, em que as negras Erínias destruirão o homem feliz que menosprezou a justiça, e não há qualquer apelo para aquele que elas fazem desaparecer. Ésquilo, Agamémnon . Tradução de Virg...

Sarajevo VI

Últimos momentos em Sarajevo. Apanhamos um táxi para a central de autocarros. Num semáforo, o taxista aponta para um edifício moderno e feioso com uma cruz no telhado. É uma igreja católica erigida depois da guerra e que permaneceu inacabada durante anos por falta de dinheiro. A obra só foi concluída, diz o taxista, graças à ajuda de um muçulmano rico da cidade. Faz uma pausa e acrescenta: «Isto é a Bósnia.» Não sei se o taxista inventou a história. E se inventou, não sei se o fez por nós ou por ele. É uma bela história. Agradeço que a tenha contado. Tal como se inventam histórias para justificar a guerra, também se criam outras para construir a paz.

Sarajevo

O hotel fica numa rua relativamente estreita, que conduz directamente à avenida principal da cidade, a avenida do Marechal Tito. De um lado e do outro, prédios de quatro ou cinco andares, construídos entre os anos 60 e 70. Edifícios banais de habitação, como quaisquer outros de qualquer outra cidade da Europa Central. Fachadas manchadas pelo fumo dos carros, varandas com mesas e cadeiras de praia, janelas com venezianas. Mas se olharmos com mais atenção, as fachadas destes prédios são tudo menos banais. Há marcas de bala e de estilhaços de morteiro um pouco por todo o lado. No edifício em frente ao quarto do hotel conto mais de vinte destas marcas. Não se vêem de imediato, é preciso afastar um pouco a cortina.

Fadiga da Ucrânia

Os analistas e comentadores encontraram um termo novo para embrulhar os tópicos relacionados com a guerra: a «Fadiga da Ucrânia». O termo não se refere ao cansaço dos ucranianos após meses de guerra, morte e destruição, mas ao nosso cansaço no chamado «Ocidente». Segundo os analistas e comentadores, «o cansaço já é visível». E é visível onde e em quê? Um artigo de hoje no Público explica: «As interacções nas redes sociais (likes, comentários, partilhas) caíram 22 vezes entre a primeira semana da guerra e a última semana de Maio: de 109 milhões para 4,8 milhões. (...) Durante um período de seis semanas, entre Abril e Maio, houve seis vezes mais interesse em notícias sobre o caso Johnny Depp-Amber Heard do que sobre a guerra na Ucrânia.»

Ninguém sabe

O comentador, vestido de cinzento, repete várias vezes num tom grave, sábio e definitivo: «Ninguém sabe quando e como esta guerra vai terminar.» Oh, e alguém sabe como é que os delicados ombros do comentador vestido de cinzento suportam o peso de tão laborioso pensamento? E até quando, até quando, meu deus, conseguirão eles suportar?

Punhal

No conto de Borges, há um punhal fechado na gaveta de uma secretária que sonha com uma mão. Um punhal que não é usado é um objecto inútil, sem préstimo. Mais cedo ou mais tarde, a lâmina reclamará a sua libra de carne. Punhais, balas, tanques. Mísseis adormecidos em gavetas de aço e betão. Que sonhos terríveis povoam o seu sono agitado?

Publicidade

Leio no jornal que as autoridades russas apresentaram um novo míssil nuclear intercontinental: o RS-28 Sarmat . Este novo produto da tecnologia russa, construído exclusivamente com «componentes e peças de fabrico nacional», é uma arma com «elevadas características tácticas e técnicas», «verdadeiramente única», «de quinta geração», «invencível», «hipersónica», capaz de voar «a uma velocidade de cerca de 25.560 quilómetros por hora», «sem limites em termos de alcance», com capacidade para «atingir alvos atravessando tanto o Pólo Norte como o Pólo Sul» e «destruir uma área semelhante a França». A notícia, como é óbvio, não impressiona pelas «características tácticas e técnicas» do novo míssil — num conflito nuclear, é irrelevante se a bomba é «hipersónica» ou apresenta sinais de ferrugem. A notícia impressiona pela linguagem. São as mesmas palavras e o mesmo tom da publicidade. Os mesmos truques dos tipos que apresentam «produtos inovadores» nas grandes feiras internacionais, na Web Summ...

A imagem pode não corresponder

Na embalagem de ervilhas congeladas, no canto inferior direito, uma frase em letras pequenas: «A imagem pode não corresponder exactamente ao produto, sendo meramente demonstrativa.» Quantos programas televisivos não deviam ser acompanhados por uma frase semelhante? Qual a diferença entre certos noticiários da televisão e o rótulo publicitário de uma embalagem de ervilhas congeladas? Na verdade, há uma diferença no conteúdo: as ervilhas tiram a fome.