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A mostrar mensagens com a etiqueta Robert Bresson

Vai no batalha

É evidente que estou aqui a título de penetra. Preparei uma aula sobre o que gosto (ou gostava?) mais de fazer: rever filmes. Falo um pouco de Bresson e Godard para dar consistência, mas a ideia é explorar as malandrices e perícia de Hitchcock em três filmes: Janela Indiscreta , Os Pássaros e o maravilhoso Perigo na Noite .  Não parece, mas é — há-de ser — uma sessão para desanuviar (mais não seja porque não percebo nada de questões teóricas de cinema). E desviar, também, se conseguir.  Segui o método de Hitchcock e tenho tudo tão delineado que podia contratar alguém para ir dar a aula com menos irregularidades — uma loira bem penteada, de tailleur cinzento e olhar perdido é que era. O curso é barato, mas aviso já que a admissão é difícil que se farta (muito pior do que o exame de condução); convém ir à prova cheio de cinefilia.

Domingo

Ontem à noite, voltamos a ver Fugiu um Condenado à Morte . A cena de Fontaine pendurado na corda, a atravessar os muros da prisão de Montluc, lembra as sequências dos trapezistas de Varieté , o filme que tínhamos visto de manhã, no Batalha. O dia fez um arco.

Influenciadores do século XX na esplanada

Custa-me aceitar o título “A Submissa” . (Não é uma questão semântica.)

Fábula bressoniana

Ontem, por volta das seis da tarde, um grupo de raparigas e rapazes franceses entrou no 502 (paragem Serralves). Eram mais de dez, falavam baixo, tinham a beleza diáfana dos modelos de Bresson. Parecia aquela cena de  Le Diable probablement . Um deles (esguio, calças e sapatilhas pretas, camisa esbranquiçada larga sem colarinho, gorro preto) podia ser Ivan Karamazov e trazer o diabo no bolso. 
— Pela última vez, Deus também não existe. — Então, quem anda a gozar assim com as pessoas, Ivan? — O Diabo, pelos vistos — esboçou um sorriso Ivan Fiódorovitch. — E o Diabo existe? — Não, também não existe. Os Irmãos Karamázov, primeira parte, livro 3 “Os Voluptuosos”, capítulo 8 “Enquanto se toma conhaque”. Tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra. Editorial Presença. Outubro de 2002.

A dialéctica fundiu

— É paradoxal que as melhores adaptações de Dostoiévski sejam de Bresson: um é eufórico e o outro refreado. — Não basta não gostar das Noites Brancas, de Visconti, para determinar esta certeza. — Quando escrevo “melhores adaptações” quero dizer: as que vão directas ao âmago. Quando escrevo "âmago", quero dizer: coração. — Mas, para além desse disparo certeiro, Bresson transforma as histórias de Dostoiévski em objectos austeros ou, como diria um cinéfilo praticante, justas . — Insolente. — Em termos estéticos, troca Dionísio por Apolo. — Em termos corriqueiros, retira toda a doença a Dostoiévski ou melhor: substitui a epilepsia por uma neurose contemplativa. — Resulta tão bem no cinema. — Mas é revigorante voltar a Dostoiévski e encontrar a exaltação e seres humanos mais imperfeitos.

Influenciadores do século XX

Câmara ligada

Longas e intermináveis reuniões de teletrabalho. Horas e horas com a «câmara ligada». O meu rosto no ecrã tem uma força magnética qualquer. Não consigo desviar o olhar de mim próprio. Todos os movimentos e gestos me atraem. Mexo no cabelo com a intenção de me ver. Sorrio e passo a mão pelo rosto como num filme. Os gestos mais simples e involuntários parecem controlados, estudados, ensaiados, falsos. Estou a representar o meu papel e sou um péssimo actor. Bresson jamais me contrataria.

Le savon

Roanne, avril 1942. Si je m'en frotte les mains, le savon écume, jubile... Plus il les rend complaisantes, souples, liantes, ductiles, plus il bave, plus sa rage devient volumineuse et nacrée... Pierre magique ! Plus il forme avec l'air et l'eau des grappes explosives de raisins parfumés... L'eau, l'air et le savon se chevauchent, jouent à saute-mouton, forment des combinaisons moins chimiques que physiques, gymnastiques, acrobatiques... Rhétoriques ? Il y a beaucoup à dire à propos du savon. Exactement tout ce qu'il raconte de lui-même jusqu'à la disparition complète, épuisement du sujet. Voilà l'objet même qui me convient. * Le savon a beaucoup à dire. Qu'il le dise avec volubilité, enthousiasme. Quand il a fini de le dire, il n'existe plus. * Une sorte de pierre, mais qui ne se laisse pas rouler par la nature : elle vous glisse entre les doigts et fond à vue d'oeil plutôt que d'être roulée par les eaux. Le jeu...

Take care of your belongings

No metro de Lisboa, os painéis informativos aconselham os passageiros a ter cuidado com os seus pertences. Há tanta coisa que só a mim pertence e que infelizmente não cabe na mochila ou nos bolsos. Tanta coisa que agradecia que me tirassem, sem drama e alvoroço, como no carteirista de Bresson.

Revolução

— A frase que Alberte diz em  Le Diable probablement : "Não haverá revolução. É demasiado tarde." ( Il n'y aura pas de révolution. C'est trop tard .) pode ser substituída por: "Não houve revolução. É demasiado cedo." ( Il n'y a pas eu de révolution. C'est trop tôt .) Basta rodar um bocadinho o eixo do tempo. — Não num filme de Bresson. — Não. Apenas fora do cinema.

Disposições morais

Voltamos sempre, ou pelo menos eu volto muitas vezes, à cena final d’ O Carteirista . Talvez seja mesmo assim, talvez seja preciso tempo e caminhos estranhos para chegar onde sempre estivemos, uma espécie de andar sem sair do sítio. Nem todos os problemas pedem uma resposta, mas sim uma disposição.

Faltou-nos jogo interior

A ideia já andava na cabeça há algum tempo, mas foi preciso ler a frase “faltou-nos jogo interior” no rodapé da televisão sem som para conseguir agarrá-la: Fernando Santos é um treinador completamente bressoniano. Quer converter os jogadores profissionais em modelos ; sonha transformar o futebol em puro  movimento interior . Os jogos da seleção deviam ser filmados em longos planos geométricos (vertente Pascal) e transmitidos a preto e branco — uma celebração.