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Como se morre

Os relatos de Como se Morre , de Émile Zola são impressionantes pela forma como a proximidade e consumação da morte são descritos sem sentimentalismos nem uma palavra a mais. Pode-se, talvez, falar de uma escrita tendencialmente crua, limpa, realista, qualquer coisa desse género. É um trabalho exemplar que sabe ainda melhor dada a alarvice que por aí circula. Apesar de ter aderido logo ao espírito da obra, aos poucos comecei a perceber que Zola incorria noutro erro, mas já lá vamos, agora passo a palavra a V.S.T. que explica bem o caso na sua nota introdutória Zola porque sim : «Aqui temos, rapaziada, e em curtas páginas, Zola no seu melhor-do-costume — cinco-narrativas-cinco onde, com precisão de antropólogo social e numa prosa particularmente eficaz no desenho de personagens, situações e ambientes (em meia dúzia de parágrafos, eis descrito o universo das diferentes classes — da aristocracia altaneira ao proletariado miserável e ao campesinato, passando pelas burguesias gorda ...

«Diante da morte, tudo é impostura»

Tenho jeito para entrar no espírito do tempo : no sábado comprei e li Como se Morre , de Émile Zola (belíssima edição da &etc com colaboração gráfica d'O Homem do Saco); e hoje estou a traduzir o que Cioran escreveu em Outubro de 1966 sobre a morte da mãe. Não pára de chover.
O vento é importante, (...) o vento não é nada mais do que espírito.

Fin de partie

Uma das coisas que mais me impressiona em Godard é a forma como ele se dedica às pessoas e às ideias, como decifra palavras, imagens, gestos, sons, a própria alma; como baralha tudo e depois afasta-se a alta velocidade, ultrapassando os objectos amados. Parece um cometa ou uma máquina inteligentíssima e selvagem feita de luz, sombra, mãos. Também foi assim na morte: antecipou-se a Federer, deixou para trás o estuporado do Cioran. Ficamos tão desamparados.

Beber à morte

Estão sentados num café fechado ao público*. Sangok diz ao realizador que os seus filmes parecem contos. Está a falar com Jaewon e também com Hong Sang-Soo. Aceito e gosto desta interpretação: a mancha de molho na blusa, por exemplo, tem a economia, o peso e a ambiguidade que existem nos melhores contos e nos fazem tremer — aquilo a que podemos chamar augúrios narrativos. Mas a analogia que me parece mais justa é menos conceptual e mais orgânica; relaciona-se com a luz e as cores fortes do filme, com os movimentos livres das personagens (cenografia e coreografia) e apreendi-a há três anos num romance de Iris Murdoch (para continuar com os pés enterrados na literatura). Assim, roubando as palavras finais de uma das personagens d’ O Sino , posso dizer que em Perante o teu rosto vi Sangok virar-se toda para a vida e para a felicidade, como uma planta robusta se vira para o sol, e assimilar tudo o que encontrava pelo caminho . Que esta energia surja nos cinco ou seis meses (o tempo de r...

A morte

A morte é uma ocorrência vulgar, talvez a mais vulgar que podemos conhecer. A sua natureza rasteira não se deixa apanhar por raciocínios intelectuais ou palavras engenhosas. O nevoeiro filmado por Carpenter está mais perto da sensação da morte do que o jogo de xadrez de Bergman.

A vida é terrível, mas muito divertida.

Acontece quando Lisa se encontra com Bruno; acho que é nessa altura que Iris Murdoch resolve agitar as coisas. Só nos apercebemos disso indirectamente e um pouco mais tarde porque na verdade não vemos o que se passa com os nossos olhos e o caso criado por Iris Murdoch é de “ver para crer”.  Danby, que presenciou esse encontro entre Lisa e Bruno, é o primeiro a ver outra Lisa e fica tão transtornado que a procura, aborda-a na rua, puxa-a para o lado (nota etimológica: seduzir vem do latim seducere que quer dizer "levar para o lado") e depois, já dentro do cemitério, diz que a ama, que viu e acredita. Mais tarde escreve numa carta: É uma coisa muito diferente dos afectos corriqueiros e insignificantes e da simples vontade de ir para a cama com alguém. Sinto neste caso uma espécie de destino . É uma paixão desse tipo: exaltada, plena, orgulhosa. Parece que Danby está a entrar para uma ordem religiosa, que compreendeu o mistério do universo. Ora bem, esse encontro de Danby com ...

Morrer de músculos tensos

A nossa falta de orgulho compromete a morte. Provavelmente foi o cristianismo que nos ensinou a fechar os olhos — a baixar o olhar — para que a morte nos encontre pacíficos e submissos. Dois mil anos de educação habituaram-nos a uma morte sensata e alinhada. Morremos para baixo , apagamo-nos na sombra das nossas pálpebras, em vez de morrer de músculos tensos, como um corredor que espera o sinal, a cabeça atirada para trás, pronto a enfrentar o espaço e derrotar a morte no orgulho e na ilusão da sua força! Muitas vezes sonho com uma morte indiscreta, cúmplice das expansões… Lágrimas e Santos, Emil Cioran (tradução a partir da versão francesa).

É a vida

1. Dans un village de Normandie, un enterrement. Je demande à un paysan des précisions. « Il était jeune, à peine soixante ans. On l’a trouvé mort dans les champs. Que voulez-vous ? C’est comme ça. » Et de répéter plusieurs fois : « C’est comme ça. » Qu’aurait-il pu dire d’autre ? Que peut-on dire d’autre sur la mort ? « C’est comme ça, c’est comme ça. » L’irréparable rend stupide. (Emil Cioran, Cadernos 1957-1972) 2. A tradução mais literal é esta, quase palavra por palavra — como deve ser: Numa aldeia da Normandia, um enterro. Peço pormenores a um camponês. “Era jovem, apenas sessenta anos. Foi encontrado morto no campo. Que quer? É assim.” E repete várias vezes: “É assim.” Que mais poderia dizer? Que mais podemos dizer sobre a morte? “É assim, é assim.” O irreparável faz-nos estúpidos. 3. Pois, está muito bem, mas apetece estragar um bocado; apetece traduzir “c’est comme ça” por “é a vida”. Argumentos não faltam: a expressão é muito vulgar, transmite melhor o sentido de inevitab...

A essência das coisas

Eu sempre disse — ao responder à questão de Ravelstein, "Como imaginas que será a morte?" — "As imagens cessarão". Querendo com isto dizer, uma vez mais, que na superfície das coisas víamos a essência das coisas. Ravelstein, de Saul Bellow. Quetzal Editores.
Quando estamos a ver o filme já nos apercebemos disso, não passa ainda de uma coisa fraca, como se os nossos olhos fossem os de Agnès Varda captando imagens desfocadas e com significados indefinidos. Na verdade, a alegria que Varda e JR levam aos "lugares" por onde passam e aos rostos das pessoas está ligado a uma tristeza que é própria da fotografia e da morte (a palavra mais adequada é "nostalgia" trazendo consigo o rasto de viagem e dor, a falta de algo), uma tristeza que se vai prolongar mais no tempo, fora da sala de cinema. "Olhares lugares" é ao mesmo tempo essa viagem literalmente a bordo de uma carrinha mascarada de máquina fotográfica e a tentativa de encontrar qualquer coisa que falta num lugar e vencer essa falha: os mineiros que já morreram, as mulheres dos estivadores de corpo inteiro nos contendores empilhados, uma cabra com cornos porque é da natureza das cabras terem cornos, a rapariga com a sombrinha, os peixes numa cisterna, os pés de...

Morte

Uma das palavras mais pesquisadas do dia do priberam é peido-mestre. Substantivo e adjectivo unidos por hífen — espécie de palavra gémea que vive nas costas do último suspiro. Em si, isto não é relevante; o que acho estranho é — em tantos livros que já li, escritos em português ou traduzidos — nunca a ter encontrado. Enfim, perder a oportunidade de usar um termo tão tronante como um Deus grego parece-me uma grande falha da literatura contemporânea. No entanto, ainda com as imagens do último filme de Eastwood na cabeça, consigo ver Earl Stone (caramba, que nome porreiro e tão certo) de boné e óculos escuros no carro: a guiar com as duas mãos no volante, a olhar em frente, a murmurar qualquer coisa que não se percebe, a terminar a frase com a palavra “peido-mestre”( the last desperate fart ).