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O joguete do destino

Ora aconteceu que um belo dia, enquanto caminhava pelo parque, Madwick tropeçou na raiz de uma tília. E foi nesse exacto momento que notou, com absoluta lucidez, que iria rachar a cabeça. “Eu sabia que, mais cedo ou mais tarde, isto iria acontecer”, suspirou.
Enquanto tombava, reparou que se esquecera do chapéu em casa. E que tinha saído sem fechar a porta. O gato, por certo, aproveitara a ocasião para se escapulir, como era seu timbre. “Bolas!”, gritou interiormente. Não era a primeira vez que o gato provocava distúrbios na rua. Era um animal dotado de um certo espírito caprichoso.
Entretanto, a cabeça aproximava-se do chão com uma urgência cada vez maior. “Vamos encarar a situação friamente”, resmungou para si mesmo. “Além da cabeça, o mais certo é fracturar também um braço, várias costelas e a própria tíbia.” A ideia de fracturar a tíbia perturbava-o especialmente. Enfiou um cigarro mental entre os lábios e acendeu-o.
Ocorreu-lhe então um poema que gostaria de citar, mas que não tinha à mão. “Os dois primeiros versos ilustram brilhantemente a minha presente situação”, comentou com os seus botões. Os botões não responderam. Madwick achou nisso motivo para crítica, mas perdeu logo a vontade. O chão aproximava-se a uma velocidade perigosa.
Tudo rolava e se precipitava por si mesmo. Madwick fechou os olhos. E meditando sobre a sua sorte, emitiu ainda esta ideia filosófica: “Somos o joguete do destino.” E estava ele neste reflexivo estado de inquietação, quando finalmente caiu no chão. Primeiro com o joelho, que pousou sobre a terra fofa. De seguida, com as pontinhas dos dedos. E só então com a cabeça, que encostou suavemente à relva fresca.
E foi isto que aconteceu. Depois, levantou-se, sacudiu o casaco, alisou as calças com as mãos, e lá se afastou, a assobiar a cancão “Adieu mes amours”, seguida de “Si j’ai perdu mon ami”, ambas de Desprez.

Publicado no Porto24, página dos "Cronistas do Bairro".

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